NINE LIVES * de Rodrigo Garcia
Não há noite mais longa que essa. Chove desgovernado e também a cidade perde um pouco do controle. Falta luz. E falta também você: a única pessoa com a qual eu quero falar. A única que eu não consigo.
- Posso falar com o Beto?
- Não, você ligou errado. Aqui não tem nenhum Beto.
- Quem está falando?
- Alguém que não é o Beto.
- Fala mais um pouco.
- Como?
- Mais um pouco para eu saber que não é o Beto.
- A representação de objetos complexos no cérebro – não apenas faces – pode empregar códigos ditos esparsos , quando todo o objeto é codificado por poucos neurônios (um só, no limite); ou códigos populacionais , quando um grande número de neurônios contribui para o reconhecimento do objeto.
- Lendo jornal?
- Tentando. A luz acabou. A vela está quase no final. Então, eu sou o Beto?
- Não.
- Como eu imaginava.
- Mas eu sou o Jorge.
- Muito prazer, Jorge. Se um dia eu conhecer algum Beto, eu dou o recado a ele.
- Ele não atende o celular.
- A tempestade bagunçou a cidade. Certamente os celulares devem ter sido afetados.
- Então eu liguei. Nunca tinha ligado para a casa dele antes. Eu devo ter anotado errado.
- Ou discado.
- Ou então ele me deu o número errado.
- Depende. Qual o tipo de relação de vocês?
- Amigos. Quer dizer, nós estamos nos conhecendo.
- Eu marcaria um xis em todas as alternativas.
- Verdade. Não vou mais ligar.
- Se você não telefonar, como é que vai saber?
- Intuição forte. Melhor não valorizar. Deixar o barco seguir.
- Boa metáfora.
- Sou bom com as imagens.
- E uma merda com as pessoas?
- Exato.
- Bem vindo ao meu universo.
- Bem vindo ao meu. E você?
- Eu?
- Você não tem um Beto? Ou uma Maria?
- Não. Eu tinha um Juca, mas morreu depois que foi castrado.
- Sente a falta dele?
- Muita falta.
- Bicho não fala. Tão melhor sem as palavras. Você não cria expectativas. Você não gera significados inexistentes. Você dá carinho e recebe de volta. Agrada e ganha a confiança enquanto ele durar. Deita aos teus pés, dorme ao pé da cama, faz charme para ganhar uma cócega na barriga. E soma.
- Você foi certeiro: tão melhor sem palavras. Apesar da sedução, do impacto e do universo fantástico que muitas vezes se constrói, eu ainda prefiro o silêncio.
- Não tem luz aí?
- Não, eu cheguei do trabalho e o bairro já estava no escuro. Tão diferente você caminhar pelas ruas se guiando pela luz dos automóveis e pela tua sensibilidade. Sabe quando você se pergunta por um segundo, isso é real? Ou é sonho?
- Situações pouco comuns geram esse tipo de dúvida.
- Eu tenho me perguntado freqüentemente se é real ou sonho.
- E a resposta?
- Quase sempre real.
- Então a vida está agitada. É bom movimentar.
- Mas eu sinto que ainda falta, que eu não estou cem por cento. Eu sinto como se eu não estivesse aproveitando devidamente.
- Talvez falte o teu Beto.
- Não sei.
- Ou um novo Juca.
- Um novo Juca eu sou mais favorável.
- Onde você está?
- No meu quarto. Porta fechada. Um toco de vela. Deitado no colchão. Umas folhas em branco ao redor. Um copo vazio. Janela aberta. Vento gelado. Calça de pijama. Pau meio duro.
- Então eu interrompi o teu prazer?
- De forma alguma. É que a calça é larga e a sensibilidade é grande. E faz tempo que eu... escuta, como foi que nós viemos parar nesse assunto?
- Quem começou foi você.
- Bacana o som do seu sorriso.
- Você também tem uma sonoridade agradável.
- E você, onde está?
- Deitado numa rede.
- Mais detalhes, vamos lá.
- Deitado na rede. Uma garrafa de vinho pela metade. A luz bem fraca, quase nada.
- Luz...
- Eu ouvia música, mas o aparelho parou e eu não vou insistir. O sem fio na mão. Cabelo bagunçado. Camiseta branca e moletom que o tempo virou. Nenhuma manifestação sexual, apesar da sua voz. A janela quase fechada.
