RELATOS SELVAGENS, de Damián Szifron
Eu não bebi o suficiente, ainda que
o suficiente seja um conceito que mude de acordo com a pessoa, o seu suficiente
é diferente do meu sufic... ok, entendi. Ainda há em mim a noção de equilíbrio
e é importante que eu enfatize, equilíbrio físico, então eu sou perfeitamente
capaz de caminhar do balcão do bar até a porta para sentir o vento da madrugada
no rosto, sem cambalear, sem dar indícios de uma possível, provável e bem vinda
embriaguez. Que não veio. É curioso porque eu bebi para perder a compostura.
Entrar no táxi da madrugada torto e rezar para que o taxista compreenda a minha
rua, as minhas esquinas. Eu bebi para amenizar o meu ódio do final do ano,
dessa festa obrigatória de reconciliações falsas, de algum patético bom senso
natalino etc e tal. Eu sou contra, terminantemente contra as festinhas da
empresa, os amigos ocultos mil, a família que você evita o ano inteiro
invadindo a sua casa, a televisão em histeria coletiva, comprem, comprem,
comam, comprem. Eu não tenho mais temperamento social para fazer cena. Eu me
transformei em alguém que foge, que desaparece e quando alguém pergunta, a
resposta evasiva de quem fica, acaba preenchendo as lacunas.
O
vento atípico de uma madrugada fresca do verão carioca e o som de um trovão. A
porta do bar me aponta uma rua cheia de jovens em sua maioria papeando em
grupos, brindando suas relações, sorrindo branco sua juventude e seus cigarros,
com olhos que brilham, ávidos por alguma coisa que eles não sabem o nome, mas
que é bom, cara, é bom não saber porque aí você tem a possibilidade de
investigar, de correr atrás. Eu acho que até hoje corro atrás.
Irremediavelmente vejo alguém conhecido, correspondo o aceno, ganho um abraço,
o ‘porra por onde tu anda, me liga, me manda uma mensagem no facebook’. O que é
uma loucura de pensar. Se estou, se estamos ali, aproveitemo-nos, já que há o
encontro. E então não precisarei te ligar ou te mandar uma mensagem porque o
momento presente vai saciar a saudade – se houver saudade. Um beijo, um perfume
gostoso, que eu costumava gostar muito e a memória é um botãozinho traiçoeiro
que brinca com o tempo. Olho para dentro do bar, o lugar que eu ocupava no
balcão foi preenchido, porra, o show já vai começar e eu perdi o meu lugar e
nem um cigarro eu acendi.
Então
o palco pequeno se ilumina e ele entra, voz e violão. Muitos amigos, aplausos,
urrul, lindo, um boa noite tímido e a primeira canção. Nem parece natal agora e
o pensamento me causa um alívio. Eu me aproximo do bar, disputando algum espaço
mínimo para pedir algo com vodka, a maioria dos olhos alheios no cantor,
cantarolando o que sabem, quando sabem, encontro um vão, um milagroso vão com
uma pilastra onde é possível não só observar o cantor, como encostar as costas
e relaxar um pouco tomando a minha bebida. O celular vibra, mensagem de ‘tô
chegando, estou na esquina tentando um cigarro’, o cantor sobe um tom e as
pessoas reagem com ais e uis. O cantor foi o homem da minha vida por alguns
anos. O cantor destruiu a minha vida por ser o homem da minha vida nos últimos
- não vou contabilizar – anos. Meu amigo entra no bar, o rosto assustado,
buscando por mim, eu aceno, ele se aproxima e me abraça forte quando me encontra
ao seu alcance. ‘Esse é o último lugar do universo onde eu imaginaria te
encontrar’, ele me diz. Eu dou de ombros, ‘deixa rolar, eu precisava sair de
casa e os caminhos dessa cidade, cê sabe’. Ele faz uma cara de reprovação, uma
cara doce de reprovação. Quantos amigos nessa vida te acompanham, independente
do tamanho do estrago?
Depois
de algumas canções, a bebida finalmente começa a amortecer os sentidos e o
cantor faz um intervalo. Ele desce do palco, o bar cheio, muita gente
parabenizando, sorrindo, observando com atenção, alguns abraçam, puxam
conversa. Elegantemente ele vai se desvencilhando dos pequenos grupos, como
água do rio, seguindo em frente, até que ele estaciona na minha frente e na
minha frente o homem da minha vida, depois de tanto tempo, alguns outros
homens, tantas outras centenas de noites sem ele, sem ele e com alguma patética
sensação de vitória por conseguir ficar sem, como quem abandona um hábito e
comemora diariamente esse fato. Diante de mim, o meu mais prezado hábito, o meu
nobre clichê que deu sentido a todas as músicas de fossa, a todas as canções
sobre o fim, a um jeito de encarar os dias inéditos, os dias sem, os dias de
ausência, os dias de vazio, eu que sempre apontei o dedo aos amigos que sofriam
por amor – ou por ausência dele - que tentava amenizar as lágrimas alheais com
‘você vai superar, isso passa, daqui a pouco aparece alguém, não faça drama,
esse cara não te merece, não dê tanta importância, bola para frente’.
