Protected by Copyscape Originality Checker

sexta-feira, dezembro 26, 2014


RELATOS SELVAGENS, de Damián Szifron

Eu não bebi o suficiente, ainda que o suficiente seja um conceito que mude de acordo com a pessoa, o seu suficiente é diferente do meu sufic... ok, entendi. Ainda há em mim a noção de equilíbrio e é importante que eu enfatize, equilíbrio físico, então eu sou perfeitamente capaz de caminhar do balcão do bar até a porta para sentir o vento da madrugada no rosto, sem cambalear, sem dar indícios de uma possível, provável e bem vinda embriaguez. Que não veio. É curioso porque eu bebi para perder a compostura. Entrar no táxi da madrugada torto e rezar para que o taxista compreenda a minha rua, as minhas esquinas. Eu bebi para amenizar o meu ódio do final do ano, dessa festa obrigatória de reconciliações falsas, de algum patético bom senso natalino etc e tal. Eu sou contra, terminantemente contra as festinhas da empresa, os amigos ocultos mil, a família que você evita o ano inteiro invadindo a sua casa, a televisão em histeria coletiva, comprem, comprem, comam, comprem. Eu não tenho mais temperamento social para fazer cena. Eu me transformei em alguém que foge, que desaparece e quando alguém pergunta, a resposta evasiva de quem fica, acaba preenchendo as lacunas.

O vento atípico de uma madrugada fresca do verão carioca e o som de um trovão. A porta do bar me aponta uma rua cheia de jovens em sua maioria papeando em grupos, brindando suas relações, sorrindo branco sua juventude e seus cigarros, com olhos que brilham, ávidos por alguma coisa que eles não sabem o nome, mas que é bom, cara, é bom não saber porque aí você tem a possibilidade de investigar, de correr atrás. Eu acho que até hoje corro atrás. Irremediavelmente vejo alguém conhecido, correspondo o aceno, ganho um abraço, o ‘porra por onde tu anda, me liga, me manda uma mensagem no facebook’. O que é uma loucura de pensar. Se estou, se estamos ali, aproveitemo-nos, já que há o encontro. E então não precisarei te ligar ou te mandar uma mensagem porque o momento presente vai saciar a saudade – se houver saudade. Um beijo, um perfume gostoso, que eu costumava gostar muito e a memória é um botãozinho traiçoeiro que brinca com o tempo. Olho para dentro do bar, o lugar que eu ocupava no balcão foi preenchido, porra, o show já vai começar e eu perdi o meu lugar e nem um cigarro eu acendi.

Então o palco pequeno se ilumina e ele entra, voz e violão. Muitos amigos, aplausos, urrul, lindo, um boa noite tímido e a primeira canção. Nem parece natal agora e o pensamento me causa um alívio. Eu me aproximo do bar, disputando algum espaço mínimo para pedir algo com vodka, a maioria dos olhos alheios no cantor, cantarolando o que sabem, quando sabem, encontro um vão, um milagroso vão com uma pilastra onde é possível não só observar o cantor, como encostar as costas e relaxar um pouco tomando a minha bebida. O celular vibra, mensagem de ‘tô chegando, estou na esquina tentando um cigarro’, o cantor sobe um tom e as pessoas reagem com ais e uis. O cantor foi o homem da minha vida por alguns anos. O cantor destruiu a minha vida por ser o homem da minha vida nos últimos - não vou contabilizar – anos. Meu amigo entra no bar, o rosto assustado, buscando por mim, eu aceno, ele se aproxima e me abraça forte quando me encontra ao seu alcance. ‘Esse é o último lugar do universo onde eu imaginaria te encontrar’, ele me diz. Eu dou de ombros, ‘deixa rolar, eu precisava sair de casa e os caminhos dessa cidade, cê sabe’. Ele faz uma cara de reprovação, uma cara doce de reprovação. Quantos amigos nessa vida te acompanham, independente do tamanho do estrago?

Depois de algumas canções, a bebida finalmente começa a amortecer os sentidos e o cantor faz um intervalo. Ele desce do palco, o bar cheio, muita gente parabenizando, sorrindo, observando com atenção, alguns abraçam, puxam conversa. Elegantemente ele vai se desvencilhando dos pequenos grupos, como água do rio, seguindo em frente, até que ele estaciona na minha frente e na minha frente o homem da minha vida, depois de tanto tempo, alguns outros homens, tantas outras centenas de noites sem ele, sem ele e com alguma patética sensação de vitória por conseguir ficar sem, como quem abandona um hábito e comemora diariamente esse fato. Diante de mim, o meu mais prezado hábito, o meu nobre clichê que deu sentido a todas as músicas de fossa, a todas as canções sobre o fim, a um jeito de encarar os dias inéditos, os dias sem, os dias de ausência, os dias de vazio, eu que sempre apontei o dedo aos amigos que sofriam por amor – ou por ausência dele - que tentava amenizar as lágrimas alheais com ‘você vai superar, isso passa, daqui a pouco aparece alguém, não faça drama, esse cara não te merece, não dê tanta importância, bola para frente’.

