BEM VINDOS / PARA SEMPRE LYLA / UM VAZIO NO CORAÇÃO
de Lukas Moodysson
I
- Se você não tivesse me encontrado lá no bar, onde você estaria agora?
- Não sei. Pergunta difícil.
- Não é difícil. É simples. Se não tivéssemos nos encontrado, se eu tivesse saído dois minutos antes da porta abrir ou se você tivesse tropeçado na rua e eu saísse antes de você entrar...
- Que diferença faz?
- Não faz nenhuma diferença. Você é sempre seco assim?
- Se não faz nenhuma diferença...
- Eu só te fiz uma pergunta. Você não tem curiosidade? Acho a possibilidade tão fascinante. Às vezes encontrar alguém pode salvar o dia.
- Ou fuder com tudo.
- Ou fuder. Mas eu sou otimista. Acredito que algumas intervenções são realmente divinas e precisam da percepção para não passarem em branco.
- Escuta, essa conversa toda faz parte do pacote para que eu me sinta bem ou você realmente acredita nessas merdas?
- Eu acredito nessas... vírgulas. E nós não combinamos o preço ainda. Posso cobrar alto demais e você não concordar. Posso só aproveitar a cerveja da tua geladeira e não querer trepar com você, bater a porta e cair na noite, de volta.
- Já te disse que dinheiro não é o problema.
- Já te disse que só o dinheiro não me interessa.
- E você busca romance? Amor? Uma história avassaladora?
- Não. Eu busco afinidade. O mínimo para querer abrir o zíper.
- Então você me diz que ainda somos estranhos. E você precisa de estímulo.
- Não. Não disse isso. Disse que lá no bar, você foi interessante. Por isso topei o teu convite. Apartamento, bebida, grana fácil já que o cara parece interessante, eu pensei. Só que desde que chegamos e você ouviu o recado na secretária eletrônica, você ficou amargo.
- Vai me analisar? É sério isso? Um michê de terceira dentro da minha casa, que provavelmente vai ser pago por mim – e posso prever que você não vai recusar a minha grana porque faz um puta frio e o movimento da tua noite, sou eu - me fazendo observações entusiastas sobre o acaso, analisando o meu comportamento amargo, foi essa a palavra? e ainda faz jogo duro se vai ou não abrir o zíper, por favor...
- Opa... quem está me analisando é você...
- Das duas uma: ou você viu filmes demais, rapaz ou eu retorno à minha teoria de que eu só atraio gente problemática.
- Fernando. Eu me chamo Fernando.
- Eu não devo satisfação alguma a você sobre o recado que você ouviu. Aliás, você poderia ter sido educado e ter fingido que não ouviu nada. Eu me sentiria menos constrangido.
- Pois é, o problema é que eu ouvi. E fingir que eu não ouvi, parecer ausente para te deixar confortável, eu não faria isso. Não sou o tipo de pessoa que passa por uma tempestade fingindo que o céu está aberto.
- Deveria ser. Deveria. Eu imagino o tipo de pessoas que passam por você todas as noites. Certamente algumas delas, ou a maior parte delas, deve ter particularidades sexuais, certas taras, devem pedir para que você as satisfaça, já que pagando a culpa se atenua.
- Alguém te machucou feio, cara.
- Acho melhor você ir embora.
- Concordo. Acho que eu me enganei em relação a você. Eu raramente me engano.
- Você não erra?
- Muito. Mas eu raramente me engano com uma pessoa. Normalmente se a minha primeira impressão é boa, é porque a pessoa vale à pena.
- Já pensou em estudar filosofia?
- Já pensou em aprender boas maneiras?
- Você é muito arrogante para quem precisa de dinheiro.
- Você é muito arrogante com a sua conta bancária. Posso usar o banheiro antes de sair?
- A última porta do corredor.
II
- Eu queria te pedir desculpas.
- Eu posso aceitar...
- Me perdoe a falta de tolerância. É que existe esse cara na minha vida. Então quando ele se manifesta, mesmo que seja numa mensagem eletrônica gravada, ele altera a minha vida, o meu estado de espírito. É uma história não resolvida. Um amor aos pedaços. Eu consigo superar um pedaço e logo depois encontro outra parte quebrada. Incompleta.
