IMPÉRIO DOS SONHOS de David Lynch
eu saí do seu apartamento ciente do desejo de te escrever. Sem saber exatamente quais vias optar, mas muito tranqüilo e muito seguro de que você receberia as minhas palavras com o coração florido, à espera da próxima semente. Veja você que uma vez o Danilo, que sempre me leu com muito entusiasmo e é tão amigo e tão sumido, me soprou de maneira imperativa e também entusiasta, que eu precisava, assim mesmo, com essa urgência, ler os seus textos. Que o teu ponto-de-vista aos desdobramentos do coração, muito se aproximava do meu olhar. Eu me lembro que ele disse que não tinha como não gostar da tua caligrafia. Confesso que senti um ciúme bobo, mas fui te visitar na mesma noite que ouvi seu nome pela primeira vez. Eu me lembro também que eu fiquei muito tempo te lendo. Alguns versos, algumas frases eu reli em voz alta. Outros eu cobicei tolamente e lamentei secretamente não tê-los escrito antes. Não que eu pudesse ou tivesse ferramentas, mas acho que deve ser comum no universo de quem convive intimamente com a escrita, esbarrar na armadilha do ‘eu queria ter escrito isso’. Depois de um tempo, eu passei a te visitar periodicamente. Depois de mais um tempo, eu te conheci ao vivo e à cervejas, naquele show debaixo daquela chuva, entre um eu sou a Marla e eu sou o Egídio. Depois de um tempo, compreendi que eu ia ler você de quando em quando, não porque queria escrever como você escreve, mas porque havia descoberto o hábito de te ler. Ler você, me entregar aos seus escritos, ao blog da Marla, que me atrai tanto porque é ela quem escreve e não outro. E toda cobiça anterior era simplesmente dispensável porque eu me descobria como seu leitor, atento à tua atenção, ao teu forró irresistível de letras.
Eu sou fã dos mínimos, preciso te dizer. Daquele grão que muitas vezes também é óbvio e que inúmeras vezes ilumina uma direção. Daquele tal grão, que uma vez percebido ou aproveitado ou experimentado, transforma de maneira muito discreta e profunda, a maneira como a gente encara os dias. Compreender que eu era seu leitor, é um exemplo do que eu quero te dizer. Eu compreendi, no meu tempo, dentro do caos e da harmonia de ser eu mesmo. Feito um grão que tomei para mim.
Então, numa noite de chuva, eu vou até o seu apartamento sem ser convidado e te redescubro no abraço gostoso do seja bem vindo. Sento no chão da sua sala e ouço seus textos. Te ouço falar sobre eles com paixão e dúvidas. Com paixão e desejo de futuro e aos poucos eu puxo as folhas soltas sobre a mesa e mergulho sem vergonha entre as tuas palavras e como são boas, minha querida. A gente se despede na confusão do até breve e ao abrir a portaria, eu me dou conta de que estou no Leme. E chove. Eu preciso te agradecer por você morar no Leme, naquele cantinho discreto de frente para o mar, porque você me soprou ventos antigos e me resgatou uma história dessas, de amores brutos, quando eu não sentia que precisava sentir sensações de antigamente. Nem tão incompreendidas, nem tão exclusivas. Nem esquecidas. Sensações sem nome, dessas de escala Richter em nível máximo, que nos movimenta os dias, nos treme a base e que também nos faz melhores especialistas em porres com os amigos, no fim de tudo. Sensações montanha-russa com mar calmo e seguro logo depois, que nos entrega o amor de bandeja e todas as constatações óbvias e não imaginadas que tanto nos enaltecem que tanto nos aniquilam. Eu fui muito feliz no Leme, Marla. Eu tinha dezoito anos e já sabia ser feliz. Eu conhecia com intimidade o bairro, das padarias e lavanderias, do jornaleiro e dos mercadinhos. Ali eu fiquei sabendo de um monte de coisas e eu poderia te escrever por horas para dar nome às coisas todas que eu fiquei sabendo. Algumas eu ainda nem sei que sei. O meu amor maiúsculo, em qualquer definição ou lembrança, foi ali no Leme que eu vivi. Daquele amor que faz a gente compreender, questionar e zerar tudo porque chegou um novo alguém. Dois bons anos, de descobertas e todo o inédito me guiando a percepção, o coração e também a razão porque sou capricórnio com ascendente em capricórnio, de vinte e oito de dezembro, então a terra e os pés descalços são necessidade. Foi ali também, que eu percebi que precisávamos nos despedir. Que a vida definia as histórias e nos partia – de partir, ir embora e de partir quebrar, dividir – para cenários outros que um dia eu te conto olhos nos olhos. Aos vinte anos, eu já sabia o que era deixar partir. E sabia também escrever cartas de amor. Escrevendo eu compreendo melhor e também enlouqueço com lucidez. Faço e desfaço e digo amém.
Te escrevo à luz de velas porque essa chuva toda me deixou sem energia no apartamento. Te escrevo no caderno novo que comprei para as urgências dos impulsos. E também para compartilhar onde você me levou sem saber que me guiava. Bebi duas cervejas e me imaginei em outro século, me correspondendo com uma poetisa, escrevendo com a luz da vela dançando com o vento frágil da madrugada, ouvindo a chuva cair, cheio de tristeza e alegria, deixando a vida transbordar enquanto adormece calmamente. Palavra por palavra.
do teu fiel leitor
Egídio