LATTER DAYS de C. J. Cox
Não sei dizer se ignoramos ou valorizamos a chuva fina e o tempo frio, esse ponto de inverno que se estabelece, mas a noite foi ótima. Mesmo chegando atrasado e molhado, driblando o trânsito e os ruídos e as luzes. Foi só os meus olhos encontrarem os seus e depois tudo se transformou em abraço, segredos, conversa, mesa de restaurante, cinema abraçadinho, risadas para rimar, livraria vazia e tão cheia de vida. Eu nos amo dessa maneira de quem percorreu tanto em tão pouco tempo e chegou aqui, nesse ponto, que é o ponto de encontro, o ponto que muda o parágrafo, o ponto no mapa que nos coloca em movimento para o futuro, para o presente. O ponto que é também pingo no i porque ele nos resolve todo um tempo de dúvidas e aflições e nos lança na história de igual para igual. Dois rapazes que foram ao cinema numa noite fria de inverno, deixando de lado a chuva e pequenos problemas que os fazem tremer a base. Mas se não há tremor, se não existe o abalo, por menor que seja e tudo é muito fácil, gratuito e os livros estão organizados impecavelmente, onde é que encontraremos as diferenças que nos aproximam? Ah, como eu te quero bem. Como quem faz uma música linda, escreve um poema curto e preciso, como a natureza ou como quem lê a Ticcia e percebe a tranqüilidade da sabedoria e a inquietação da mulher linda que ela é. Porque ela é. Tranqüila e inquieta como toda grande mulher. Como toda boa escritora. E os opostos me atraem.
Eu te deixei no ponto, abraço forte, urgente, nosso querer durante toda a noite esteve intenso, eu entrei no táxi pensando nessa intensidade de quem se arrisca e de como somos corajosos porque confiamos nossas vidas, dúvidas, desejos, sonhos e imperfeições aos olhos do outro. Esse é o ponto que eu quero tocar. O da confiança e eu quero dizer também amizade, amor, sei lá qual palavra se encaixa na intimidade que eu quero nomear. Mas eu te quero na minha vida. Eu sou uma pessoa que melhora com a arriscada relação verdadeira que estabelecemos sem sequer combinar. Nosso texto não é vida real. Cabe o onírico, cabe o belo, o sujo, o feio, o malvado, o cruel, o colorido, a vida e também a morte. Eu entrei no táxi com muita vontade de falar em voz alta os pensamentos. A Daiana me ensinou a falar os pensamentos porque eles ganham o peso da voz e do ouvido e muitas vezes perdem a importância imaginada ou ganham uma leveza que ilumina. E o motorista me perguntou as direções, reclamou da chuva e me senti capaz de indicar inúmeras possibilidades para que ele me levasse para casa. Você me causa a sensação de futuro, me situa tão bem na tua geografia que me transforma em alguns minutos no dono da cidade sem dono.
No meio do caminho, parei de me ouvir. O motorista me perguntou os pensamentos. Era um senhor de sessenta e cinco anos tentando quebrar o silêncio. Contou da vida, da morte que quase o levou em quatro pescarias e eu disse do meu medo do mar. Quase falei do medo de amar. Muito calmamente me disse que nos dias de hoje, não existe mais lugar para o medo. Que é preciso enfrentá-lo, seja ele qual for, venha ele de onde vier. Que toda noite, ao sair para trabalhar, é uma nova noite onde ele se desafia e cai na estrada porque é preciso seguir adiante. Me contou também que perdeu o filho de quarenta e dois anos, vítima de Aids e que a esposa ainda não superou sua partida. Eu perdi a palavra porque ao meu lado, um homem sem intimidade me falava com intimidade do vazio da perda, da brutalidade da doença, de como o filho era alguém muito bom e muito íntegro, mas que se deixou levar pela luxúria. Disse que entendia o impulso do desejo e que nos dias de hoje, é preciso ter consciência, que mataram o desejo, que banalizaram o sexo. Até que a voz tremeu as cordas e a canção foi interrompida, lágrima inevitável. Eu agradeci a corrida, desejei boa sorte e felicidade, meti o pé na poça e saí do táxi, entre o quase grito e o total silêncio.
Desci do táxi tonto da noite, a manhã pronta para nascer, o céu de um azul inexplicável, caminhei procurando chaves, carteira, celular, algum equilíbrio. Encontrei os gatos na portaria se lambendo. Me olharam com descaso, sem susto e continuaram o cuidado do banho com a naturalidade de sempre. Sentei no primeiro degrau, observando a atenção e a disciplina dos movimentos felinos. E percebi que estamos diante de uma nova história. Teu novo amor te enaltece e faz com que eu seja o bom amigo de sempre. Teu novo amor te transforma violentamente numa pessoa mais simples e me transforma, sem saber, em alguém que precisa aprender a ser mais simples. E te quer tão bem que vibra com a tua felicidade e percebe que as histórias ganham novos rumos e desdobramentos. Sopro forte de que é o momento de arrumar a casa, os dias, as flores, a vida, enfim. Coração aberto, a mente fértil, a cidade grande, muito para ler, assistir, estudar, debater e inevitavelmente, amar. Quando percebi tinha um gato no colo e falava cansado com os animais até que minha mãe chegou na janela e era manhã de domingo. Me chamou a atenção e subi para um banho e um café, a cama que não lembro como foi feita, o travesseiro, o sono.
Acordei com a sensação que todos acordam quando bebem além da conta. Com a sensação do quase atravessada. Com a sensação solta de que a noite, embora sem nenhuma conversa objetiva sobre nós, nos definiu e nos acertou os ponteiros do que está por vir. Despertei com a sensação de que encerramos, de que encerrei um nó, de que finalmente, os ventos simplificaram os laços, os afetos, o antigamente. Levantei folha em branco. O tempo nublado por fora, mas aberto por dentro. Um amor deveria ser sempre como o nosso: livre. Viva a tua vida nova e os teus. Viverei a minha. Com a fortaleza do querer bem que nos une e nos leva onde quer que estejamos, amemos seja lá quando. Te espero para uma nova festa, para uma nova bateria de músicas e risadas, cerveja e aquela sensação suada de que dançando a gente se entende, a gente se esbarra, a gente se celebra. Como velhos amigos, como antigos amores, como homens que não temem a novidade, mas a enfrentam com seus medos e angústias, suas certezas e interrogações. Como rapazes que investigam a vida, sem peso, apaixonados por momentos. Pelo minuto que precede a ação, da palavra, do gesto, do que vai ser. Do quase.
Preciso me encontrar entre os extremos. Equilibrar os meus pratos. Sem perder a intensidade, a ternura, o desejo. Ainda tenho medo. Ele não me paralisa. Mas ainda o tenho. Esse é um ponto delicado. Que não muda o parágrafo, mas me levanta questões, como em reticências.
Adoro o inverno com você.