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sábado, julho 28, 2007


CÃO SEM DONO de Beto Brant e Renato Ciasca

Bagunça o meu sono, cão safado e lá se vai a minha madrugada dormida. Observo o relógio curioso para saber me localizar no tempo e faz frio, tão frio, que não me reconheço entre o cobertor. Permita-me dizer que não sendo nós dois nem tão amantes nem tão amigos nem tão estranhos nem tão imunes que não tenho eu responsabilidade qualquer sobre a tua forma de encarar a solidão. Não tenho nada eu com a tua vida, enfim. Porque foram três ou quatro encontros. Três ou quatro vezes que você fez questão de me fazer perceber que o meu carinho por você batia na trave e não goleava. Que eu não te interessava como homem. Que eu não despertava em você o que você despertava em mim. Exercício interessante da clássica história do gostei de você, mas não vou te comer. Também não me doeu tanto ou mais do que qualquer outro em qualquer outro bar. Depois de um tempo, a gente compreende a recusa com menos urgência e driblando o fantasma do ego e os contornos do orgulho, ainda é possível tirar proveito da situação e sorrir. Sorrir apenas, sem a intenção de ser superior ou de querer transformar o patético em desespero. Sorrir. Então, meu caro, essa intimidade de me telefonar na virada do dia, não combina com a nossa história sem êxito. Não me surpreende e também não me impressiona porque dizer ‘alô’ não me custa muito, além da voz. Mas me lança uma pulga, cão sem dono, que incomoda e confunde o desejo adormecido de um dia qualquer, lá no passado recente do ainda ontem, doce armadilha, saber que te quis. Não deveria. Sua voz denuncia um tanto da noite: do álcool, do frio, da chuva, do abismo, do medo, do inverno. Não deveria.

- Você está bem, cara?

É que eu ainda faço parte daquele tipo de pessoa que acredita tanto nas perguntas quanto nas respostas. Então quando me perguntar se eu estou bem, tenha tempo para ouvir o que vou te dizer. O que é estar bem? Não estamos sempre caçando os sonhos, na cola de um dia melhor, um momento mais agradável, um momento enfim? Estar bem me parece infinitamente subjetivo, eu posso te contar que tudo parece bem. O trabalho, o círculo de pessoas, as relações com os amigos, ainda que muitas vezes elas me pareçam tão velozes, amores são sempre possíveis. Os filmes nos mesmos lugares de sempre, as canções despertando as sensações, as palavras confundido e esclarecendo caminhos e mapas, indivíduos e atmosferas. Eu acredito que tudo está bem e dizer assim, tudo, me parece fugir o controle do que possa ser estar bem. O que é tudo? Falo do umbigo que me conecta a alguns poucos, falo da morada e das contas pagas, do consumo diário de carinho, afeto, amor, energia e vocabulário. Muitas vezes falta mais do que sobra. Falo assim com alguma propriedade do meu tudo com nome: a casa, a família, as cartas e tesouros. Minhas coleções e preferências. Meu coração e afluentes. Seriedade e falta de pretensão. E ainda dos meus mínimos que fazem parte do todo: os objetos, os fragmentos, as frações, as migalhas. As minhas caixas dentro das caixas. Do abandono, da vida fantástica, do comum e do que ninguém pode ou deve saber. Existem omissões necessárias.

Me convida para o café da manhã e eu recuso imperativo porque sair de casa nesse frio no final da madrugada me causaria a sensação de desespero ou carência extrema ou loucura consciente ou ainda falta de bom senso. O fato é que eu recuso e eu recusarei qualquer convite teu, cão sarnento, e recusar não é encerrar uma possibilidade, mas me certificar do leve equívoco do que não chegamos a ser. Logo após o encantamento inicial há também o olhar real e você fez bem em me soprar o não. Porque movimentou os meus dias. Movimentou no sentido de me despertar questões. De me lançar abismos. De me salvar de dúvidas. De me iluminar desejos que não os efêmeros de beijos e gemidos. Desejos maiúsculos, daqueles que fazem com que a vida de um homem queira transformar – e se você me percebeu, há de saber que sou fã do micro, que as minhas viradas e a minha sensibilidade não precisa ser tão grande para ser compreendida, discreto, embora vez ou outra, por necessidade, o grito também se faça necessário, mas não hoje – e o que mais me importa, desejos daqueles que fazem com que eu me deixe transformar. Eu recuso qualquer convite teu, cão querido, que envolva intenções antigas minhas ou intenções recentes tuas de lençóis e banhos quentes. Quem sabe, ao acordar, eu não pense em te ligar para te convidar para um cinema? O que não é provável, mas quem sabe? Porém o momento presente, esse de te escrever enquanto o dia amanhece, te diz não. Não, apenas. Sem qualquer intenção de ser cruel ou de retribuir no tapa da solidão o que já passou entre nós. Não sem nós. Não limpo e também sincero e em total sintonia com o coração e com a pessoa que eu sou.

