ANTES DA COISA TODA COMEÇAR,
do Armazém Companhia de Teatro Veca (e também o Armazém),
Eu saí do teatro muito feliz naquela noite. Não era uma felicidade que se resolvia com um abraço ou com a tentativa fálica de procurar as palavras para falar sobre a peça. Porque não era sobre a peça que eu queria falar. Mas sobre os efeitos dela depois daquela coisa toda terminar. Havia os efeitos imediatos, aqueles que devem atingir a maioria, acredito, como a euforia, a inquietação, um abraço, um desejo que se abre de tentar encontrar alguém que a gente ama para brindar um copo de cerveja, falar merdas e celebrar o fato simples de se conhecer um tanto para poder rir do que não é mais a palavra. Encontrar alguém que a gente ama para poder amar mais. Brincar desse exercício de amar e se deixar ser amado, tão simples, tão complexo.
E havia também, aliás, há tudo aquilo que nos acompanha depois que o espetáculo termina e a gente cai de volta na cidade, na vida, no costume de ser o que a gente é todos os dias. Há aquilo que fica depois da peça, depois do filme, da canção, que não é aquele texto, nem aquela luz, nem aquele ator incrível. É aquilo tudo misturado com tudo aquilo o que nós somos. Uma sensação do cheiro de um ator que disse o texto tão perto de mim, ou de uma luz que criou uma atmosfera que me deslocou de lugar, com o olhar da atriz incendiando cantando dentro dos olhos, com a memória afetiva de ver você em cena e lembrar de quando você me contou que ia fazer Nelson Rodrigues com eles. O que fica, quero dizer, não é só o espetáculo. Efêmero, ali eu presencio o início, o meio e o fim daquela nova história. Movimenta as sensações, provoca a sensibilidade e invoca o sensorial. E aquelas personagens se apresentam e se despedem. E depois que eu saio, algo ali, por menor que seja, vem comigo.
Quando eu vi Alice pela primeira vez, tudo o que eu lembro é do cheiro da essência que a Simone Vianna exalava ao sair daquele sofá, antes da gente entrar no espelho. Eu posso sentir, se eu fizer um esforço e aí toda a atmosfera do espetáculo ganha vida na memória.
Ao sair do CCBB, o primeiro movimento foi de querer te escrever. Mas eu entrei numa onda de querer dar nome às coisas. E coisas são coisas, muitas vezes elas não têm um nome. Entrar nesse funil de querer tentar explicar tudo, cada momento da peça, ia me transformar num chato pretensioso e eu ando fugindo deles. Então eu saí para beber com o Éder e ali, na mesa do Amarelinho, entre um petisco e um brinde, nós nos agradecemos pela companhia e pela idéia de ter ido assistir vocês. Ele me ligou em cima da hora. E deu tudo certo. Falamos de outras peças do Armazém. De outros tempos. Outros textos. Outras histórias. Depois começamos a falar sobre a nossa vida. Os planos, as idéias, as tentativas, os nãos, a urgência de querer e não só querer, mas lutar por um sim. O coração partido, o coração inteiro, as necessidades, as angústias, os desejos íntimos, as decepções cruas, a falta que faz olhos nos olhos e poder falar e poder ouvir. Coisas que amigos conversam. Confidências. Uma troca quase sem falha na comunicação.
E aquele meu fogo de querer te escrever foi se acalmando. Foi virando uma certeza. Foi se cercando de memória, do carinho de ter tanto material reunido para que eu reafirmasse o meu carinho por você. E eu estendo ao elenco, porque eu também me cerco da memória de todos os espetáculos feitos aqui no RJ onde eu fui platéia. E reafirmo minha admiração e meu privilégio de ter essa oportunidade de acompanhar o Armazém. Desde A Ratoeira. Até agora. De ser amigo da Veca. Desde antes lá na Martins Pena até agora. Natural que a gente se deixe, se encontre, se reencontre, mas há essa certeza indelével, chamam amor, de que eu vou lembrar você com algum filme, alguma situação, alguma atriz, alguma cena criativa, surpreendente, que me assalte o fôlego. Que eu vá lembrar você, simplesmente. De uma festa, uma fantasia de carnaval, um show na Fundição, uma cena que a gente fez juntos, da Macabéia que adorava coca-cola. De sair pelas ruas do centro usando uma câmera de vídeo, entrevistando as pessoas na rua perguntando se elas sabem quem é Édipo (o Baba tem essas fitas de vídeo, todas). De lembrar que você me cedeu sua cama em Três Rios para que eu dormisse com o Rei (meu pai, há coisas que a gente pode deixar de lembrar, certo)?
E a peça que brinca com a memória daquilo que foi escrito (foi?) me deu de presente uma brincadeira com a nossa história que continua e continua e continua. Dos festivais de cinema. Das cochias de uma leitura. De um clic que dá e ‘a Veca vai pirar com isso’. De brincar com essa memória, eu gosto, porque ela é boa, é vasta, é divertida, é rica em detalhes e envolve um monte de gente que não escreve essa carta comigo, mas poderia assinar se quisessem.
A ausência provoca lacunas, eu sei. E a gente sempre posiciona a bússola para o norte da atenção, das presenças. Mas eu queria te dizer que eu ainda acho você incrível em cena. Porque você é sempre a melhor atriz que você pode ser. E o teu trabalho não cessa quando termina o espetáculo, eu sei que você sabe que eu sei disso. Eu vou assistir vocês amanhã de novo. É comum eu assistir vocês mais de uma vez. Tem um texto que o Thales diz do cara que foi ver a peça dele e chorou e ele quis mandar o cara se ferrar. Aceitei como provocação, porque sou o maior chorão. Eu entendo quem chora porque vai direto na veia ali e a sensibilidade de cada um reage de uma forma – eu defendo quem chora, porra! – mas escrever essa carta pra você, Veca minha adorada amiga, Armazém, pessoas invisíveis que eu trago na estrada e que me acompanham, feito um amigo invisível, foi a maneira que eu encontrei de fugir do ‘parabéns’ sem jeito que eu sempre digo e nunca me satisfez.
De registrar um pouco do todo, que eu não sei dar nome. É uma coisa. É isso. Uma coisa. É feito dar um abraço na Mazzer, como eu fiz em todo final de espetáculo e muitas vezes nem dizer nada, mas abraçar e só abraçar, essa coisa, o abraço, um abraço-coisa, que diz sem dizer, essa coisa, é o que eu queria para todos e para cada um de vocês.
Um beijo enorme pela companhia da Cia.
* Na torcida para que ela (ou ninguém do elenco) leia essa carta antes da noite do dia 16/12, que é quando vou rever a peça e entregar no abraço, no final.