- Tudo bem, você não me deve satisfações. À não ser que você queira falar sobre isso. Eu não me incomodo, sou bom ouvinte, meio intrometido, mas bom ouvinte.
- Sabe que eu não ia entrar naquele bar hoje?
- Sério?
- Tinha acabado de ver um filme chato pra cacete, num cineclube ali no Centro. Liguei para casa e ouvi essa mensagem, essa porra dessa mensagem e pensei: uma cerveja. Preciso de uma cerveja. Então você se aproximou.
- Eu percebi que você precisava relaxar.
- Papo furado.
- Nada, percebi mesmo. Quem faz o que eu faço...
- Sexo.
- Quem faz o que eu faço, precisa saber reconhecer as necessidades.
- Lá vem você com a sua filosofia.
- Mas é verdade. Um homem que precisa relaxar precisa ser tratado de maneira diferente do que um que procura só uma sacanagem.
- Você poderia escrever um livro.
- Esse assunto é velho, não rende mais. Outra noite saí com um cara que queria ler para mim.
- Ler?
- É. Ele me pagou a noite para ficar lendo para mim. Ele leu trechos de livros clássicos, poesia, até letras de música. Parecia um recital. Sujeito bacana. Se não era ator, deveria ter sido. Lia muito bem. Lia compreendendo.
- Você não acha arriscado?
- Viver é...
- Me poupe das frases de efeito.
- Mas não é um risco? Essa cidade é um risco. Tem gente que morre dentro de casa por bala perdida.
- Tem gente que morre dormindo.
- Morrer não é o problema. A crueldade indiscriminada me assusta mais.
- Então, você não acha arriscado? Sair com qualquer pessoa, sem conhecer, sem saber nada. Eu não falo nem de doenças. Mas o risco de esbarrar em algum maluco, alguém violento, alguém que foda com a sua vida sem se importar com nada.
- Não saber nada às vezes é a melhor solução. Tenho clientes fixos, alguns deles, que eu não sei o nome verdadeiro. Eu chamo pelo nome que eles escolhem. Não faço perguntas. Ouço, se quiser falar sobre a vida, o céu, a esposa, os filhos, o cachorro, eu ouço. E no final do discurso, tem sempre uma lágrima presa no canto do olho. É nesse momento que o sexo acontece. Como se viesse para lavar a vida pregressa. Para levar embora os problemas como em enxurrada. De uma certa forma, eu sou responsável por levar embora o lixo dessas pessoas.
- Eu precisaria de análise. De um acompanhamento profissional.
- Uma vez por semana. Religiosamente.
- Você se expressa muito bem. É seguro demais em algumas opiniões e eu tenho um pé atrás com pessoas como você...
- Pessoas como eu?
- Pessoas seguras, que não vacilam.
- Eu sou um decidido inseguro.
- Fica?
- Sim.
III
- Você disse que não fazia perguntas.
- Sim, eu disse. Mas esse cara, o do recado, vocês não estão mais juntos?
- A gente vive uma história, quer dizer, nós nunca assumimos nenhum compromisso oficial, mas são cinco, quase seis anos de... cinco anos de... amor, eu acho.
- Eu sou mais prático. De uma certa forma, para me proteger. Eu não me arrisco em situações indefinidas.
- Mas a gente não escolhe por quem vai se apaixonar. É incontrolável, é imprevisível. Não dá para racionalizar e cair fora porque pintou sujeira.
- Esse é o discurso romântico.
- Não, esse é o discurso real! Como é que você vai controlar uma situação, um sentimento, os impulsos?
- Não alimentando.
- Não sou tão frio.
- Mas você compreende o que eu digo? Que para se proteger é preciso não avançar?
- Eu compreendo. Mas não serve para mim. Nada do que eu fiz até hoje, nem no trabalho nem no amor, eu deixei de me envolver, de avançar, alimentar as dúvidas, os afetos, os espaços.