O amor se abriu para mim. Logo depois que você foi embora.

domingo, julho 22, 2007

O LIBERTINO de Laurence Dunmore
Me convida para dançar e me diz para olhar a lua. E eu olho para o céu e realmente faz todo o sentido sair de casa e aproveitar a cidade. Desligo o telefone em busca do melhor banho em busca do melhor perfume em busca da melhor camisa que vai inaugurar o jeans. Ouço de longe o som da tua buzina e atraso, não por charme, mas por ser eu mesmo, atrapalhado por natureza. Desço as escadas e me sinto bem, o perfume, o cabelo, a barba no tamanho certo, o jeans. Abro a porta e a lua. Teu carro estacionado, abro um sorriso que me sorri também e existe a noite em sintonia com o nosso desejo de passar boa parte da madrugada juntos. Não falo de intenções porque ainda não sei do que se trata. Mas o teu desejo de querer passar algum tempo comigo encaixa no meu desejo de querer passar algum tempo com você, ainda que ainda não saibamos quais os desdobramentos do se. Fiz dois cd's para você ouvir no carro: um de músicas agitadas e outro mais dramático, eu tenho um pé no drama e isso não me envergonha. Vamos ouvir o agitado, ele me propõe e me diz que o outro vai ser ouvido com atenção. Paramos para comprar bebida e eu sou fraco para o álcool, entende, tudo o que me tira a segurança precisa ser usado em lugares em que eu tenha alguma segurança. E te adianto que se ficarmos os dois bêbados, entro no primeiro táxi e te carrego, depois a gente resgata o carro. Diz que concorda sem concordar, eu vejo e a gente brinda e você viu a lua? Eu vi. Eu vejo. Hoje ela é um terceiro personagem entre nós. E há de se ter cuidado com esses símbolos definitivos, rapaz, eu pensei e não disse. Deve haver um equilíbrio entre o que é pensado e dito, outra vez sem dizer eu pensei e eu só quero que a noite seja boa. É possível ter uma noite boa. Faz tempo que eu não arrisco dessa maneira. O cd anima a conversa e eu já bebi duas garrafas dessa vodka que eles misturam com fruta e te embebedam sem você perceber. Mas eu percebo. Se existe algo que me fascina são os efeitos. Dos mais óbvios aos mais complexos. Efeitos da bebida, das drogas, do frio e do calor, da solidão e do prazer, os efeitos do amor. Eu percebo que as frutas com toda aquela vodka aceleram a pulsação, esquentam a temperatura do sangue, brincam com a minha visão e o meu equilíbrio. Me sinto mais solto. Pobre isso, não? Me sinto mais à vontade para poder arriscar. Estaciona o carro e parece tão sóbrio, tão seguro e me diz que a noite é nossa e eu não entendo bem o que isso quer dizer. Todas as noites são nossas, não são? Mas que lugar é esse, cara? Tão longe, nós saímos da cidade, eu nunca vim aqui. Me diz que é afastado do centro e a música é ótima e a melhor tequila nos aguarda. Eu me deixo levar porque tem dias que o melhor a fazer é se deixar levar. Muitas vezes a burrice está na resistência, ir contra a maré, bater o carro contra a parede, eliminar qualquer sopro de possibilidade sem ousar tentar. Então me pegue pela mão e dance comigo. E de fato me pegue pela mão e dance comigo e dance até que a noite termine porque dançando a gente se entende e você me diz que dançando a gente desliga um tanto sem que isso seja uma forma de alienação, mas de renovação. E eu te entendo, cara. Como é bom poder compreender o que o que você me diz. Tem a fumaça que me confunde a visão. Mas eu topo a tequila. E somente a tequila, se eu fumar um baseado hoje eu desmaio naquele sofá e nem com guindaste, compreende? Para cima, para baixo, para dentro, quantas vezes o copinho, o limão e o sal? E a pista de dança e esse lugar é ótimo, pensei no Danilo, ele ia gostar porque não é tão cheio e o salão de jogos me lembra o Gaivotas e dançamos pela madrugada como se fosse uma canção em dó e lua. Me aparece com uma garrafa de água e já vai amanhecer e apesar de bêbado, eu posso decretar, tenho absoluta consciência de tudo o que houve, de tudo o que há. Água e estamos prontos para partir, fico feliz que você gostou de sair comigo, ele me diz e eu repito a mesma frase e ele sorri. Fico feliz que você tenha gostado que eu gostei de sair contigo. Se eu te roubar um beijo, ele me provoca, se eu te roubar um beijo, como é que fica, eu não quero me aproveitar da sua tequila e tudo foi tão gostoso até agora que. Faz o seguinte, eu disse, me roube um beijo que eu saio correndo atrás de você para resgatá-lo. E quando ele me beijou, eu gostei. E retribuí. Ele me abraçou. E eu gostei e retribuí. Voltamos para casa e o domingo amanhecia. Paramos num botequim, café quente e pão fresco. Dorme comigo lá em casa, ele me sugeriu. E eu disse sim. Não é poderosa a sensação de você dizer sim e de fato, querer dizer sim? Um sim de dentro para fora, consciente e misterioso, ousado e simples. Foi durante o banho que eu mais gostei do cuidado dele. Não era só sexual, mas atencioso. Cuidadoso. Aproveitando os detalhes. O percurso e o ritmo. Ele se diferenciava na maneira como se interessava por mim. Não havia pressa. Como se o tempo estabelecesse a intimidade e a atenção, sem excessos, sem explicações desnecessárias ou justificativas inúteis. Havia uma beleza poderosa nesse reconhecimento. Um despertar de uma velocidade de olhar e saber ser olhado, que me encantou.
Eu adoro elipses.

