CÃO SEM DONO de Beto Brant e Renato Ciasca
Bagunça o meu sono, cão safado e lá se vai a minha madrugada dormida. Observo o relógio curioso para saber me localizar no tempo e faz frio, tão frio, que não me reconheço entre o cobertor. Permita-me dizer que não sendo nós dois nem tão amantes nem tão amigos nem tão estranhos nem tão imunes que não tenho eu responsabilidade qualquer sobre a tua forma de encarar a solidão. Não tenho nada eu com a tua vida, enfim. Porque foram três ou quatro encontros. Três ou quatro vezes que você fez questão de me fazer perceber que o meu carinho por você batia na trave e não goleava. Que eu não te interessava como homem. Que eu não despertava em você o que você despertava em mim. Exercício interessante da clássica história do gostei de você, mas não vou te comer. Também não me doeu tanto ou mais do que qualquer outro em qualquer outro bar. Depois de um tempo, a gente compreende a recusa com menos urgência e driblando o fantasma do ego e os contornos do orgulho, ainda é possível tirar proveito da situação e sorrir. Sorrir apenas, sem a intenção de ser superior ou de querer transformar o patético em desespero. Sorrir. Então, meu caro, essa intimidade de me telefonar na virada do dia, não combina com a nossa história sem êxito. Não me surpreende e também não me impressiona porque dizer ‘alô’ não me custa muito, além da voz. Mas me lança uma pulga, cão sem dono, que incomoda e confunde o desejo adormecido de um dia qualquer, lá no passado recente do ainda ontem, doce armadilha, saber que te quis. Não deveria. Sua voz denuncia um tanto da noite: do álcool, do frio, da chuva, do abismo, do medo, do inverno. Não deveria.
- Você está bem, cara?
É que eu ainda faço parte daquele tipo de pessoa que acredita tanto nas perguntas quanto nas respostas. Então quando me perguntar se eu estou bem, tenha tempo para ouvir o que vou te dizer. O que é estar bem? Não estamos sempre caçando os sonhos, na cola de um dia melhor, um momento mais agradável, um momento enfim? Estar bem me parece infinitamente subjetivo, eu posso te contar que tudo parece bem. O trabalho, o círculo de pessoas, as relações com os amigos, ainda que muitas vezes elas me pareçam tão velozes, amores são sempre possíveis. Os filmes nos mesmos lugares de sempre, as canções despertando as sensações, as palavras confundido e esclarecendo caminhos e mapas, indivíduos e atmosferas. Eu acredito que tudo está bem e dizer assim, tudo, me parece fugir o controle do que possa ser estar bem. O que é tudo? Falo do umbigo que me conecta a alguns poucos, falo da morada e das contas pagas, do consumo diário de carinho, afeto, amor, energia e vocabulário. Muitas vezes falta mais do que sobra. Falo assim com alguma propriedade do meu tudo com nome: a casa, a família, as cartas e tesouros. Minhas coleções e preferências. Meu coração e afluentes. Seriedade e falta de pretensão. E ainda dos meus mínimos que fazem parte do todo: os objetos, os fragmentos, as frações, as migalhas. As minhas caixas dentro das caixas. Do abandono, da vida fantástica, do comum e do que ninguém pode ou deve saber. Existem omissões necessárias.
Me convida para o café da manhã e eu recuso imperativo porque sair de casa nesse frio no final da madrugada me causaria a sensação de desespero ou carência extrema ou loucura consciente ou ainda falta de bom senso. O fato é que eu recuso e eu recusarei qualquer convite teu, cão sarnento, e recusar não é encerrar uma possibilidade, mas me certificar do leve equívoco do que não chegamos a ser. Logo após o encantamento inicial há também o olhar real e você fez bem em me soprar o não. Porque movimentou os meus dias. Movimentou no sentido de me despertar questões. De me lançar abismos. De me salvar de dúvidas. De me iluminar desejos que não os efêmeros de beijos e gemidos. Desejos maiúsculos, daqueles que fazem com que a vida de um homem queira transformar – e se você me percebeu, há de saber que sou fã do micro, que as minhas viradas e a minha sensibilidade não precisa ser tão grande para ser compreendida, discreto, embora vez ou outra, por necessidade, o grito também se faça necessário, mas não hoje – e o que mais me importa, desejos daqueles que fazem com que eu me deixe transformar. Eu recuso qualquer convite teu, cão querido, que envolva intenções antigas minhas ou intenções recentes tuas de lençóis e banhos quentes. Quem sabe, ao acordar, eu não pense em te ligar para te convidar para um cinema? O que não é provável, mas quem sabe? Porém o momento presente, esse de te escrever enquanto o dia amanhece, te diz não. Não, apenas. Sem qualquer intenção de ser cruel ou de retribuir no tapa da solidão o que já passou entre nós. Não sem nós. Não limpo e também sincero e em total sintonia com o coração e com a pessoa que eu sou.
O amor se abriu para mim. Logo depois que você foi embora.