- Eu peço desculpas. Mas nós só temos um lugar na platéia.
Ela nos disse no presente, um tanto impaciente, como se nos atirasse no início da noite um ‘e aí, quem vai entrar que eu preciso ir embora’? Sem ação, nos olhamos por alguns segundos, ainda sem saber a resposta de como equacionar duas pessoas na última poltrona disponível do teatro lotado ali no centro da cidade do Rio de Janeiro. Ele sorriu com doçura e deu de ombros. Eu acompanhei seu gesto simples e saímos da fila de desistência, cedendo o lugar a alguém que se aventurasse, sozinho, preencher a audiência teatral carioca impecável e lotada. Ele sorriu com delicadeza. E para contar sobre ele, não posso acompanhar o momento presente. Conto dele, no passado de algumas horas atrás, quando por puro impulso, eu mudei os planos e também a noite e entrei no teatro.
- Com licença, essa fila aqui é para a compra de ingressos?
- Não. Os ingressos esgotaram. Essa é a fila da desistência.
- Como funciona?
- Você fica por aqui uns quarenta minutos. Aguarda a desistência de alguma reserva.
- Então pode ser que eu fique aqui um tempão e não assista à peça, é isso?
- Sim. É uma possibilidade.
- Não sei se vale a espera.
- Eu vou arriscar. Nove pessoas. São nove pessoas na nossa frente.
- A possibilidade de nove pessoas desistirem da reserva é quase nula.
- Ainda assim é uma possibilidade. Quarenta minutos... Não é tanto tempo assim.
- Em quarenta minutos muita coisa acontece.
- Se você chegasse aqui agora, como chegou, você ia comprar seu ingresso e ia esperar pelo horário marcado, não ia?
- Sim.
- Teria que esperar os quarenta minutos, mais o tempo de entrada e do início do espetáculo...
- Com a garantia de que eu assistiria a peça, mais a segurança de saber que eu...
- Então você precisa de certezas.
- Todo mundo precisa.
- Sério?
- Boa parte das pessoas. Ou da ilusão da certeza.
- Não quer me fazer companhia?
- Na fila? Não sei.
- Se não conseguirmos...
- O que é bem provável.
- Se não conseguirmos, eu te pago uma cerveja. Cerveja não que você não tem cara de cerveja.
- Não tenho?
- Algo mais sofisticado. Vinho, então. Uma caneca gorda. Ou um café? Um chocolate!
- Cerveja está de bom tamanho.
- Então você me conta porque veio sozinho.
- Então eu ouço você me contar porque veio sozinho.
- Eu gosto de sair sozinho. E isso de gostar não é tão complicado.
- Gostar não é complicado.
- As pessoas de quem a gente gosta é que são complicadas.
- Fatalmente.
De volta ao presente e ao ruído das canecas de vinho ao se encontrarem. De volta ao improvável que andava em débito ou tímido ou travesso por essas bandas de cá. De volta ao bar da esquina com vinho vagabundo que vai me dar dor de cabeça, no futuro próximo ao despertar. De volta ao jogo de revelar e guardar o melhor para o depois que é sempre o próximo momento. Assim mesmo, como canção romântica, eu sinto que. Mesmo assim, como uma canção do exílio, o meu, eu sinto. E não é suficiente sentir. Não hoje. Solto na escuridão da cidade perigosa que já não me assusta, as linhas não mais se cruzam. Estão paralelas. Hoje eu queria erguer muros para poder derrubá-los. Mas como é que se constrói um muro de palavras? Como é que o texto se transforma em grito e os verbos saem do papel, você me ensina? Não vou me desculpar por ter ido embora no repente. Seria como pedir licença por ser quem eu sou. Dias de leite. Dias de cachaça. O verde ou o vermelho do sinal de um trânsito que eu criei para me compreender. Ou pelo menos tentar. Eu sou aquele que vai embora no final. E imagina como poderia ter sido se tivesse ficado. Coisa de gente com um pé no medo e na coragem. Um olho atento, outro perdido em cores alheias. Como a Calcanhotto que anda prestando atenção em cores de Pedro e Frida. Ando pelo mundo. Eu, no singular, ando pela cidade. As ruas da Lapa na madrugada parecem mais limpas, mesmo com os travestis e as putas tentando a noite. A Lapa é plural. Quero me dizer que é assim mesmo. Dias simples. Dias confusos. Quero me fazer tentar compreender. Deixar de ser só palavra. Sair da tela do computador. Não desejo ser o homem mau. Quero aos poucos e principalmente aos poucos, ser um homem melhor em grandezas, maior em simplicidades, menor em confusões. Viver as minhas histórias curtas o ano inteiro. Você é alguém que eu não sei escrever sobre. Ir embora na madrugada significa um não sei não. Talvez reflita que preciso crescer em atitudes. Ou respeitar minhas vontades. Ou temer a incapacidade gigante de não saber como te classificar. Eu, o homem da certeza. Ou da ilusão da mesma. Talvez nada signifique. E seja apenas a sensação de voltar para casa que eu procuro. Abrir a porta, entrar, deitar, ouvir o cachorro do vizinho, o ventilador, a televisão ligada. Essa miudeza que conforta, dá segurança. Nos faz perceber que é assim mesmo: dias de partidas, dias de retorno. Dias de histórias curtas que se perdem e se encontram.