domingo, julho 15, 2007


MEDOS PRIVADOS EM LUGARES PÚBLICOS de Alain Resnais



- Com licença, eu posso sentar com você?
- Acho que sim. Quero dizer, você já observou que as outras mesas, em sua maioria, estão vazias?
- Posso te oferecer um café?
- Não, obrigado. Eu tomei um expresso ainda agora. É suficiente e a cafeína mexe demais com o meu sono.
- Você está esperando alguém?
- Na vida? Ou agora? Se for agora, não. Eu pensei em sentar aqui para fazer hora. O meu filme começa em quarenta minutos. Se for na vida, talvez. Não sei se espero exatamente por alguém. Mas você sabe como é: alguém pode pintar quando a gente menos espera.
- Como eu?
- Quatro perguntas. Você me fez quatro perguntas em menos de dois minutos. Seja afirmativo em alguma frase. Menos curioso.
- Vou pedir um suco para nós dois. Garçom, por favor, duas laranjas com um balde de gelo, por favor.
- Obrigado. Veio ao cinema também?
- Não, mas também estou fazendo hora. Compromisso. Sensação tola de que te conheço.
- Bobagem. Eu me lembraria de você.
- Não é papo furado.
- Parece. A única forma de você ter me visto antes sem eu te ver, seria me assistindo no teatro.
- Não fala, não fala. Eu vou lembrar.
- Mas já faz um tempo que não estou em cena. Então continuo apostando no papo furado.
- Você disse que se lembraria de mim. Algum motivo específico?
- Sim, mas prefiro não dizer.
- Outro motivo específico?
- Você faz muitas perguntas.
- Você não responde nenhuma delas.
- Você é bonito. Bonito demais para não ser lembrado. Isso responde a sua pergunta?
- Apesar de não concordar, compreendo.
- Não concorda com a sua beleza ou comigo?
- Com você, naturalmente.
- Então eu vou ser direto e provavelmente mal educado. Ando impaciente. Intransigente, eu diria.
- Mimado.
- E dentro dessa minha ausência de tolerância, eu encho o saco muito rápido. Não gosto de mistérios, de cantadas baratas, não gosto de me sentir perdendo tempo, entende?
- Entendo.
- Então, você é lindo, tem um sorriso de arrasar, fosse eu outra pessoa, ia realmente fantasiar que você está interessado em mim. Mas eu, o Junior de sempre, acho que você só está tentando tirar uma onda comigo. Vou ali ver em quanto tempo eu faço o esquisitinho se apaixonar por mim, sabe assim?
- Então você já armou o jogo. Já me classificou como o bonito. Você o esquisito. E no seu universo, bonitos e esquisitos não se relacionam. São raças que não se misturam, é isso?
- Humor. Você tem humor. Isso é importante. Minha escala de graça e risadas decresce vertiginosamente. Na boa, sem querer ser grosseiro, qual é a tua?
- Com você é assim? Explicando, justificando, dando nome?
- Sim, nesse caso sim. Como é que você reagiria se um estranho despencasse na sua mesa de repente?
- Reagiria como qualquer um reage. Conversaria. Como é que você conhece as pessoas?
- Eu não sou tão sociável.