- Você também se expressa bem. É fácil conversar com você.
- Você costuma filosofar tanto com os seus clientes?
- Quase nunca.
- Ainda bem. Senão eu ia achar que sua profissão era um saco.
- Sua cama sempre fez esse barulho horroroso?
- Não. O barulho é da mola. Se você tivesse sido mais gentil...
- Eu quebrei a cama?
- Não, claro que não. Eu estava brincando. E você?
- Eu?
- Você não tem ninguém? Um amor?
- Não.
- Ninguém?
- Ninguém. Eu já fui apaixonado, muito apaixonado. Terminou de maneira catastrófica. Doeu forte, tão forte, que eu desisti. Não tem gente que desiste de um sonho? Eu desisti...
- Do amor?
- É. Da ilusão do amor. Dessa onda romântica, do entusiasmo que tira o ar, daquela história de princesa na torre e príncipe no cavalo.
- Mas viver sem amor...
- Eu não vivo sem amor. Tenho um sobrinho de quatro anos, é o amor da minha vida. E minha família é querida, são pessoas amáveis, amadas. Eu desisti da paixão. Da vida a dois. Desertei da sede de querer encontrar alguém para dividir. A gente vive uma época...
- Que não dá para dividir. O pior é que eu te entendo.
- Você não se incomoda se eu for embora agora?
- Não. Achei que você fosse dormir comigo. Tomar um café da manhã e depois ir.
- Eu dispenso o café se não for problema para você.
- Não, não é. Toma aqui. O prometido.
- Aqui tem mais dinheiro do que o combinado.
- Eu sei. Fica como um bônus pela conversa. Pelo quase embate.
- Não vou recusar.
- Eu imaginei que não, afinal o motivo é bom.
- Se pintar a vontade de me ver de novo, você sabe onde me encontrar.
- Nunca paguei o mesmo homem mais de uma vez.
- Sim, mas vai que você sente saudades de ouvir a mola da sua cama.
- Você tem o sorriso bonito.
- Você tem a voz suave.
- Eu te levo até o elevador. Deixa eu colocar uma calça.
IV
- Se cuida. Cuidado com a noite. Com os loucos da madrugada. A cidade muda quando anoitece, não é?
- Totalmente. Se cuida com o louco do recado. Não deixe ele parecer mais forte do que deveria.
- Pode deixar. Não deixo não. Boa sorte. Até qualquer dia.
- O elevador.
- Sim, o elevador. Tem certeza de que não quer ficar?
- Não, não tenho, mas preciso ir.
- Apague a luz do elevador e veja que onda estranha descer no escuro total.
- Morro de medo do escuro.
- Meus medos são outros.
- Bom, já está ficando chato. Deixa eu te abraçar.
E no abraço, perceberam o quanto era confortável. O quanto fazia sentido a falta de sentido da noite, dos últimos acontecimentos, da vida em si. No abraço, sentiram o encaixe das pernas, do quadril, das mãos quentes de um ao redor do corpo do outro. E era bom. Quase se beijaram. Mas optaram pelo olhar, ainda abraçados, profundo. Optaram também pelo silêncio que além de confortável, resumia tudo aquilo que não sabiam vestir em palavras simplesmente por não saber o que dizer. Abraçaram-se forte, um abraço seguro de socorro, de agradecimento, de saudade, de desejo de permanecer. Depois o elevador desceu com Fernando dentro com o dedo inseguro no botão que apagava a luz. E enquanto voltava para o apartamento, o rapaz lembrou que não havia dito o seu nome. Que em nenhum momento da noite, tinha se apresentado. Correu até a porta do elevador com o desejo de reparar o incidente. Mas já estava no térreo. Correu até ao interfone para que o porteiro impedisse a saída de Fernando e ele pudesse então descer e se apresentar. Mas era tarde demais. A noite havia engolido o rapaz de volta. E dentro do apartamento sozinho, sem pensar em chorar, já chorava por infinitos motivos e repetia:
- Ricardo. Eu me chamo Ricardo. Ricardo é o meu nome. Ricardo.