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sábado, outubro 27, 2007


IMPÉRIO DOS SONHOS de David Lynch

Marla,

eu saí do seu apartamento ciente do desejo de te escrever. Sem saber exatamente quais vias optar, mas muito tranqüilo e muito seguro de que você receberia as minhas palavras com o coração florido, à espera da próxima semente. Veja você que uma vez o Danilo, que sempre me leu com muito entusiasmo e é tão amigo e tão sumido, me soprou de maneira imperativa e também entusiasta, que eu precisava, assim mesmo, com essa urgência, ler os seus textos. Que o teu ponto-de-vista aos desdobramentos do coração, muito se aproximava do meu olhar. Eu me lembro que ele disse que não tinha como não gostar da tua caligrafia. Confesso que senti um ciúme bobo, mas fui te visitar na mesma noite que ouvi seu nome pela primeira vez. Eu me lembro também que eu fiquei muito tempo te lendo. Alguns versos, algumas frases eu reli em voz alta. Outros eu cobicei tolamente e lamentei secretamente não tê-los escrito antes. Não que eu pudesse ou tivesse ferramentas, mas acho que deve ser comum no universo de quem convive intimamente com a escrita, esbarrar na armadilha do ‘eu queria ter escrito isso’. Depois de um tempo, eu passei a te visitar periodicamente. Depois de mais um tempo, eu te conheci ao vivo e à cervejas, naquele show debaixo daquela chuva, entre um eu sou a Marla e eu sou o Egídio. Depois de um tempo, compreendi que eu ia ler você de quando em quando, não porque queria escrever como você escreve, mas porque havia descoberto o hábito de te ler. Ler você, me entregar aos seus escritos, ao blog da Marla, que me atrai tanto porque é ela quem escreve e não outro. E toda cobiça anterior era simplesmente dispensável porque eu me descobria como seu leitor, atento à tua atenção, ao teu forró irresistível de letras.

Eu sou fã dos mínimos, preciso te dizer. Daquele grão que muitas vezes também é óbvio e que inúmeras vezes ilumina uma direção. Daquele tal grão, que uma vez percebido ou aproveitado ou experimentado, transforma de maneira muito discreta e profunda, a maneira como a gente encara os dias. Compreender que eu era seu leitor, é um exemplo do que eu quero te dizer. Eu compreendi, no meu tempo, dentro do caos e da harmonia de ser eu mesmo. Feito um grão que tomei para mim.

Então, numa noite de chuva, eu vou até o seu apartamento sem ser convidado e te redescubro no abraço gostoso do seja bem vindo. Sento no chão da sua sala e ouço seus textos. Te ouço falar sobre eles com paixão e dúvidas. Com paixão e desejo de futuro e aos poucos eu puxo as folhas soltas sobre a mesa e mergulho sem vergonha entre as tuas palavras e como são boas, minha querida. A gente se despede na confusão do até breve e ao abrir a portaria, eu me dou conta de que estou no Leme. E chove. Eu preciso te agradecer por você morar no Leme, naquele cantinho discreto de frente para o mar, porque você me soprou ventos antigos e me resgatou uma história dessas, de amores brutos, quando eu não sentia que precisava sentir sensações de antigamente. Nem tão incompreendidas, nem tão exclusivas. Nem esquecidas. Sensações sem nome, dessas de escala Richter em nível máximo, que nos movimenta os dias, nos treme a base e que também nos faz melhores especialistas em porres com os amigos, no fim de tudo. Sensações montanha-russa com mar calmo e seguro logo depois, que nos entrega o amor de bandeja e todas as constatações óbvias e não imaginadas que tanto nos enaltecem que tanto nos aniquilam. Eu fui muito feliz no Leme, Marla. Eu tinha dezoito anos e já sabia ser feliz. Eu conhecia com intimidade o bairro, das padarias e lavanderias, do jornaleiro e dos mercadinhos. Ali eu fiquei sabendo de um monte de coisas e eu poderia te escrever por horas para dar nome às coisas todas que eu fiquei sabendo. Algumas eu ainda nem sei que sei. O meu amor maiúsculo, em qualquer definição ou lembrança, foi ali no Leme que eu vivi. Daquele amor que faz a gente compreender, questionar e zerar tudo porque chegou um novo alguém. Dois bons anos, de descobertas e todo o inédito me guiando a percepção, o coração e também a razão porque sou capricórnio com ascendente em capricórnio, de vinte e oito de dezembro, então a terra e os pés descalços são necessidade. Foi ali também, que eu percebi que precisávamos nos despedir. Que a vida definia as histórias e nos partia – de partir, ir embora e de partir quebrar, dividir – para cenários outros que um dia eu te conto olhos nos olhos. Aos vinte anos, eu já sabia o que era deixar partir. E sabia também escrever cartas de amor. Escrevendo eu compreendo melhor e também enlouqueço com lucidez. Faço e desfaço e digo amém.

