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domingo, março 25, 2007

BEM VINDOS / PARA SEMPRE LYLA / UM VAZIO NO CORAÇÃO

de Lukas Moodysson

I

- Se você não tivesse me encontrado lá no bar, onde você estaria agora?
- Não sei. Pergunta difícil.
- Não é difícil. É simples. Se não tivéssemos nos encontrado, se eu tivesse saído dois minutos antes da porta abrir ou se você tivesse tropeçado na rua e eu saísse antes de você entrar...
- Que diferença faz?
- Não faz nenhuma diferença. Você é sempre seco assim?
- Se não faz nenhuma diferença...
- Eu só te fiz uma pergunta. Você não tem curiosidade? Acho a possibilidade tão fascinante. Às vezes encontrar alguém pode salvar o dia.
- Ou fuder com tudo.
- Ou fuder. Mas eu sou otimista. Acredito que algumas intervenções são realmente divinas e precisam da percepção para não passarem em branco.
- Escuta, essa conversa toda faz parte do pacote para que eu me sinta bem ou você realmente acredita nessas merdas?
- Eu acredito nessas... vírgulas. E nós não combinamos o preço ainda. Posso cobrar alto demais e você não concordar. Posso só aproveitar a cerveja da tua geladeira e não querer trepar com você, bater a porta e cair na noite, de volta.
- Já te disse que dinheiro não é o problema.
- Já te disse que só o dinheiro não me interessa.
- E você busca romance? Amor? Uma história avassaladora?
- Não. Eu busco afinidade. O mínimo para querer abrir o zíper.
- Então você me diz que ainda somos estranhos. E você precisa de estímulo.
- Não. Não disse isso. Disse que lá no bar, você foi interessante. Por isso topei o teu convite. Apartamento, bebida, grana fácil já que o cara parece interessante, eu pensei. Só que desde que chegamos e você ouviu o recado na secretária eletrônica, você ficou amargo.
- Vai me analisar? É sério isso? Um michê de terceira dentro da minha casa, que provavelmente vai ser pago por mim – e posso prever que você não vai recusar a minha grana porque faz um puta frio e o movimento da tua noite, sou eu - me fazendo observações entusiastas sobre o acaso, analisando o meu comportamento amargo, foi essa a palavra? e ainda faz jogo duro se vai ou não abrir o zíper, por favor...
- Opa... quem está me analisando é você...
- Das duas uma: ou você viu filmes demais, rapaz ou eu retorno à minha teoria de que eu só atraio gente problemática.
- Fernando. Eu me chamo Fernando.
- Eu não devo satisfação alguma a você sobre o recado que você ouviu. Aliás, você poderia ter sido educado e ter fingido que não ouviu nada. Eu me sentiria menos constrangido.
- Pois é, o problema é que eu ouvi. E fingir que eu não ouvi, parecer ausente para te deixar confortável, eu não faria isso. Não sou o tipo de pessoa que passa por uma tempestade fingindo que o céu está aberto.
- Deveria ser. Deveria. Eu imagino o tipo de pessoas que passam por você todas as noites. Certamente algumas delas, ou a maior parte delas, deve ter particularidades sexuais, certas taras, devem pedir para que você as satisfaça, já que pagando a culpa se atenua.
- Alguém te machucou feio, cara.
- Acho melhor você ir embora.
- Concordo. Acho que eu me enganei em relação a você. Eu raramente me engano.
- Você não erra?
- Muito. Mas eu raramente me engano com uma pessoa. Normalmente se a minha primeira impressão é boa, é porque a pessoa vale à pena.
- Já pensou em estudar filosofia?
- Já pensou em aprender boas maneiras?
- Você é muito arrogante para quem precisa de dinheiro.
- Você é muito arrogante com a sua conta bancária. Posso usar o banheiro antes de sair?
- A última porta do corredor.