- O que te faz tão especial a ponto de desperdiçar o acaso? Eu te vi, tenho um compromisso mais tarde, pensei em me aproximar, puxar conversa, saber de onde é que eu te conheço, fazer contato, conversar. Amizades começam assim, com iniciativa.
- Você não é carioca.
- Não, mas moro aqui há três anos.
- O Rio de Janeiro é uma cidade linda. Indiscutivelmente. Só que essa beleza é também perigosa. Eu sentei aqui na Cinelândia para tomar um café e observar as pessoas e a praça. Desfrutar da arquitetura. Do fluxo do movimento. Do tempo, enfim. Essa admiração me custa coragem. Para enfrentar o desejo ciente do perigo dos assaltantes, da violência, dos pivetes, das confusões.
- Onde você quer chegar?
- Em lugar algum. Eu só quero chegar à sala escura, onde eu vou ver um filme daqui a pouco. Sem riscos.
- Segurança todo mundo precisa. Mas a gente precisa também correr algum risco.
- A gente quem? De onde você extrai a sua filosofia? Olha, obrigado pelo suco. Lindo, você é lindo. Chega a me intimidar. Na rua de trás, existem uns lugares bons para paquera. Um deles você pode, se quiser, estender o flerte num quarto escuro. Não custa muito. Agora se você me der licença, eu vou pedir a conta.
- Não entendi nada. Você não quer conversar comigo porque eu sou bonito, é isso? É esse o motivo da sua fina grosseria?
- Eu não quero ser incomodado. É isso. Fosse você o Quasímodo, ainda assim, eu agiria da mesma maneira.
- Você disse...
- Eu sei o que eu disse. E não é me jogar para baixo. Não mesmo. É não compreender o impulso que te trouxe até aqui. Logo até aqui.
- Eu gostei de você.
- Nem pau grande eu tenho, cara.
- Eu gostei de você.
- Então vamos supor que eu te diga que eu também gostei de você. E então? O que acontece? Trocamos os números, conhecemos as famílias, vamos morar juntos?
- Não sei. Pode ser, quem sabe?
- Eu não entendo.
- Eu também não. Só que você está trancado no seu universo e nas suas concepções e nos seus medos, que você me recusou antes de me conhecer. Antes de me dar uma oportunidade. De se permitir. Correr o risco, não é assim?
- Se você tivesse dezoito anos, eu poderia compreender o teu discurso. Mas pela tua barba e teu rosto, você deve ter a mesma idade que eu.
- Você é cheio de conceitos. Tem que explodir com eles.
- Filosofia barata.
- Tem que explodir com eles antes que eles explodam com você.
- Esse dinheiro paga o suco.
- Eu só queria te conhecer. Conversar. Te vi de longe, cara de cinéfilo. Comecei a fantasiar histórias sobre você. Onde você mora, o que você faz, se é noivo, casado, se tem filhos. Qual o filme preferido de alguém que parece um cinéfilo? Besteiras. Simplicidades. Só isso. Não pensei em cantada, em paquera, nada desse tipo. Pensei em fazer contato. Só isso.
- Beautiful Stranger.
- Contato.
- Eu não vou esquecer você.
- Você não é o homem que eu imaginei que você fosse.