Te escrevo à luz de velas porque essa chuva toda me deixou sem energia no apartamento. Te escrevo no caderno novo que comprei para as urgências dos impulsos. E também para compartilhar onde você me levou sem saber que me guiava. Bebi duas cervejas e me imaginei em outro século, me correspondendo com uma poetisa, escrevendo com a luz da vela dançando com o vento frágil da madrugada, ouvindo a chuva cair, cheio de tristeza e alegria, deixando a vida transbordar enquanto adormece calmamente. Palavra por palavra.

do teu fiel leitor

Egídio

quarta-feira, outubro 24, 2007


POR UMA VIDA MENOS ORDINÁRIA de Danny Boyle

Falta, meu caro, alguma paciência, porque alguma inteligência e segurança, existem em decorrência de uma atitude bonita, reconheço, que só gera eloqüência e nada mais.

- Depois ele me deixou no ponto de táxi. Ele parou o carro e não disse uma palavra. Eu tive quase um minuto para compreender que era para eu sair do carro. Mudo. Olhando para frente. Sem dizer uma palavra.
- E você?
- Eu desci. Achando tudo muito engraçado e também surreal. Nem bêbado eu estava. Mas eu encarei com leveza, sabe?
- Eu não teria tanto sangue frio.
- Pois é, mas aí eu pensei que se o cara não consegue me encarar e falar, se ele não consegue se comunicar, eu lá vou entrar em discussão, vou debater um encontro mal arranjado? Eu saí leve, sorrindo e ainda peguei o final do jogo do Flamengo no rádio do táxi.
- Sério?
- Dois a zero Flamengo. Não me pergunte de quem foram os gols, que aí já é demais.
- Mas ele não te ligou depois, não deu notícias, vocês não se falaram mais?
- De manhã fui checar o e-mail e tinha um dele. Enorme. Pedindo desculpas, cheio de justificativas, explicações e particularidades. Se quer saber, eu tô com esse e-mail atravessado na garganta até agora.
- Você não respondeu?
- Não. Eu já li umas trinta vezes. As primeiras linhas me deixam irritado, eu começo a suar de ansiedade porque ele se desculpa e é melancólico. No meio do e-mail, ele muda a direção, sacana e ele me provoca com uma ponta de ironia, ele fala dos sentimentos dele em relação à noite, ele diz que nós estávamos em estradas congestionadas, em direções opostas.
- Brega. Tão clássico.
- Clássico seria ele não me escrever. Seria ele desaparecer. Como todos os seus. Os meus.
- Os nossos.
- O final do e-mail é que me sacudiu. Ele sugere um próximo encontro. Menos formal. Um jantar, no apartamento dele. Ele termina falando de solidão. Não aquelas baboseiras de ‘oh como estou só’. Ele fala do desejo íntimo de ter alguém. Dividir. Confundir as roupas, misturar os objetos. Ele me diz quase como uma confissão que cansou do momento de sair e vamos ver no que dá, do tesão saciado, das vitrines viciadas no reflexo do espelho.
- Eu achei que você estivesse criticando o cara. Reclamando desse encontro às escuras. Pensei que ele fosse um babaca.
- Mas ele é! Quer dizer, ele não é, mas poderia ser. Eu achei a atitude dele, de parar o carro e não me dizer nada, achei frio, incompreensível, rude. De imediato me veio a idéia da não comunicação, tão comum, cada vez mais comum. Gente que fala sem se ouvir, não se olha nos olhos, despeja as palavras e não se compreende.