II

- Eu queria te pedir desculpas.
- Eu posso aceitar...
- Me perdoe a falta de tolerância. É que existe esse cara na minha vida. Então quando ele se manifesta, mesmo que seja numa mensagem eletrônica gravada, ele altera a minha vida, o meu estado de espírito. É uma história não resolvida. Um amor aos pedaços. Eu consigo superar um pedaço e logo depois encontro outra parte quebrada. Incompleta.
- Tudo bem, você não me deve satisfações. À não ser que você queira falar sobre isso. Eu não me incomodo, sou bom ouvinte, meio intrometido, mas bom ouvinte.
- Sabe que eu não ia entrar naquele bar hoje?
- Sério?
- Tinha acabado de ver um filme chato pra cacete, num cineclube ali no Centro. Liguei para casa e ouvi essa mensagem, essa porra dessa mensagem e pensei: uma cerveja. Preciso de uma cerveja. Então você se aproximou.
- Eu percebi que você precisava relaxar.
- Papo furado.
- Nada, percebi mesmo. Quem faz o que eu faço...
- Sexo.
- Quem faz o que eu faço, precisa saber reconhecer as necessidades.
- Lá vem você com a sua filosofia.
- Mas é verdade. Um homem que precisa relaxar precisa ser tratado de maneira diferente do que um que procura só uma sacanagem.
- Você poderia escrever um livro.
- Esse assunto é velho, não rende mais. Outra noite saí com um cara que queria ler para mim.
- Ler?
- É. Ele me pagou a noite para ficar lendo para mim. Ele leu trechos de livros clássicos, poesia, até letras de música. Parecia um recital. Sujeito bacana. Se não era ator, deveria ter sido. Lia muito bem. Lia compreendendo.
- Você não acha arriscado?
- Viver é...
- Me poupe das frases de efeito.
- Mas não é um risco? Essa cidade é um risco. Tem gente que morre dentro de casa por bala perdida.
- Tem gente que morre dormindo.
- Morrer não é o problema. A crueldade indiscriminada me assusta mais.
- Então, você não acha arriscado? Sair com qualquer pessoa, sem conhecer, sem saber nada. Eu não falo nem de doenças. Mas o risco de esbarrar em algum maluco, alguém violento, alguém que foda com a sua vida sem se importar com nada.
- Não saber nada às vezes é a melhor solução. Tenho clientes fixos, alguns deles, que eu não sei o nome verdadeiro. Eu chamo pelo nome que eles escolhem. Não faço perguntas. Ouço, se quiser falar sobre a vida, o céu, a esposa, os filhos, o cachorro, eu ouço. E no final do discurso, tem sempre uma lágrima presa no canto do olho. É nesse momento que o sexo acontece. Como se viesse para lavar a vida pregressa. Para levar embora os problemas como em enxurrada. De uma certa forma, eu sou responsável por levar embora o lixo dessas pessoas.
- Eu precisaria de análise. De um acompanhamento profissional.
- Uma vez por semana. Religiosamente.
- Você se expressa muito bem. É seguro demais em algumas opiniões e eu tenho um pé atrás com pessoas como você...
- Pessoas como eu?
- Pessoas seguras, que não vacilam.
- Eu sou um decidido inseguro.
- Fica?
- Sim.


III

- Você disse que não fazia perguntas.
- Sim, eu disse. Mas esse cara, o do recado, vocês não estão mais juntos?
- A gente vive uma história, quer dizer, nós nunca assumimos nenhum compromisso oficial, mas são cinco, quase seis anos de... cinco anos de... amor, eu acho.
- Eu sou mais prático. De uma certa forma, para me proteger. Eu não me arrisco em situações indefinidas.
- Mas a gente não escolhe por quem vai se apaixonar. É incontrolável, é imprevisível. Não dá para racionalizar e cair fora porque pintou sujeira.
- Esse é o discurso romântico.
- Não, esse é o discurso real! Como é que você vai controlar uma situação, um sentimento, os impulsos?
- Não alimentando.
- Não sou tão frio.
- Mas você compreende o que eu digo? Que para se proteger é preciso não avançar?
- Eu compreendo. Mas não serve para mim. Nada do que eu fiz até hoje, nem no trabalho nem no amor, eu deixei de me envolver, de avançar, alimentar as dúvidas, os afetos, os espaços.
- Você também se expressa bem. É fácil conversar com você.
- Você costuma filosofar tanto com os seus clientes?
- Quase nunca.
- Ainda bem. Senão eu ia achar que sua profissão era um saco.
- Sua cama sempre fez esse barulho horroroso?
- Não. O barulho é da mola. Se você tivesse sido mais gentil...
- Eu quebrei a cama?
- Não, claro que não. Eu estava brincando. E você?
- Eu?
- Você não tem ninguém? Um amor?
- Não.
- Ninguém?
- Ninguém. Eu já fui apaixonado, muito apaixonado. Terminou de maneira catastrófica. Doeu forte, tão forte, que eu desisti. Não tem gente que desiste de um sonho? Eu desisti...
- Do amor?
- É. Da ilusão do amor. Dessa onda romântica, do entusiasmo que tira o ar, daquela história de princesa na torre e príncipe no cavalo.
- Mas viver sem amor...
- Eu não vivo sem amor. Tenho um sobrinho de quatro anos, é o amor da minha vida. E minha família é querida, são pessoas amáveis, amadas. Eu desisti da paixão. Da vida a dois. Desertei da sede de querer encontrar alguém para dividir. A gente vive uma época...
- Que não dá para dividir. O pior é que eu te entendo.
- Você não se incomoda se eu for embora agora?
- Não. Achei que você fosse dormir comigo. Tomar um café da manhã e depois ir.
- Eu dispenso o café se não for problema para você.
- Não, não é. Toma aqui. O prometido.
- Aqui tem mais dinheiro do que o combinado.
- Eu sei. Fica como um bônus pela conversa. Pelo quase embate.
- Não vou recusar.
- Eu imaginei que não, afinal o motivo é bom.
- Se pintar a vontade de me ver de novo, você sabe onde me encontrar.
- Nunca paguei o mesmo homem mais de uma vez.
- Sim, mas vai que você sente saudades de ouvir a mola da sua cama.
- Você tem o sorriso bonito.
- Você tem a voz suave.
- Eu te levo até o elevador. Deixa eu colocar uma calça.


