DREAMGIRLS de Bill Condon
O terceiro sinal e o público acomodado. A platéia que antes conversava, faz agora silêncio e ouve os anunciantes atentos até que a luz cai em resistência e a cortina abre. A atriz em cena observa os espaços vazios, as cadeiras não ocupadas do teatro e diz seu texto como todas as noites. Como todas as noites, sua maior preocupação ao abrir da cortina, é saber se existem mais cadeiras ocupadas do que vagas. O texto sempre acontece de forma emocionada e intensa, mesmo quando o seu pensamento foge para todas as direções, mesmo quando seus olhos constatam uma noite fraca ou lotada ou morna. A qualidade do trabalho da atriz não deixa sua audiência sequer imaginar qualquer fio de preocupação a não ser o de brilhar. E brilha. Por vinte minutos, sozinha em cena e dona de um texto de quase quatro páginas, ela prende a atenção e os olhos. Desperta interesse, sem grandes artifícios de iluminação. Sem efeitos sonoros. Daqueles espetáculos de antigamente onde o ator e somente o ator, era o principal instrumento de comunicação entre o palco e a platéia. Ao final do seu monólogo inicial, o público aplaude com entusiasmo e dependendo da noite, ainda ouve-se algum bravo ou espetacular, dessas palavras que alimentam o ego fera dos atores. Ao sair de cena, precisa abrir uma porta do cenário, de onde entra outra atriz – e o espetáculo em questão usa três atrizes que não contracenam entre si, mas que se encontram nas transições das cenas e somente ao abrir a porta para que uma saia, ao observar a outra entrar.
- Você viu? Nem olhou para mim hoje. Olhou para a porta, a maçaneta, sabe-se lá para onde, mas para os meus olhos, nem olhou. E outra, essa maçaneta ainda vai cair um dia. Ela está quase solta. Sinto pânico quando se aproxima a hora de abrir aquela porta. Marca infeliz essa. Aliás, de quem é essa marca? Minha ou da direção?
- Da direção. A senhora sempre gostou dessa marca. Acho ela tão bonita.
- Pode ser, o problema não é a marca, o problema é a maçaneta. E se um dia ela cai? Imagina? Todo o meu monólogo cai por terra, junto com ela. Aliás, hoje são vinte e oito. Vinte e oito cadeiras vazias. Só do lado esquerdo. Quando eu ia começar a contar o meio e o lado direito, senti uma dor de cabeça tão forte que pensei que fosse cair. Mas eles não perceberam, eles nunca percebem.
- Nem eu percebi. A senhora estava tão bem.
- Sou obrigada a concordar. Estava realmente bem. Eu conto o meio e o lado direito na minha última cena. Ouvi um celular de longe, bem baixinho, na parte do copo, antes de pegar o copo. Encarei a platéia e me dirigi ao copo. No meio do caminho, eu me dei conta de que poderia ser o meu celular, o meu telefone. Então comecei a refazer o meu trajeto até aqui. Incluindo a coxia e o cigarro e não consigo me lembrar se desliguei o celular. Eu desliguei o celular? Querido, ligue para o camarim e peça para que o tragam até aqui.
- Sim senhora.
- Acho essa a parte mais monótona. A coxia. Essa eterna espera até a minha próxima cena. Se ela não fizer o público cochilar, como sempre faz, ganhamos uns três minutos e vou embora mais cedo. Domingo a cidade é tão sem graça. Quando era mais jovem, as sessões de domingo eram as mais gostosas de fazer. Chegava no teatro e pensava que é um dia tão sem sal, mas tão sem sal, que estar em cena era a melhor das aventuras. O melhor programa. Hoje em dia já não vejo assim. Aliás, esse é um bom tema para pensar enquanto estiver em cena: o que era bom antes e que hoje perdeu a graça. Se tivesse contado todas as cadeiras vazias, começava hoje mesmo. Mas ainda tenho o meio e o lado direito. E meu texto final é tão menor que a das outras. Não dá para pensar em quase nada.
- Seu texto final é lindo. Apoteótico.
- Sim, apoteótico. Começamos lindamente e terminamos bem. O problema é o meio. Acho que o ritmo se perde no meio. Algumas linhas são valorizadas sem necessidade. Um tempo longo entre as falas. Eu confesso que pensei que depois da estréia, os tempos se ajustariam, engano meu. Um dia ainda conto no relógio o tempo morto que se gasta em cada uma das cenas. Das duas. Nem digo muito da segunda, a menina entende o que está fazendo, mas não demos sorte com essa aí não... Robótica. Ela é robótica. Repete o texto e os tempos e até o olhar sempre da mesma forma. Não parece viva. Mas não sou eu quem vai fazer críticas ao trabalho da companheira. Um guaraná, sugiro que a camareira sirva guaraná no camarim. Vamos ver se a energia aparece em cena.
- Semana que vem, na quarta-feira, guaraná.
Perto do fim:
- Houve um tempo, meu caro, em que estar em cena queria dizer alguma coisa. Levantar uma bandeira, vestir a camisa, em cena, na função de atores, instrumentos divinos, declarávamos guerra e paz. Insultávamos e agraciávamos. Choramos mortes em cena. Morte de amigos atores, diretores, gente da carpintaria do teatro. Eu fiz um Molière que chorou a morte do bilheteiro mais gentil que conheci. Encontrei um espaço dentro da comédia para chorar a morte daquele homem delicado e amável. Sem fugir da peça, sem tentar fazer outra peça dentro daquela. Energia de atores. De grupo, que faz do palco o lugar sagrado para contar a sua história e celebrar os seus. E no final da sessão, ao sair do teatro, saíamos de bem, limpos e conscientes. Eu não esqueço dessa noite. A classe teatral de luto. E a melhor apresentação. A platéia lotada sorrindo o Molière, aplaudindo e gargalhando, soltando os seus bichos enquanto nós chorávamos a morte do colega.
- Os tempos mudaram, senhora.
- Os tempos talvez tenham mudado. O teatro não mudou. Veja você que não existe lugar mais acolhedor do que uma coxia como essa. De onde observamos a vida dentro da vida, detalhadamente. Aguardando o momento exato. A luz exata. A transição que através da porta, símbolo da nossa peça, nos permite a entrada e a saída de cena. O teatro não mudou, meu caro. E talvez não mude, como uma certeza inquebrantável. Por mais que brinquem com as convenções e as suas rupturas, com a pluralidade da linguagem, sempre vai existir a tensão do público e a atenção do ator. É da tradição desse encontro, dos olhos e da imagem, que eu me alimento.
- Senhora, com todo o respeito, como fala tão lindamente sobre o seu ofício se em cena, conta os assentos vazios, faz listas e pensa na vida real?
- A vida real, meu caro, atravessa o pensamento, feito uma teia sem controle. A vida real é o norte. É a morte do teatro também. Os mecanismos do ator são diversos. As suas técnicas, o mapeamento das emoções. Decifrar esse código, é também fazer uma pessoa perder o encanto. Como eu faço para parecer de quarta a domingo, a louca sem esperança que conversa com as paredes? Como é estar louca de quarta a domingo, toda a noite? Tentar te fazer compreender esse processo, seria como radiografar, examinar um louco e teorizar todas as possibilidades que fizeram com que o tal louco fosse louco. Falar com você, meu caro, toda a noite, é de certa forma, falar com as paredes. E enlouquecer um pouco.
- A sua marca, senhora.
- Sim, a minha marca e meu monólogo final.
- O meio e o lado direito, não esqueça.
- Sob hipótese alguma.