- Mas foi ao contrário. Ele não disse nada e você conseguiu entender. Ele poderia ter feito um discurso de ‘não foi dessa vez’ e você bateria a porta do carro bufando.
- Não me confunda. Eu já não sei o que fazer, entende? A noite foi uma confusão de intenções. Ele foi carinhoso no início e eu me sentindo a dama do lotação querendo putaria. Depois eu percebi que ele era tímido, que ele queria conversar, eu fui demolindo a minha Sônia Braga e fingi que prestava atenção em tudo o que ele tentava dizer. Um barulho infernal, essa cidade cada vez mais barulhenta. Ele falava e falava e eu não conseguia me concentrar. Até que eu arrotei. Na frente dele. Sei lá o que houve, acho que eu esqueci que ele estava na minha frente e comecei a pensar em outras pessoas e escapou. Ele silenciou e levantou. Eu fui atrás. Então ele voltou e puxou a comanda da minha mão e pagou a conta, acredita que ele ainda pensou em pagar a conta?
- Um cavalheiro.
- No estacionamento ainda tentamos conversar, mas sabe quando não encaixa? Isso acontece até com quem a gente conhece bem. Têm dias que você não consegue fazer contato com as pessoas, com o ambiente, com o espaço do teu apartamento. Você não consegue. E eu... ele... nós não conseguimos. Já no carro, ele me perguntou se eu tinha alguma sugestão de programa.
- E você...
- Foi aí que eu fudi com tudo. Eu falei brincando e você sabe que eu vou com o impulso. Sugestões, ele me perguntou. Tem um dezoitão ótimo ali no Centro, eu respondi.
- Dezoitão?
- Um motel no Centro que custa dezoito reais.
- Então ele fez muito bem em te deixar no ponto de táxi. O que você esperava dele?
- Eu falei brincando, sem pensar. Num tom irônico e se ele não encara com humor um comentário bobo, ele realmente não combina comigo.
- Pense que depois de boa parte da noite, o cara de repente cansou. Encheu o saco e desistiu do tarado que arrotou na cara dele e ainda queria terminar a madrugada num pulgueiro de dezoito reais. Muita gente desistiria antes.
- Você acha que eu...
- Acho.
- Mas você acha que ele...
- Também acho!
- O que você sugere?
- Que você aceite esse novo convite. Vá dar risada do desastre que foi a estréia de vocês. Se vocês conseguirem brindar ao caos, se vocês conseguirem anular o engarrafamento, a não conexão, com uma nova chance, uma boa oportunidade de na pior das hipóteses, uma bela amizade vocês ainda descobrirem de brinde, existe. Ou o amor.
- Mas eu não saberia como agir.
- Tem que ir lá sim! Tem que chegar e olhar nos olhos, reconhecer que não foi bom mas que você está disposto a se comprometer com a pessoa que ele é. Não falo nem em romance ou outro tipo de desastre natural. Tem que fazer ele compreender que você quer ser reconhecido e está com vontade de conhecê-lo. Isso é tentar intimidade! O que pode ou não acontecer, não está ao nosso alcance.
- Você parece um livro de auto-ajuda.
- E vai ficar em casa vendo novela? Passando os canais? Como é que ele terminava o e-mail?
- Te espero hoje, às oito.
- É melhor correr ou você vai se atrasar...