Quando é que eu percebo o momento de desacelerar?
Puxar o freio de mão e colocar os pés no chão?
Demolir idéias é também abrir espaço para novos pensamentos.
Nunca provei açúcar tão amargo.
Quando é que eu vou ler que tudo não passou de uma brincadeira?
Rasgar os papéis e ver as letras despencarem e se espatifarem no chão.
Cruzar as palavras em outras direções.
Sem senão.
Sem ilusão.
Sem sermão.

Preciso não perder a cor.
Preciso não perder o humor.
Preciso não perder o amor.

domingo, julho 08, 2007


TEMPESTADE DE VERÃO de Marco Kreuzpaintner

- Você não lembra?
- Não é charme. Eu realmente não lembro. O teu rosto é familiar, mas não sei exatamente...
- Bem quente... meu rosto é, de fato, familiar. Literalmente, eu diria.
- Vai me dizer que você é um irmão que eu não conheço e que me segue todas as vezes que eu saio de casa e resolveu se apresentar justamente hoje?
- Menos. Bem menos.
- Escuta, isso aqui é um bar gay. Cheio demais para uma terça-feira, aliás. Eu já tomei três latinhas. Então é melhor cortar o prólogo porque eu já enchi.
- Vou te dar uma dica.
- Não sou bom com dicas.
- Vou te dar mais do que uma dica. Casa de férias, nós dois atrás do muro. Eu abaixei a sua bermuda. Você me deu um soco e saiu correndo.
- Fernando?
- No mesmo dia, mais tarde, você abaixou a mesma bermuda e me permitiu te tocar.
- Nós ficamos nessa brincadeira por meses. Você foi o primeiro, a primeira pessoa que me tocou. Que despertou em mim qualquer sensação parecida com o prazer.
- Não existia maldade. Era ingênuo, quase ingênuo. Não era sexual, era um exercício de curiosidade.
- De investigação.
- Sempre que me perguntam sobre a minha primeira vez, eu lembro de nós dois. Não associo ao primeiro beijo ou ao primeiro sexo. Eu lembro de nós dois, com dez, onze anos, nos escondendo atrás do muro, depois brincando de se descobrir, de se investigar, percebendo o corpo do outro, se deixando analisar, sem qualquer palavra.
- Sabe que eu não tinha a certeza de que essa lembrança tão forte era real? Acreditei durante muito tempo que eu havia inventado uma memória na infância para me justificar. Para me fazer tentar compreender todo o depois.
- Até o dia que a sua mãe nos viu no quarto. Eu lembro do rosto dela, da expressão do rosto dela. Te pegou pelo braço e disse que nunca mais você ia voltar a me ver.
- Ainda bem que ela errou.
- Errou?
- Claro. O nunca mais terminou. Nunca mais foi ainda agora.
- Eu te vi entrar, eu fiquei eufórico. Não sabia se você ia me reconhecer. Não sabia se você estava acompanhado. Se esperava alguém. Fiquei te observando para saber se era você mesmo. E para tomar coragem para me aproximar.
- Inacreditável. Eu vou fazer trinta anos em dezembro.
- Faço trinta ano que vem.
- Eu não sei o que te perguntar. Sabe que se eu beber mais um pouco e dormir a noite toda, é capaz de amanhã eu despertar e pensar que tive um sonho com você aparecendo nesse mesmo bar, depois de tantos anos...
- E depois?
- Me diz aí. Me conte. Qual a tua profissão? Onde você vive? E a família, a nossa família, eu nunca mais vi ninguém, eu nunca mais quis saber de ninguém. Já foi tão complicado driblar as diferenças com pai, mãe, irmão e irmã, eu preferi, por uma questão de praticidade, me afastar. Imagina aquela italianada toda chorando no meu pescoço os planos que eles fizeram para mim e que eu não pude corresponder.
- Passei três anos na Itália.
- Estudando?
- Namorando. Depois noivei. Depois acabou.
- E ele voltou para o Brasil?
- Ela.
- Ela?
- Sim, ela.
- Sabe que a modernidade me assassina a compreensão? Você foi para a Itália e namorava uma mulher, é isso?
- Sim.
- Daí você voltou, continua hetero ou apaixonado por ela e freqüenta bares gays só para confundir a carência masculina local e ainda ganha uns comentários de ‘como ele é moderno’.
- Não lembrava da sua ironia.