IV

- Se cuida. Cuidado com a noite. Com os loucos da madrugada. A cidade muda quando anoitece, não é?
- Totalmente. Se cuida com o louco do recado. Não deixe ele parecer mais forte do que deveria.
- Pode deixar. Não deixo não. Boa sorte. Até qualquer dia.
- O elevador.
- Sim, o elevador. Tem certeza de que não quer ficar?
- Não, não tenho, mas preciso ir.
- Apague a luz do elevador e veja que onda estranha descer no escuro total.
- Morro de medo do escuro.
- Meus medos são outros.
- Bom, já está ficando chato. Deixa eu te abraçar.

E no abraço, perceberam o quanto era confortável. O quanto fazia sentido a falta de sentido da noite, dos últimos acontecimentos, da vida em si. No abraço, sentiram o encaixe das pernas, do quadril, das mãos quentes de um ao redor do corpo do outro. E era bom. Quase se beijaram. Mas optaram pelo olhar, ainda abraçados, profundo. Optaram também pelo silêncio que além de confortável, resumia tudo aquilo que não sabiam vestir em palavras simplesmente por não saber o que dizer. Abraçaram-se forte, um abraço seguro de socorro, de agradecimento, de saudade, de desejo de permanecer. Depois o elevador desceu com Fernando dentro com o dedo inseguro no botão que apagava a luz. E enquanto voltava para o apartamento, o rapaz lembrou que não havia dito o seu nome. Que em nenhum momento da noite, tinha se apresentado. Correu até a porta do elevador com o desejo de reparar o incidente. Mas já estava no térreo. Correu até ao interfone para que o porteiro impedisse a saída de Fernando e ele pudesse então descer e se apresentar. Mas era tarde demais. A noite havia engolido o rapaz de volta. E dentro do apartamento sozinho, sem pensar em chorar, já chorava por infinitos motivos e repetia:

- Ricardo. Eu me chamo Ricardo. Ricardo é o meu nome. Ricardo.


segunda-feira, março 19, 2007

O DIABO VESTE PRADA de David Frankel

* texto de Outubro/2006 do antigo blog

- repostado por necessidade e felicidade -

ZYX noventa e quatro megahertz, entre o AM e o FM, a rádio que te faz ouvir o que ninguém mais ouve ou não quer mais ouvir. Anoitece no Rio de Janeiro e a previsão é de uma noite fria, dizem os especialistas do tempo, portanto se você vai sair de casa, agasalhe-se porque a temperatura cairá ainda mais. Para os que estão no carro, evitem a ponte, ela está congestionada. Nossos helicópteros sobrevoam neste momento a região e todos os pontos de acesso estão completamente engarrafados e os carros não se locomovem. A previsão é de que a noite avance complicada para quem precisa passar pela ponte. Muita gente precisa de paciência para suportar o engarrafamento e compreensão, já que todos decidiram sair da cidade após as últimas notícias. Você que permaneceu em casa, você que está saindo do trabalho e caminha pelas ruas, você que não se abalou e não se deixou contaminar pelo pânico, encontra admiração neste que vos acompanha. Também não fiz as malas ou me apavorei. Como dizia minha sábia avó antes de partir, já que está tudo uma merda, tenha a cortesia de puxar a descarga. Assim, caro ouvinte, escassos ouvintes, é provável que eu esteja fazendo o meu último programa nessa linda noite de primavera. É provável que hoje também eu enlouqueça sem moderação e mude as regras de toda a programação. Hoje eu farei o que tiver vontade e se você ligou o rádio neste minuto, estou dizendo que tranquei a porta do estúdio com o cadeado e ativei o alarme para que ninguém se aproxime. Hoje, meu caro, a programação está tão eclética quanto especial. Hoje você não vai ouvir os nossos patrocinadores. Hoje você não vai ouvir os jabás que eles empurram dentro das suas casas. Hoje você não vai sequer ouvir música alguma. Hoje o microfone é meu e a opção é sua. Você pode participar do programa da forma que imaginar. Estou liberando as linhas telefônicas e pelo site da rádio, vocês podem mandar suas mensagens, lembrando que elas não serão selecionadas, vou ler tudo, seja uma declaração de amor ou um xingamento. Chega de censura, chega de estabelecer o bom senso e seguir as normas da casa.

Recebendo a nossa primeira mensagem de alguém anônimo, uma pena não se identificar, caro ouvinte. Anônimo diz para Lurdes, da Penha, que não quer mais ouvir seus problemas. Lurdes, eu te agüentei por todos esses anos, muitas vezes eu fingi te ouvir e pensava nas contas, nos planos ou no cardápio da semana. Seus problemas são rasos. Você me dá sono. Sua crença religiosa me dá náuseas. Enquanto você não mudar a sua aparência e melhorar o seu hálito, eu não me aproximo mais de você. Está certo, anônimo. Começamos bem a noite e Lurdes, minha querida, você tem todo o direito de se defender. Aguardamos a sua resposta ao nosso querido anônimo da Penha, que não só captou o espírito do programa, como fez uma bela declaração. Recebi a informação agora de que parte dos motoristas congestionados, estão abandonando os seus carros e caminhando sob a chuva fina em direção ao outro lado da ponte. Segundo as informações do nosso repórter aéreo, as pessoas estão controladas e não há notícias de feridos. A movimentação é grande, o fluxo de pessoas é intenso e os faróis dos carros estão, em sua maioria, ligados. Nosso repórter diz que a imagem aérea é muito bonita, pois o que se vê, na verdade, é todo o percurso que liga as duas cidades iluminado pelos carros parados. Nosso repórter diz também para que sua esposa não o espere para o jantar que ele hoje não volta para casa. Diz que a comida da esposa é uma penitência e que está indo para a churrascaria mais próxima do heliporto. Atendendo a nossa primeira ligação, você está no ar, qual o seu recado:

- Eu queria te dizer que eu te amo. Que eu nunca tive coragem de te dizer isso, assim, eu te amo. Mas hoje eu digo. Tudo em você me interessa, sempre me interessou. Até esse programa de merda que você apresenta. Até o seu desodorante lilás, que mais parece um inseticida, mas que você gosta tanto.
- Felipe?
- Eu te amo desde o dia que você me olhou nos olhos, dentro dos meus olhos e me abraçou dizendo que precisava conversar.
- Felipe, escuta...
- Não, não quero te ouvir. Não é para perder a educação, fazer o que tiver vontade, demolir as convenções? Então... Eu te amo e é uma merda que eu te ame sabendo que você gosta de outra pessoa. Sabendo que você ama um idiota que mal sabe falar, que se comporta como uma criança cada vez que saímos todos juntos.
- Caros ouvintes, eu vou fazer uma pausa. Ouçam agora a ...
- Se você me tirar do ar, nunca mais, está me ouvindo? Não te vejo nunca mais. Não te atendo, não te procuro, nunca mais.
- Nunca mais é daqui a pouco, Felipe.
- Eu te amo, feito um poema do Vinícius, feito um menino que percebeu a vida mudar ao se olhar no espelho. Eu te amo e eu sempre pensei que você soubesse e que um dia, ia nos dar uma chance. Nem que estivéssemos bêbados, os dois, cantando a vida, tropeçando as pernas, eu sempre tive a ilusão de que um dia você ia me abraçar e me dizer que depois de todos esses anos, a gente podia tentar uma noite, uma loucura, um beijo que fosse, porque a intimidade, a cumplicidade, tudo isso nos daria a segurança para ousar.
- Eu preciso desligar. Eu tenho um programa para continuar e não é sobre mim, essa talvez seja a última noite de todas as noites. A maior parte das pessoas ou estão na ponte em pânico ou estão enlouquecendo moderadamente. Eu achei que poderia, aos poucos, ir dando adeus. Eu não sei o que te dizer.
- Venha para cá, abandone essa rádio, roube uma garrafa de vinho e toque a campainha. Faça amor comigo a noite toda. Beije a minha boca. Arranhe as minhas costas. Entre por essa porta agora e diga que me...
- Por favor, Felipe, me poupe do ridículo.
- Você tem meia hora.
- Eu agradeço o seu sentimento.
- Foda-se.
- Eu agradeço de coração. Eu sempre percebi. Eu nunca disse nada porque achei que não havia o que dizer. Não há. Eu sempre me senti seguro perto de você. Protegido. Acho que é assim quando a gente tem um amigo por perto. Me desculpa se eu te magoei com os meus discursos amorosos. Com as minhas queixas sobre os meus namorados. O meu coração.
- Não te desculpo. Doeu muito. E eu sempre passei por cima do que eu estava sentindo por você para te confortar, para te deixar bem. Mas eu...
- Eu não te amo. Não da forma como você gostaria. Eu não te amo mesmo. Eu não quero te dar uma chance. Eu não quero passar essa noite com você. Eu acho lindo o teu amor. Mas é só isso que eu posso achar: lindo.

Não me diga o que fazer. Eu não sei o que fazer. A responsabilidade das suas intenções pertence somente a você. Eu prefiro a lucidez, apesar de todo o, ia dizer caos, mas prefiro o problema. Eu não sei retribuir carinho. Sou rápido e meu escudo é ágil e irônico. Gosto de causar estranheza simplesmente pelo fato de ser estranho, o que me deixa muito confortável: causar uma sensação que mais cedo ou mais tarde, as pessoas vão ter. Eu não escondo o que eu sinto. Mesmo que não revele nos olhos, eu vou encontrar uma maneira de sinalizar. Adoro o sutil. Atitudes nobres não me impressionam. Sinceridade me conquista. Olhos nos olhos e não há ator que não se desconcerte. Sorrir é infinitamente melhor e mais gostoso do que ficar pelos cantos me lamentando. Não tenho saco para lamentações. Nem as minhas, nem as alheias. A noite vai cair, o dia vai amanhecer e tudo o que já é, vai continuar sendo. Os amores sem soluções, as traições inevitáveis, a perda da ingenuidade, o novo olhar sobre o velho assunto, o carinho que alimenta as farpas que iluminam. Tudo o que foi, já era no tempo. Tudo o que é. Tudo o que vier. Dos mais lindos e perfeitos laços aos mais complexos e surdos amores. Disfarçados de metáforas baratas. No mais limpo dos papéis, assinado em caneta tinteiro.