- Me responde de verdade?
- Sim.
- Não existe nenhum Beto, existe?
- Existe e não existe.
- Eu imaginei. Sua voz é familiar. Não sei de onde.
- É provável que você não lembre.
- Se você me der algumas dicas, eu sou bom fisionomista.
- Uma madrugada em Botafogo. Você saiu chorando da boate e eu te ajudei a pegar...
- O táxi. Você me ajudou a pegar o táxi e me deu um abraço.
- Eu te disse um verso.
- Eu quase te falei um palavrão. Eu chorando, tinha acabado de ver um beijo que eu não deveria ter visto, saio correndo, esbarro em você, que me ajuda e foi importante porque me colocou no táxi e deu rumo ao final daquela noite. E de repente você me diz um verso. E sorri. Eu lembro do teu sorriso. Eu lembro, que loucura. A tua barba fina, os fios claros. Que loucura é a memória.
- Confesso que eu estou surpreso.
- Aquela madrugada, eu me lembro dela com exatidão. Eu me lembro do cheiro de cigarro na camisa. Do gosto da bebida. Eu lembro da temperatura do teu abraço, você não usava perfume.
- Eu não uso perfume. Única bebida é o vinho. Drogas eu já passei do momento e te confesso que eu não gostei dos efeitos colaterais. Moro sozinho, sou engenheiro e trabalho mais do que deveria e nem sempre sou bem remunerado. Não sei cuidar de plantas. Todas as que eu tive, morreram. Minha irmã diz que eu também não sei cuidar de pessoas. Eu discordo.
- E procura pelo Beto.
- Desesperadamente.
- Procura-se Beto desesperadamente. Não tem o filme da Madonna?
- Susan.
- Isso.
- Uma metáfora para o Beto, me ajuda? Procurar o Beto...
- Difícil sem ficar brega. Amor, paixão, felicidade.
- Conceitos tortos, de revista para adolescente.
- Entraríamos numa conversa sem fim.
- E eu não quero te atrapalhar mais.
- A luz. Você trouxe a luz.
- Tem papel e caneta?
- Tenho, mas não preciso te anotar.
- Não?
- Não, você já tem o meu telefone.
- Verdade.
Ou então:
- Posso falar com o Beto?
- Não, você ligou errado. Aqui não tem nenhum Beto.
- Quem está falando?
- Alguém que não é o Beto.
- Obrigado.
Ou:
- Posso falar com o Beto?
- É ele, quem fala?
A linha cruzada e eu já não sei mais se eu te vejo como um amigo, se eu posso ser solteiro e de repente deitar no teu colo esperando um carinho de homem que busca delicadezas. Eu gosto desse carinho que não precisa culminar em saliva e lençóis, mas que é íntimo. O carinho que não anuncia a chegada de uma nova estação, o carinho que não denuncia nada além do querer bem. O jeito cuidadoso de tocar o outro como quem descobre o que vai adiante. As mãos que buscam desvendar os fios de cabelo. O cheiro do outro que muda ao toque mínimo que altera a respiração, os batimentos, a temperatura. Quando o quase é fato. Eu gosto desse quase, que é onde avançamos juntos o bom senso da convivência social, seus signos e obrigações e esbarramos no limite do que seria uma intimidade maior, um comprometimento de intenções, uma noção real de que rompemos o véu, mas não extrapolamos. A linha (não) cruza porque a cidade é grande e também as intenções. A velocidade dos dias ou a pressa urgente intensa de quem esbarra e não pede perdão, de quem não tem tempo para olhar nos teus olhos. Tudo isso me confunde e me ameaça. Deixar de valorizar o outro me faria ser outra pessoa. Eu coleciono detalhes. Sou fã do que pode existir entre duas histórias. Do efêmero. Tudo é frágil, meu amigo. Se eu resolver ser frágil, tudo perde a consistência e a massa desanda. As cores perdem qualidade, a luta afrouxa os fios, a música muda a rotação. Então de pé! Adiante! Luta diária, de igual para igual! Deixe os dramas para as grandes atrizes, a violência estilizada para o Tarantino e me roube um beijo que desse assunto eu entendo.
* Título nacional de ‘Questão de Vida’. Nas locadoras em dvd e na HBO, segundo ele.