sábado, outubro 20, 2007


GARÇONETE de Adrienne Shelly

Uma água e um copo com gelo e limão, por favor. Depois eu te peço alguma coisa para comer, eu ainda não decidi, o que nessas circunstâncias é natural, eu nunca fui bom em decidir, esse imperativo necessário, que encerra e muitas vezes, define as tramas. Por enquanto eu fico com a água. Se no caminho, você esbarrar com ele, peça com gentileza, por favor, peça para que ele reclame menos da vida. Eu realmente penso que ele perde muito tempo enumerando os fatos que atrapalham o seu percurso, reclama excessivamente, o que me causa irritação porque outra vez eu também penso que gente que reclama demais de tudo é porque está dormindo, matando o tempo, desatenta mesmo. A vida e os dias não podem ser resumidos ao trânsito caótico, ao compromisso perdido, na relação que não deu certo ou não prosseguiu. Se deixar soterrar pelos incidentes sem observar ao redor ou além ou somente olhar para o lado, buscar outro ângulo para a mesma situação, é caminho perigoso e corrói. Já se percebeu envelhecendo, deteriorando? Você percebe no momento o sopro do desgaste e é cruel não poder fazer nada. Nem palavrão resolve. Apenas nos salva. E não é papo de gente que quer parecer descolada e super criativa e bem resolvida. Não mesmo, a minha vida nunca esteve tão fudida. Eu falo de cifras e economias que não fiz. Falo do homem da minha vida que não me enxerga como o homem da vida dele e isso é foda, desculpe que eu te fale assim, com palavrões e tão intimamente, mas é isso, é foda mesmo. A situação, eu digo. Porque não ser correspondido faz do homem um ser muito mais interessante do que ele realmente é. Essa dor de não se ter o sentimento da pessoa em retribuição, essa emoção desfigurada que o estilhaço do não querer provoca, incendeia os melhores poemas e filmes e livros e nos coloca em movimento contínuo. Vivos. Isso sem falar nos outros mínimos. Mas se eu continuar, você vai me dizer que sou eu o reclamão da noite e não ele, ali, de camiseta verde, boné preto e barba serrada, essas belezas exatas me matam, sabia? Tinha uma tia que me dizia que um homem bonito de verdade é aquele que acorda bonito, que desperta e já está lindo, mesmo com o rosto amassado e que se o amassado do sono fizer ele ficar ainda mais charmoso, que pode-se decretar sua beleza incontestável. Sabe que eu concordo com ela? Aliás você também é tão linda. Te confesso que pessoas indiscutivelmente belas me intimidam. E me confundem. Me intimidam muito mais. Não sei explicar. Mas sempre foi dessa forma. Você pode me trazer qualquer coisa salgada para mastigar, essas guarnições comuns de batata ou frango ou qualquer coisa bem temperada. Eu tenho comido muito doce. Barras de chocolate, torrones e balas. Cheguei a comprar uma caixa de um chocolate qualquer. Não me lance esse olhar porque os dias não estão tão amargos assim. E não sou tão óbvio. O que importa é que sinto falta de sal. Sinto saudade de um tempo que era gostoso chegar do colégio e tomar um banho rápido para almoçar. Esse compromisso infalível de chegar em casa tentando adivinhar qual o cardápio que a minha mãe havia preparado. Depois você avise,por favor, docemente, para que ele passe lá em casa pela parte da tarde. Eu não vou estar, mas haverá quem lhe abra as portas. Ele pode levar os cd’s e livros que quiser. Só não abro mão dos filmes, eles são meus. Não abro mão. Isso é importante, por favor não esqueça. O que me parece mais urgente no final de tudo, é que deve existir qualquer tipo de ironia sádica no fato de você encontrar alguém pela cidade que parece ser o... como posso dizer, que parece ser a pessoa que vai te fazer transbordar e de repente, por pura safadeza, falte água. Água, como a que eu te pedi ainda agora. Depois você precisa deixar ir. Precisa abrir mão das teias, zerar, anular, se ferir, cada um compreende o nome que puder e tiver forças, para só então se sentir disponível a se deixar tocar por outro, de camisa de outra cor e boné tal, de barba e olhar manso, se ou quando aparecer. Apesar de que eu realmente penso que esse papo de buscar o amor é conversa de roteirista esperto. É uma questão de estar disponível, no fim das contas. Faz o seguinte, esquece tudo. Eu quero uma cerveja gelada e ao passar pelo bar, não diga nada ao rapaz. Não vamos deixar com que ele seja mais uma vez, o centro das intenções. Já que não há, já que não é, já que não será, quando acabar o seu horário eu pago uma cerveja e você me conta dos teus desencaixes, combinado?