- Aqui é a Lurdes da Penha. Diz para aquele canalha cachaceiro que eu estou no final da ponte. E que se eu conseguir atravessar, eu nunca mais quero saber dele. E caso eu não consiga, diz que ele foi a minha doença mais letal. A minha praga, o meu amor.

quarta-feira, março 14, 2007

PARADISE NOW de Hany Abu-Assad

Não foda a minha paciência com idéias que você ouviu por aí e resolveu repetir. Não perca tempo citando gente que eu já li e não tente me enganar a conversa dizendo trechos de filmes e personagens porque em algum momento, eu vou perceber. Não use sua noite listando tudo o que já viu ou ouviu pelo simples prazer do listar. Dentro do seu excesso de informações não-verdadeiras, tudo o que existe, no real, é uma crescente irritação. Aguda. Eu não sou responsável por você, saiba. Não tenho vocação para alimentar qualquer figura paternal. Recuso todo o tipo de adjetivo que você queira me classificar. Não tenho talento para ser seu guia cultural sob pressão. Disputas sobre o nada, hoje e sempre, nunca me atraíram. Se eu fui mais ao cinema, se li mais livros ou se ouvi mais canções, coloque na balança a diferença de idade entre nós. Não sou mais por esse motivo. Certamente alguém com dez anos a mais – e nem preciso ir tão longe - experimentou mais ou melhor do que eu porque está aqui há mais tempo. Não que o tempo defina o grau de conhecimento de uma pessoa. Mas entre nós, é fato. Grande parte do que te impressiona já me impressionou. E se você precisa comunicar as tuas impressões ao mundo, encontre outra maneira que não seja encher a minha caixa de mensagens. Que não me envolva porque se sua explosão e suas questões são teatrais e precisam de platéia, as minhas eu resolvo da minha maneira sem precisar da sua aprovação. Preciso dizer também que conselhos e ‘dicas, cara’ são bem vindos quando em algum momento, a gente percebe intimidade ou carinho ou oportunidade de dizer o que pensa. Não tenho carinho por você. Não somos íntimos. E em nenhum momento, durante os seus monólogos sobre o nada, te fiz perceber que poderias caminhar em minha direção.

Então fica assim, se quiser ver os filmes que eu tanto falo, veja. E tire as suas próprias conclusões. Faça valer o encontro entre o teu universo e a história que você vai ouvir. Eu não tenho nada com o teu envolvimento com a arte. Não quero ter. Não deixo que tenhas. Se em algum momento da minha vida, eu me senti devastado pelo cinema, se me comovi ouvindo uma música, se gargalhei com um livro ou se gritei quando me disseram que o amor havia acabado, tudo isso faz parte da pessoa que eu sou. Tudo isso reverbera em mim todos os dias todos os segundos e me influencia sem me coagir. Das minhas relações com o universo, com os homens, com a arte, deixe que eu cuide. Descubra a sua. Os seus. Perceba no teu caminhar, onde os teus passos vão te levar. Mas não grude em mim. Nem me pegue como exemplo prêmio porque eu não quero te dar carona. Se quiser discutir cinema e me fazer engolir as suas opiniões, encontre outro. Eu não discuto sobre certas potências. Porque a minha relação com algumas obras são pessoais. E eu não falo sobre a minha vida pessoal com qualquer pessoa. Eu ando de saco cheio de gente lotada de idéias e conceitos sobre todas as coisas que não têm fim. Eu ando impaciente com artistas e escritores e atores que não sabem ou não têm o que dizer. Eu quero gente para trocar. Não para disputar. Não para desaguar opiniões coladas do que leu ou ouviu por aí. Porque ironicamente eu também ouço e leio por aí. E discordo, tendo o direito, mas respeito. Sem pedras na mão. Sem um discurso adolescente pronto para demolir uma opinião. Sem a língua afiada do que ouviu o professor da universidade dizer. Pense que na internet, tudo depende da disponibilidade do clique. Se nada te interessa, por qualquer motivo que seja seu, entre em qualquer outro lugar do universo virtual. Vá buscar afinidades. Mas não encha a porra do meu saco. Porque a casa é minha. As chaves eu mandei fazer. Aliás, pedi para que fizessem. E aqui não tem lugar para você.



quinta-feira, março 08, 2007

ADAPTAÇÃO de Spike Jonzie

Eu sou desgovernado. Por natureza. Mas sou uma série de outros adjetivos que não sei dizer agora porque quero te contar de outros assuntos. Escuta, é no impulso e no ferver do engarrafamento:

Eu vou te escrever desgovernado e sem a preocupação com os tons de início, meio ou fim. Quero começar com qualquer frase que já te coloque no meio do vendaval e não vou te fornecer qualquer informação porque estar perdido faz parte da condição. Não vou listar os fatos ou citar momentos. Se eu der nome, não transformo o grito preso em nada além de um ruído abafado. Eu quero que o grito não seja só som, mas que desafogue os nós. Preciso transformar o que há, ainda que eu não saiba ou veja, mas preciso da transformação para que não fique o ressentimento pelo ressentimento. A mágoa crua. Não há o que fazer quando o assunto é pensar no que fazer. Deixamos a vida rolar, como sempre fizemos, vamos nos despedindo sem fim até o próximo abraço adeus que logo após a esquina vai nos esbarrar em algum entusiasta olá, vamos viver outra história repetindo alguns vícios primários e cavando mágoas maiúsculas que vão nos atar de tal maneira que o significado do ir e vir vão se perder no dicionário pessoa de cada tanto. O fato é que eu me deixei levar. O fato é que. O fato mesmo é que eu me acostumei à tua desatenção falsa. Eu me acostumei ao teu gelo. E no raso, bem na superfície, eu preciso desse mau trato. Eu, masoquista de mim mesmo, preciso do chicote teu para desembaralhar as letras, derramar a tinta forte e me roubar a noite de sono te escrevendo para que não leias. Ou finja não ler. Preciso mesmo é derreter a subserviência. E retornar aos valores do sim e do não. A noite clara de Copacabana e eu atravesso a cidade embaralhado em palavras que ousamos trocar. Eu não sei muito da vida e eu já te disse que algumas certezas me assustam pelo fato nú de se encerrarem em opiniões lápides indiscutíveis. Mas eu posso te dizer que somos homens inquietos por natureza e ávidos pelo momento presente, doce Clarice. Somos dois embates. Duas forças que se complementam. Duas pessoas que não se encerram com um ponto final. Que vão além do sim e do não. Além do chegar e partir porque os nomes que dão nomes aos nomes, muitas vezes não fazem sentido racional ou real ou literal. Então não adianta eu pensar que acabou ou que é hora de deixar a vida nos distanciar porque essa gramática não nos faz diferença. Sentido existe nos mínimos – querer, buscar, amar, não saber – que não são nem tão óbvios. Sentido existe no mínimo dos mínimos: boca, sede, toque, mãos, suor, sal, volumes, impulsos, língua, olhos, dentes, pau urgente. Você não me confunde mais e eu ia dizer que perdemos um tanto do vigor, mas é mentira. Toda vez que eu me aproximo de você, cada vez que eu me sento à mesa para comer, esse óbvio necessário de mastigar, seja em qualquer restaurante de esquina seja no aconchego do teu apartamento, aciona-se em algum ponto, um desequilíbrio da natureza, alguma enchente ou terremoto ou raios furiosos sem direção que me racham a base. Eu nunca mais quero saber dos nós. De hoje em diante, todo o laço deve ser feito como toda criança ao aprender a atar. Primeiro um lado, depois o outro e depois o laço. Sem nós porque é na prática do laço que ele deixa de desatar.

Eu sou desgovernado por natureza e espero Godot porque eu acredito que em algum momento, quando eu menos esperar, a vida vai se abrir. Eu suporto raios e compreendo os choques. A vida real não me assusta. Vez ou outra ela me tira o sono, mas não me intimida. Conheço dores e desfiz mágoas. Caminhos nem sempre tão acessíveis, muitas vezes eu me percebi no meio da travessia sem muita opção de recomeço. Ou retorno. Queria me salvar do ridículo ao escrever. Queria me salvar do abismo e da sensação de angústia crescente quando o assunto esbarra em nós. Eu espero Godot e se insisto nessa imagem é porque ela me faz sentido. E mais que isso, me indica direções. Dentro da confusão natural de me perder entre as palavras, a vida aqui fora também se desencontra. Entrei no salão e soltei o cabelo que caiu abaixo do ombro e disse assim ao rapaz: por favor, corte tudo, tente um asa delta e ele exclamou um 'de jeito nenhum'. Nenhuma mudança deve ser assim tão brusca. Nenhuma decisão pode romper o impulso sem reflexão, ele me disse sem dizer. Eu saí puto da vida porque cortar o cabelo deveria ser um mínimo óbvio incontestável. Eu preciso de adaptação. Amar alguém é deixar alguém entrar e se adaptar à invasão alheia. Eu preciso do inverso. Me adaptar para que me desocupes e me deixes como eu era, antes de. Eu não sou o mesmo de ainda agora. Imagine o de antes de. Desgovernado por natureza. Na ânsia do acerto, não daquele da gramática, mas daquele que reverbera por dentro e faz sentido. Eu te disse que eu precisava de algum acontecimento que mudasse os meus planos. E você compreendeu e usou a palavra: sacudir.Você precisa ser sacudido e nem me olhou nos olhos. Eu não sei do que preciso. Se soubesse, cometeria menos dores. Adaptação. Eu fiquei com essa idéia do trajeto de Copacabana até a minha casa. Nem a final do futebol nem o Flamengo campeão nem o trânsito que eu peguei mudaram a idéia de que deve haver harmonia quando a gente se adapta ao meio, ao outro, a nós mesmos. Adaptar sem abrir mão de ser quem é. Adaptar sem deixar a personalidade perder a força. A forma. Adaptar feito gente grande que sofre porque é preciso se adaptar. Pra poder viver. E é um caminho absolutamente encantador. Depois que se chega lá. Esse durante, esse agora, é um grito seco de socorro e alegria.