Diante de mim, ele me analisa em silêncio. Os olhos brilhando, a boca vermelha, eu sinto a respiração quente dele se misturar com a minha. Ele fala meia frase ‘você não acha que’ e desiste de concluir. Ele me agarra pela camisa, com alguma violência, encosta a testa suada na minha, a boca muito próxima da minha boca, anos de história em flashes, o cheiro dele, arrepiado e ‘era isso o que você queria, era isso o que você buscava’, eu prevejo meu amigo em pânico me dizendo dentro do carro. Ele larga a minha camisa, os olhos dentro dos meus, a testa se afasta alguns milímetros, essa novela barata de jornaleiro, ‘você não deveria’, ao que eu respondo instintivamente e imediatamente ‘foda-se’. Ele sorri e se afasta, essa pequena cena diante de uma audiência que parece não ligar muito, mas tudo é festa, tudo é circo e vocês não deveriam jamais alimentar os animais.

O amigo insiste em me levar para casa, com os argumentos mais consistentes do universo, com os argumentos de quem realmente ama e tenta preservar o mínimo de dignidade alheia. Há nele uma serie de pensamentos – alguns óbvios e que eu insisto em ignorar – que radiografam a minha, a nossa situação. Ele parece observar com a segurança de quem está do lado de fora e é pertinente e carinhoso na forma que tenta colocar. Mas, se eu estou aqui agora, se eu consegui estar aqui agora, me deixe estar aqui agora e eu não quero ser rude, mas vá para casa, volte para a tua casa, eu não fico, não ficarei aborrecido, é seu direito estar longe de mim. Não tente evitar que eu seja eu ou que eu faça as coisas que eu quero fazer. Por mais amigo que você seja. Eu conheço o caminho. Eu já trilhei. E consigo ir e vir. Você aqui, tentando me conter, me lembra meus pais na adolescência ‘não faça, não saia, não escute, não viva’. E eu já estou velho demais para isso. Ele passa a mão no meu ombro e diz um ‘tá legal’ como quem desiste. E sai desapontado, talvez. Quantos amigos são capazes de reconhecer que a merda é inevitável e te dão o espaço necessário para você saltar?

O show retorna, os copos cheios com vodka e pouco limão e muito gelo e de repente, ‘até quando o corpo pede um pouco mais de alma’, ele canta a música do Lenine olhando para mim. Diretamente para mim. Fosse uma cena de filme, a câmera giraria no ambiente e seria um momento incrível, mas senti um enjoo profundo porque não há motivo para me oferecer uma canção, não hoje, não agora, não essa noite. Depois de tanto tempo, depois de tudo o que houve, depois do depois, não é me oferecendo uma canção que a gente vai retomar laços, redescobrir afetos. Não é. É? Como é que se ajeita o passado no presente? Qual é a tua história depois de mim? Eu não sei ser esse cara que aparece aqui – sim, eu apareci, eu busquei por essa situação – e tem uma recaída para uma noite, um quarto, uma cama de hotel e depois vai embora como se fosse culpa da bebida. Ou das estrelas. Eu tenho ciência do que faço, dos lugares onde vou, das situações que eu me meto, dos buracos que eu cavo. Das flores que planto também. Mas o que eu quero te dizer é que sou responsável, eu. Não a bebida, os outros, o universo, o acaso. Mas eu. E não permito, não posso permitir você, mesmo nesses últimos dias, nesses últimos momentos do ano. Porque você é a minha novela das oito. Você movimenta todos os clichês que eu sempre me orgulhei de negar. Se vim até aqui, foi para te ver, te olhar, estar no mesmo ambiente que você, não como das vezes que nos esbarramos rapidamente sem sequer nos olharmos. Eu vim para te ver e para que você me veja. E diante dessa visão, poder sair daqui resoluto de quanta merda eu ainda posso fazer quando se trata dos nós. Me sabotar, mesmo na virada do ano, quando todos pensam em zerar. Vir até aqui é explodir esse tempo todo de ausência, de não pertencimento, é o oposto de zerar. É acumular. É um puta saco pesado. Você virou esse saco pesado que eu não consigo mais carregar. E eu lamento muito por isso. Eu lamento que o amor tenha se transformado nesse saco impossível de remanejar.

Ele observa, ele chora, ele tenta um abraço. Eu repudio, eu não quero, eu também choro. Entro no táxi e demoro algum tempo para que o taxista compreenda as diretrizes. Ele tenta puxar assunto, talvez para me manter acordado, talvez para que eu pare de chorar, talvez apenas para ter certeza que será pago. Ao me deixar em casa, pergunta se não é melhor chamar alguém para me ajudar. Obrigado, senhor, mas são cinco da manhã, eu vou dar uma volta no quarteirão e respirar. Fosse um filme, o dia estaria amanhecendo e seria perfeito chegar em casa com o sol nascendo, mas ainda falta uma hora ou mais para que o sol apareça.

Depois de um banho, o celular vibra, meu amigo ‘acabei de chegar, conheci um cara que parece bacana, você tá bem’? Resposta curta ‘estou, trocou telefone’?

Quando o dia nasceu, eu já tinha vomitado três vezes. E já era o meu aniversário.