quinta-feira, outubro 18, 2007


PIAF de Olivier Dahan

Existe ternura, saiba. Eu só percebi no meio do trânsito que persistir ou insistir ou ainda decidir a nossa vida não se trata apenas de mim. Quando uma das partes, por motivos infinitos, diz não, algo maior do que o orgulho, algo maior que a dor da recusa, algo maior que bater os pés no chão e mais uma vez tentar, algo maior que eu não sei o nome, precisa nos conduzir além da estrada. O que eu quero te dizer é que eu não havia compreendido que eu te amo sozinho e sem conjugação. Na minha ilusão romântica, você sempre me pareceu alguém que correspondia da sua maneira particular, o meu particular querer. Na minha inexplicável sede do um mais outro, eu criei rios insaciáveis que não refletiam mais do que o desejo no singular. E eu ainda me encontro entre o estático e o quase triste, feito um emo ou qualquer estereótipo similar. Sem saber agir para nenhuma direção. Sem refletir. Sem conseguir dar nome aos nomes do sentir. Sem saber se bomba ou calmaria, explosão ou estilhaços. Existe doçura e existe amor também, esse mínimo óbvio. Mas ando entre a inércia e o não agir. E não há aflição mais aguda que o não saber. Eu fui ler a Fal hoje e ela me guiava com as suas palavras de maneira clara, sem rodeios ou afagos desnecessários. Ela não desperdiça. Ela, que percebeu que a vida dá rasteiras irreversíveis, que poderia dizer ao mundo para ir se fuder, num ato de excelência, num respiro de lucidez e simpatia, ainda consegue ensinar animadamente sobre os desvios do não querer. Eu posso dizer que meu amor por ela, é uma amor de dois. Permutado, animado e cheio de afluentes.

Eu te dizia da sensação sem nome que me assalta a razão. Da necessidade de fazer acontecer. Do não desperdício. Do brinde e do grito. Do silêncio aflito e da terra molhada. Te dizia que existe tanto entre nós que me ata, que me faz caminhar em círculos. Das rosas e dos tons. Do início, do meio, do fim e de todo recomeço que a gente nasceu sem o mapa. Da esquerda, da direita e das outras opções. Do banho de chuva. Do toque e do arrepio, dos olhos e dos navios e da aquarela, eu desenho um sol amarelo, que descolorirá para que se cumpram os destinos. Eu quero parar a cidade e declamar os melhores poetas sem parecer inteligente ou atrevido. Poesia na medida do possível ou uma cachaça para esquentar e balançar o chão, música para te dançar, canções para te afirmar a juventude e as pistas, o suor, aquela euforia que é contagiante e efêmera. A intimidade das pernas, a coreografia dos corpos, o arrebatador instigar, de toques e reações, consentir, permitir, a troca de vida, não peça permissão para entrar ou sair de mim. A propriedade conquistada. De toda a nossa coleção de momentos, hoje eu quero te dizer que tudo é possível. Dentro ou fora de uma lógica, in or out, dear. Quer ser meu companheiro de viagem? Embriagado de nós dois, não vou te ouvir responder. Diga sim, precisamos de pouco. Basicamente eu e você. Os detalhes a gente vai tecendo, as dificuldades a gente vai sorrindo, as delicadezas a gente vai se apropriando, o amor a gente vai cuidando. Como ontem, como hoje. Como agora. Te dizia do que não existe entre nós. Do que é palavra, mas não se basta como verbo, substantivo, gramática. É íntimo. Sensações. Sentimentos. Do que nos faz sorrir, do que nos tomba lágrimas, do que nos faz dançar e nos move. De dentro para fora. Mexe com o humor, o apetite, os desejos. Mexe com a saúde, a saudade, o que é simples. Algo entre um lago em dia de verão e a escala Richter em último nível. Do desejo de correr, gritar e voar. Dos efeitos mais comuns de sentir raiva, bater o telefone, xingar. Um ato sexual não coreografado. A mesa pronta para o jantar com todos os elementos românticos em ordem, você leu em algum lugar. Do embolar e do encaixar. Dos raios e das tormentas. Do agora e do instante. Essas palavras. Esse ponto final que encerra o texto. E nos leva adiante.

Eu te dizia tudo isso sem dizer.
E você não me disse que.
E eu te disse.
E você não me.
Mas eu.
E você.