- Aos dez anos eu não sabia nem dizer o meu nome inteiro sem ficar envergonhado. Mas me diz, por que largou a vida na Europa e retornou? Não era mais fácil para você casar, ter filhos, construir sua carreira por lá, com mais segurança e mais opções para vocês dois?
- Mais fácil? Você faz parecer como uma fórmula.
- Mais simples.
- Você parece aquela italianada toda chorando no meu pescoço os planos que eles fizeram para mim e que eu não pude corresponder.
- Então você é gay. Fico mais aliviado, sinceramente.
- Então você é um babaca. É sério que na boca dos teus trinta anos, você ainda perde teu tempo classificando as pessoas?
- Pede uma cerveja, rapaz. E relaxa. Solte as pedras.
- Não sei o que eu estava pensando quando eu me aproximei. Sei lá, pensei que sendo meu primo, você ia ser gentil e carinhoso e a gente ia brindar o encontro e ficar amigos, de longas conversas.
- Fernando, eu só te fiz algumas perguntas. Não quis ser grosseiro.
- Eu estou no Brasil desde fevereiro e tudo o que as pessoas fazem é me perguntar sobre a minha vida pessoal. Só que eu não tenho que satisfazer a curiosidade de ninguém. É a minha vida, entende? Se eu não quiser falar sobre ela, ninguém pode querer que eu fale.
- Esquece, então. Apague tudo o que te perguntei. Vou falar sobre mim. Prometo não fazer perguntas. Não te questionar, então.
- Não precisa. Não era melhor quando a gente não dizia uma palavra e se entendia?
- Aos dez anos a vida é mais simples. Mais assustadora, mas muito mais simples. Vejamos o que eu posso te dizer. Eu não casei. Não tenho planos de ter filhos. Sou ator. Estudei para isso. Estudo. Já que você não gosta de definições, eu prefiro me relacionar com homens. Por isso freqüento esse bar. Apesar de que aqui virou um lugar para encontrar a turma. Boa parte dos meus relacionamentos, duradouros ou não, foram com rapazes. Já fui apaixonado por uma grande amiga do colégio. Durou muito tempo. Nunca nos beijamos. Hoje somos os melhores amigos que pode existir. Tenho uma locadora de filmes. Faço outras atividades para ajudar nas contas do mês. Nunca saí do Brasil. Desde os vinte e seis, eu estou solteiro. Se eu te disser que é por opção, é mentira. É que é realmente, aliás, incrivelmente difícil, você esbarrar em alguém para dividir a vida. Não adianta só querer. Precisa lutar. Luta braba. Eu sou irônico, especialmente quando me sinto intimidado. Sou rápido e também impulsivo. Mais... vamos lá... o que posso te dizer mais? Eu escrevo. Não é profissionalmente e eu adoraria ser pago para escrever o resto da minha vida. Mas é mais que um romance, é mais que um hábito, é uma grande delícia, essa é a verdade. Tenho uma série de infinitos desejos mínimos. Nenhum gigante. Esses pequenos desejos, que não são só meus, são desejos que se estendem às pessoas que estão ao meu redor. Incluindo as virtuais. Sou passional. Eu me lanço. Com o tempo, achei que fosse me cansar. Ou enjoar. Mentira. Aprendo alguns poucos mecanismos para me preservar. Mas essa idéia, de me lançar no que é novo – uma pessoa, uma idéia, um projeto, um objeto, um filme, livro, uma peça de teatro, um velho alguém, não importa – essa idéia do salto me faz querer ser alguém melhor. Não moro sozinho. Não tenho o desejo de morar sozinho ainda. Não sou tão difícil quanto eu pareço. Gosto de delicadezas. Eu já me apaixonei por um homem porque eu achava linda a maneira como ele ajeitava o cabelo. Nasceu dessa percepção, sabe? Durou quase três anos. Eu não faço o que não tenho vontade. Eu penso em nós dois. Eu penso no coração acelerado. Penso na velocidade do tempo. Penso que se eu passasse por você na rua hoje, eu não ia saber que você era aquele menino tão importante e tão fundamental na minha história. Teus traços mudaram.
- Você é o homem que eu imaginei que você fosse. E é ainda mais.


quarta-feira, julho 04, 2007

PERDAS E DANOS de Louis Malle
Eu não te quero mais.