segunda-feira, março 05, 2007

MARIA ANTONIETA de Sofia Coppola

Eu joguei fora todas as palavras que eu gostaria de te dizer. Amassei em papel branco frases e mais frases que não te informavam mais do que você já sabe. Não há surpresas hoje. Talvez nunca tenha havido. Talvez tenhamos confundido o entusiasmo inicial com promessas de um futuro que se encerrou antes de se configurar. E se eu optar pela tecla do talvez, talvez outra história que não a nossa se construa diante das suposições e das direções que não ousamos. O fato é que hoje despertei consciente de tudo o que não somos mais um para o outro. Ciente e amargo dentro do apartamento de que não somos mais os dois homens que se reconheceram tempos atrás pelas ruas da cidade. E confesso um desconforto constatar que de todos os planos e de todo os sonhos, o que sustenta o pensamento é a poeira e a sensação de impotência de que tudo o que juntos planejamos, não se constituiu. Não tomou forma por falta de tempo. De oportunidade. De força. Ou disponibilidade de ambas as partes. No meio do caminho, nós perdemos a cadência. Cada qual encontrou um novo jeito de rimar os passos. Cada qual descobriu boas curvas e novas oportunidades de aventura que por pura ironia, não incluíam a dupla. E ainda que por um segundo, o pensamento ainda ventasse sobre o outro, um segundo apenas não foi suficiente para que não tombássemos em indivíduos sem laços. Desatamos. Sem dramas. Sem sinalizarmos Sem percebermos. Sem finalizarmos. O final atropelou o meio.

Algumas noites dormindo pouco. Alguns dias funcionando no automático. E depois, ao constatar o de dentro, que atravessa a sensibilidade, os reais motivos, as verdadeiras razões de estar tão ou mais inconstante que o natural. É como deixar rolar uma bola de neve e só perceber a gravidade da velocidade ao espatifar e desmanchar. Derreter. De maneira que eu não vou radiografar os dias, os anos e os nós. Tentar encontrar qualquer explicação seria como cometer um mergulho sem volta. Justificar o que ainda não foi compreendido, não parece possível. E não é. Então chega o momento que não é o momento de dizer adeus. Não é o momento de fazer as malas. Ou bater a porta depois do fim. Não. Esse momento de agora, é muito mais o da percepção de que não somos mais. Não somos mais depois de tanto tempo sendo. Mas juntos já não somamos. Juntos não somos mais uma dupla. E por mais que doa – e dói – tudo o que eu consigo fazer agora sem parecer ridículo ou excessivo é aceitar os fatos. Sem dividir com nenhum dos amigos a nossa conversa. Sem falar das entrelinhas. Sem mencionar o que foi deixando de ser. Não é porque fomos amigos a vida inteira, que precisamos continuar a ser. Assim, certeiro, eu ouvi. Ou pensei ouvir. Mas o celular falhou. E de tanto te ouvir não me ouvir, fiz monólogos para platéias vazias. E engoli a desatenção mascarada do reflexo do ego no espelho. Que raramente me refletia.

Senhor você, certos olhares são inesquecíveis. Certos abraços são inexplicáveis. Certos sorrisos são fatais. Certos laços são eternos. Certas pessoas são belos gols. Do que virá, não posso e não quero arriscar. Certos fatos a gente engole por mais amargo que possa parecer. Tudo desmorona o tempo todo, mesmo no processo constante da construção. Desconstruir os escombros é voar sem brilho. Sublinhar o caos. Alfinetar a dor. Perder o interesse é pior do que dar adeus. Porque no adeus as relações se encerram. As direções acontecem naturalmente. Certas dores são indeléveis. Isso é tudo o que eu tenho para dizer. No tempo da indelicadeza, você foi o melhor dos carinhos. Foi meu Chaplin vagabundo cantando Sorri sem se importar com o mundo, brega de dizer chega e nem aí. Tudo o que importava era. Linda a última imagem de Maria Antonieta. Porque é só a imagem e não precisa de palavras para ser compreendida. Sou fã das imagens carregadas de significados. Porque é potencialmente plural. Ela se despede do cenário mais bonito, do jardim dos seus sonhos, da arquitetura grandiosa do palácio e parte. Parte partida. Logo depois, o caos do durante. A desordem. Como uma radiografia daquilo que não pode ser visto. Eu te escrevi folhas em branco e rasguei tudo logo depois. Literatura frágil e ressentida. Produto de um menino mimado que não superou uma série de eventos. Certas dores são indeléveis. Eu repito. Não partir me impulsiona o desejo de querer. Querer durante.


quinta-feira, março 01, 2007

IMAGINE EU E VOCÊ de Ol Parker
No embaralho da cidade, a gente se encontra no repente e comemora sorrindo um abraço que horas depois, vai se estender em quatro garrafas de cerveja daquele bar de esquina. A cerveja gelada, vamos comemorar o encontro, o verão se despedindo, todo e qualquer motivo para esquecer da vida e garçom, mais uma, por favor e cara, que saudade de olhar para você. Então eu lembrei desse charme inconsciente, desses olhos que olham nos olhos e dizem o que sentem, assim, sem peso, sem nenhum interesse aparente. Lembrei também que foi em algum momento como esses, que eu me apaixonei, alvo certeiro e óbvio e me afastei logo depois, para que o coração não inflamasse o fato simples de que ambos encarávamos o amor, de forma diferente. Ele namorava uma menina da cidade de onde havia saído recentemente para estudar. Eu me desenrolava de um caso típico de quero comer você por uns dias e depois esquecer teu telefone. Nos encontramos, não no repente, mas fomos reunidos para trabalharmos juntos. E foi no desenrolar dos dias, que nos aproximamos no tempo das afinidades, no ritmo do querer bem. Confesso que o primeiro contato partiu de uma observação particular que presenciei e que alimentei o desejo de arriscar – não na paixão, que veio depois, naturalmente e impiedosa – mas arriscar a pessoa. Sabe a sensação de quando você percebe alguém de forma especial e compreende que aquela pessoa vale o risco? Na pior das hipóteses, uma grande amizade. O garçom na necessidade da insistência: mais uma? Em coro, respondemos que sim.