Chega desse xarope amargo.

sábado, outubro 13, 2007


A CASA DOS ESPÍRITOS de Bille August

De tudo o que eu te disse, o que realmente é importante é que eu fiz uma opção. Não pense que não me dói, que não me incomoda, que não me afasta de você. Machuca, enlouquece, cria um espaço, testa a minha força e eu só vou saber se sou capaz de enfrentar a minha decisão reagindo e reafirmando a todo o momento que é te pedindo espaço que eu vou poder tentar compreender. Não se trata de falta de amor, das diferenças que muitas vezes nos fazem duelar, do olhar que é tão diferente e quando se complementa é tão lindo. Trata-se de uma tentativa de compreender como a minha vida funciona sem ter você por perto. Se eu consigo, depois de todos esses meses, ser eu mesmo, sujeito aos raios e flores. Independente na caminhada. De pé. Objetivo, como tantas vezes você me cobrou não ser. É que depois que você abriu a porta, eu perdi a noção do exato e os sentimentos, as minhas atitudes, tudo isso perdeu o foco e eu, aos poucos, virei um ponto de interrogação. Eu fiz uma opção que não posso dizer ainda se foi a melhor. Mas eu decidi que. E o que acontecer daqui para frente, assumo a responsabilidade, não sou homem de fugir, inventar, omitir. A noite de ontem, decisiva feito lâmina, sacudiu minha emoção, me tirou do eixo, como você insiste em me provocar. Tive vontade de tentar te dizer como eu nunca disse. Tive vontade de chorar como eu nunca chorei ao teu lado. Tive vontade de abraçar e permanecer abraçado até que nos separassem, até que nos apartassem o carinho, até que me arrancassem dos teus braços. Mas tentei não perder o controle, parecer seguro, inteiro, sério para que entendesses que eu preciso nesse momento, optar. Ainda que você não concorde. Ainda que me digas tudo o que me disse. Ainda que nossas vidas estejam tão misturadas e eu já não sei mais onde sou eu, onde é você.
Meu amigo, meu amor. Guarde tudo o que vivemos até aqui. Do carinho protagonista aos segredos que nos surpreenderam. Das noites em claro conversando ao sono abraçado de mãos e fumaça. Hoje é para você que eu escrevo, declaradamente. Sem confundir quem ainda insiste em ler as minhas palavras. Sem tentar ser universal. Sem códigos, metáforas, provavelmente alguma hipérbole porque o sentimento está vivo e intenso. Quero que entenda que eu te amo. E que é o amor que me leva adiante e me faz ser quem eu sou. Perdoe pelas ligações que eu não vou atender, pelos eventos que eu não vou participar, pela cumplicidade que eu vou interromper. É preciso que seja assim agora. Hoje. Amanhã. Até que eu tenha forças para um novo ciclo. Até que eu te veja como tu me vês. Até que o olhar busque as mesmas necessidades. Sem dramatizar, eu vou deixar doer o que precisar. Chega o momento em que a gente procura o necessário, nunca o de menos ou o que vai além. E talvez por esse mesmo motivo, estar em busca do necessário, é que estejamos no meio do caminho - porque um decidiu - seguindo para algum lugar diferente do outro. E não é definitivo. Nem deve durar pouco. É. O que tiver que ser. O tempo que um precisar. O tempo que o outro descobrir que é, já sendo. Algumas perguntas eu preciso me refazer. Algumas respostas eu não me sinto capaz de produzir. E eu sei que a vida da gente não se resume em objetivas perguntas e respostas e que não é possível apostar os livros na vida real. Eu sei. Eu estou dentro das horas. Tanto quanto qualquer um. Mas nos fazer perguntas, muitas vezes, gera um movimento e todo movimento indica uma direção. Vamos descobrir, cada um, para onde devemos caminhar. Para que possamos ser futuro. De tudo o que eu te disse, o que realmente é importante é que eu fiz uma opção. E ela não te exclui.