Diante
de mim, ele me analisa em silêncio. Os olhos brilhando, a boca vermelha, eu
sinto a respiração quente dele se misturar com a minha. Ele fala meia frase
‘você não acha que’ e desiste de concluir. Ele me agarra pela camisa, com
alguma violência, encosta a testa suada na minha, a boca muito próxima da minha
boca, anos de história em flashes, o cheiro dele, arrepiado e ‘era isso o que
você queria, era isso o que você buscava’, eu prevejo meu amigo em pânico me
dizendo dentro do carro. Ele larga a minha camisa, os olhos dentro dos meus, a
testa se afasta alguns milímetros, essa novela barata de jornaleiro, ‘você não
deveria’, ao que eu respondo instintivamente e imediatamente ‘foda-se’. Ele
sorri e se afasta, essa pequena cena diante de uma audiência que parece não
ligar muito, mas tudo é festa, tudo é circo e vocês não deveriam jamais
alimentar os animais.
O
amigo insiste em me levar para casa, com os argumentos mais consistentes do
universo, com os argumentos de quem realmente ama e tenta preservar o mínimo de
dignidade alheia. Há nele uma serie de pensamentos – alguns óbvios e que eu
insisto em ignorar – que radiografam a minha, a nossa situação. Ele parece
observar com a segurança de quem está do lado de fora e é pertinente e
carinhoso na forma que tenta colocar. Mas, se eu estou aqui agora, se eu
consegui estar aqui agora, me deixe estar aqui agora e eu não quero ser rude,
mas vá para casa, volte para a tua casa, eu não fico, não ficarei aborrecido, é
seu direito estar longe de mim. Não tente evitar que eu seja eu ou que eu faça
as coisas que eu quero fazer. Por mais amigo que você seja. Eu conheço o
caminho. Eu já trilhei. E consigo ir e vir. Você aqui, tentando me conter, me
lembra meus pais na adolescência ‘não faça, não saia, não escute, não viva’. E
eu já estou velho demais para isso. Ele passa a mão no meu ombro e diz um ‘tá
legal’ como quem desiste. E sai desapontado, talvez. Quantos amigos são capazes
de reconhecer que a merda é inevitável e te dão o espaço necessário para você
saltar?
O
show retorna, os copos cheios com vodka e pouco limão e muito gelo e de repente,
‘até quando o corpo pede um pouco mais de alma’, ele canta a música do Lenine
olhando para mim. Diretamente para mim. Fosse uma cena de filme, a câmera
giraria no ambiente e seria um momento incrível, mas senti um enjoo profundo
porque não há motivo para me oferecer uma canção, não hoje, não agora, não essa
noite. Depois de tanto tempo, depois de tudo o que houve, depois do depois, não
é me oferecendo uma canção que a gente vai retomar laços, redescobrir afetos.
Não é. É? Como é que se ajeita o passado no presente? Qual é a tua história
depois de mim? Eu não sei ser esse cara que aparece aqui – sim, eu apareci, eu
busquei por essa situação – e tem uma recaída para uma noite, um quarto, uma
cama de hotel e depois vai embora como se fosse culpa da bebida. Ou das
estrelas. Eu tenho ciência do que faço, dos lugares onde vou, das situações que
eu me meto, dos buracos que eu cavo. Das flores que planto também. Mas o que eu
quero te dizer é que sou responsável, eu. Não a bebida, os outros, o universo,
o acaso. Mas eu. E não permito, não posso permitir você, mesmo nesses últimos
dias, nesses últimos momentos do ano. Porque você é a minha novela das oito.
Você movimenta todos os clichês que eu sempre me orgulhei de negar. Se vim até
aqui, foi para te ver, te olhar, estar no mesmo ambiente que você, não como das
vezes que nos esbarramos rapidamente sem sequer nos olharmos. Eu vim para te
ver e para que você me veja. E diante dessa visão, poder sair daqui resoluto
de quanta merda eu ainda posso fazer quando se trata dos nós. Me sabotar, mesmo na virada do ano, quando
todos pensam em zerar. Vir até aqui é explodir esse tempo todo de ausência, de
não pertencimento, é o oposto de zerar. É acumular. É um puta saco pesado. Você
virou esse saco pesado que eu não consigo mais carregar. E eu lamento muito por
isso. Eu lamento que o amor tenha se transformado nesse saco impossível de remanejar.
Ele
observa, ele chora, ele tenta um abraço. Eu repudio, eu não quero, eu também
choro. Entro no táxi e demoro algum tempo para que o taxista compreenda as diretrizes.
Ele tenta puxar assunto, talvez para me manter acordado, talvez para que eu
pare de chorar, talvez apenas para ter certeza que será pago. Ao me deixar em
casa, pergunta se não é melhor chamar alguém para me ajudar. Obrigado, senhor,
mas são cinco da manhã, eu vou dar uma volta no quarteirão e respirar. Fosse um
filme, o dia estaria amanhecendo e seria perfeito chegar em casa com o sol
nascendo, mas ainda falta uma hora ou mais para que o sol apareça.
Depois
de um banho, o celular vibra, meu amigo ‘acabei de chegar, conheci um cara que
parece bacana, você tá bem’? Resposta curta ‘estou, trocou telefone’?
Quando
o dia nasceu, eu já tinha vomitado três vezes. E já era o meu aniversário.