Assim tão displicente. Assim sem perceber que dividindo a gente soma. Esse pequeno óbvio que reluz aos meus olhos feito descoberta rara. Chega de raso. Chega da idéia de um amor a três, de um amor a quatro, de um amor suruba. Busco a serenidade do um mais um. Busco o suficiente. E é nessa busca que nos distanciamos em estrada e interesses. Eu não te quero mais. Assim tão eloqüente. Feito um vicioso círculo de onde eu sempre digo adeus e para onde eu sempre retorno consciente. Te escrever sempre me pareceu delicado, mas hoje dispenso delicadezas e sinto violento, escrevo tão intenso que meus dedos vacilam a letra digitada. Posso te dizer sobre mim ao escrever. Que vez ou outra eu travo no real. A voz some, o olhar não alcança, as palavras voam feito folhas no outono. Mas é inverno e o momento é de voz forte, olhar decidido, palavras em negrito e simples como o desejo de não te querer. Mais. E insisto para poder acreditar. Insisto para compreender com mais segurança.

Vontade selvagem, de te contar sobre o meu partido coração e ouvir sobre o teu. Essa troca de informações cardíacas, eu diria, são preciosas quando transformadas em verbo. A gente sempre descobre algum fio de luz quando nos ouvimos, quando percebemos o outro falar. Eu chamo de permuta. O grão problema, que talvez tenha outro nome, mas que de qualquer forma, impossibilita, é que estou desapontado. Desapontado eu diria e eu deveria estar acostumado, mas essa idéia - me acostumar - me irrita um pouco e faz com que as unhas sejam roídas porque me acostumar com alguma atitude ou com a ausência de atitudes significa me acomodar com o que me é oferecido. E acomodações aos vinte e nove, afetivas, eu reforço, me parecem tão absurdas quanto artificiais. Então perdoe a falta de cavalheirismo, se explodo em frases flechas com destino traçado, se não percebo o momento de falar, eu que sempre agi educadamente a cada ausência, a cada pequeno não, a cada grandioso maremoto causado por um sorriso que você não deu, é que o momento - e cada um percebe o seu, cada um sente o seu e não há ritmo que impeça o sentir, não há etiqueta que resista aos sentidos, não há fogo que não queime se provocado - me diz que é hora de arrumar as malas e ser mais do que essa frase que parece de efeito e no fim, é! Porque todo efeito me coloca em movimento e é no movimento da vida que eu tenho, sim, uma certeza. Ainda que pareça crua, ainda que me doa fisicamente e me arranque noites da cama, ainda que me transforme novamente em alguém sem rumo e sem palavras, eu tenho uma, que significa milhares e eu nem buscava por ela. Uma certeza. Desapontado. Mesmo no meio da mais cinza tempestade, a gente tem sempre o pensamento de que ela vai passar, de que o sol vai chegar, de que ela vai embora como ciclo que se fecha e se abre. Perdoe, mas eu preciso seguir. Levo na mochila filmes, histórias, roupas e livros de gente que sabe o que diz. Levo música, lembranças de gente que eu não quero perder, educação para poder trilhar com segurança, leveza para acalmar corações e eu não me habituo ao que não me agrada. Seria mentir para mim. Seria ser outra pessoa. Eu te levo comigo por onde passar, essa certeza é um sopro que te deixo. Levo com orgulho. Levo com amor de homem que foi tocado por outro homem, fez sua revolução e viu brotar sensibilidade e poesia. Levo como tesouro precioso de quem aprendeu e ensinou. De quem se perdeu e não se encontrou. De quem mudou os objetos de lugar e estranhou. Esse desfecho não é o ideal. Mas estou em busca e no meio do caminho, encontrei uma certeza. Nossa história não termina. Ela prossegue. Obrigado pelo quase. Perdoe pelo definitivo.
Também eu tenho medo.