Os mais diversos assuntos. Algumas perguntas simples sobre a família e o apartamento. Outras mais indecisas sobre o coração, que ainda não tinha sido mencionado de forma direta, mas responsável por algumas reticências. Olhos nos olhos, sem diálogo algum acontecendo na prática, mas no silêncio sublinhado pelo álcool e pelo sol amarelo indo embora, muitas palavras eu não disse por não conseguir organizá-las. Algumas outras ele pareceu dizer, mas não abriu a boca e o sorriso brilhava e assim também os olhos brilhavam. Porque continuar te encontrando e sendo você tão carinhoso e o meu amor mais uma vez batendo na trave, certamente eu ia sofrer, eu tive vontade de dizer quando ele questionou a minha ausência. Mas eu estou por aí, nos mesmos lugares de sempre. Encontrando as mesmas pessoas e tomando os mesmos porres. Essa cidade é um funil. Se você conhece um, você acaba se misturando aos grupos e encontrando as mesmas pessoas. Ando desleixado com a turma, com os ‘de sempre’. Depois que a Mila foi para Paris, a sensação que eu tenho é a de que nos perdemos todos. Como se ela fosse o motivo, o melhor dos motivos para estarmos juntos. Fomos reduzidos a alguns telefonemas, um ou dois cinemas, um show no Circo Voador e alguns recados frios na internet. Mas e você, me conte, namorando, escrevendo, e a locadora, como vai a locadora? É melhor eu pedir um refrigerante pra cortar o efeito da bebida. Eu sou fraco, você sabe. Eu sei, ele me disse com o sorriso armado. Respondi todas as perguntas em crescente euforia porque com ele os assuntos se misturam sem que percebamos e retomamos e abandonamos as frases porque a velocidade do pensamento dispara e é fácil, esse foi um dos meus sustos mais preciosos: é fácil me comunicar.

- Me conta, então.
- Pergunte.
- Do coração.
- Pergunte.
- Você se magoou comigo?
- De forma alguma.
- Você sumiu. Não me atendia. Não retornava os recados.
- A verdade é que eu fugi. Fugi dos teus carinhos, da tua atenção.
- Mas o que houve?
- Fugi da possibilidade de me apaixonar por você. De ouvir você me dizer que não é a sua praia, de que o teu desejo vai para outra direção.
- Entendo. Eu sinto tanto a sua falta.
- Eu também. Mas você compreende?
- Quase nada.
- Sirva-me uma bebida gelada, coloque uma música e dance comigo parte da noite até que me beije e me embriague de um perfume para ser lembrado. Seja íntimo e seja grande e seja tímido e imponha com elegância. Sirva-me outra bebida gelada e acompanhe o ritmo das minhas intenções, não questione, não perturbe, não tropece, não derrame, não transborde, não exploda, não interrompa o meu beijo que também é ponte e convite. Telefone quando sentir saudade e diga o que anda fazendo por aí, das dificuldades e imperfeições da vida, da generosidade de estranhos e da antipatia de amigos, me fale sobre as flores, sobre as cores do céu e de pequenos detalhes do todo, o que teus olhos encontram, enxergam, eternizam. Me conte dos beijos das noites das tardes do sexo do olhar da sedução da atmosfera e perfumes e carícias e mapas e curvas e montanhas. Diga que sente minha falta e que a saudade é grande como o desejo de viver a vida e mergulhar nos sonhos alheios para encontrar os seus próprios sonhos e que um dia você volta e bate na janela e me diz feliz que me ama e que a distância te ensinou o caminho do meu jardim e que é bom tentar mais uma temporada, o tempo do amor, aquele precipício necessário, saltos longos sem nenhuma possibilidade de certeza, onde tudo pode onde nada deve e que não existe explicação lógica e o cérebro não acompanha o coração e vice-versa.
Mas eu não disse nada disso.
Encostou a cabeça no meu ombro e repetiu um quase nada de canto de boca. E disse que a vida confunde. Disse assim que precisa se apaixonar por uma mulher irresistível e que precisa de um amor. Viver uma história nova de amor e passar pela loucura de amar e se deixar amar. Falou em desejo e enfatizou a palavra mulher tantas vezes quanto o álcool lhe soprou. Foi dizendo e me olhando nos olhos. Se aproximava e se afastava e me fazia carinho e sorria aceso. Até que eu o silenciei com as mãos no cabelo e disse antes de me levantar:

- Cara, eu sou a mulher ideal para você.