segunda-feira, outubro 08, 2007


I'M A CYBORG, BUT THAT'S OK de Park Chan-Wook

A manhã ensolarada. O corpo preguiçoso. Banho quente. Café forte. Contas nas mãos. Cama pronta. O som baixo. Mochila arrumada. Boné. Calça larga. Tênis velho furado. Feito adolescente Gus Van Sant. Lixo para levar para a rua. Porta batendo. Chaves na mão. Portão aberto. Barulho de pássaros. Crianças brincando. Vizinhos. Garagem aberta. O dia pela frente. A rua pela frente. Caminhando em passos rápidos. Conversando em voz alta. Celular vibrando. Tô indo para o trabalho. Ponto de ônibus. Locadora e mais contas nas mãos. Ônibus. Aquele cochilo milagroso enquanto atravesso a cidade. Sol forte. Suor tímido de quem acaba de entrar no compasso. Destino certo. Quase atrasado. Bom dia. Chefe, cobranças e prazos. Vontade de sair correndo. Possibilidade de sair correndo. Desculpas esfarrapadas. Correndo sei lá por qual motivo. Almoço rápido. Consulta no jornal. Cinema mais próximo. Filme lindo que me faz sorrir dos amores e do sexo. Do sexo que não é o oposto. Fale sobre a sua intimidade. Todo mundo tem pau, bunda. Todo mundo tem desejos. Alguns cometem, outros fantasiam. Você na porta do cinema. Encaixe.

Safado, você atiça a pele e me encara com os olhos brilhando. Repete safado e me puxa pelos cabelos e pela nuca, suspendam os dramas e as questões maiúsculas que movimentam o universo, porque hoje eu só quero as tuas mãos em movimento, como quem manipula a argila e não se importa em sujar os dedos. Tuas mãos se perdem. Teu puxão no repente nos permite um beijo que acende todas as luzes. E é um prazer pegar fogo com você. Eu não saberia explicar. Chamam de química quando duas pessoas se percebem tanto. Quando as palavras não são necessárias para gerar significado. Quando o olhar encaminha o próximo movimento. Quando o movimento gera uma dança sem música. Ritmo. Respiração. Língua quente. Vermelha. Macia. Brincadeira séria entre dois homens. Parque de diversões. De velocidades. Intensidades. Sexo é também o outro. Principalmente os dois. Compreender a geografia do outro e se fazer entender. O jogo do se sentir vivo. Vale tudo. Liberdade é ter a certeza. Ou a consciência. Cumplicidade física. Difícil te encontrar. Faço minhas as suas... Um beijo que interrompe a palavra da palavra. Uma canção de outros tempos. Nós sempre tivemos essa afinidade. Não sei de onde veio. Não quero saber. Vamos tecer e aproveitar os fios dessa tarde. Hoje eu quero desligar da tomada da vida de todos os dias. Desligue também a sua tomada de todos os dias. Vamos sentir o impulso, o salto, o mergulho e viver o instante. Acenda todas as velas com todos os fósforos e derrube todos os muros e convenções. Hoje eu quero o prazer de te reencontrar pela cidade. Hoje eu quero você forte e frágil, delicado e barbudo. Deixe os livros lá fora. As opiniões também. As convicções, complicações, clichês, sermões e afins. Tudo do lado de lá. Elipse íntima inenarrável. A tarde encerra o tesão. A noite avança.

Metrô cheio. A vida em movimento. Telefone ligado. O retorno dos 'alôs'. As confidências. E você me coloca no chão. Você, que nem sabe de tanto. Ou de tudo e ainda me cospe um papo de competições, de perdas ou danos. Desligo. Notícias. Locadora fechada. Rua acima. A porta. O lar. A música. O sambinha. Jantar farto. Banho quente. Marcas sutis. Cama desfeita. Travesseiro pronto. A noite encerra a jornada. O corpo rende-se aos apelos de Morfeu. E ele chega de mansinho e forasteiro. A luz apaga como em fade out. E depois de quase oito horas, a manhã ensolarada. A folha em branco. Os diálogos não escritos. A vida espera um segundo e acontece no minuto seguinte. Como uma canção desafinada deliciosa.

E outra, deixo a beleza da disputa para os atletas.
E percebo que viver não é tão difícil ou complicado.
E não vale medalha.

quinta-feira, outubro 04, 2007


O EXPRESSO DARJEELING de Wes Anderson

As luzes se apagaram com o vento e eu observei sem medo algum porque antes de começar a ventar, eu já sabia desse fato de que certas chamas não resistem a certos sopros. E alguns ensinamentos e outras boas percepções a gente acumula ou coleciona ou comemora. O fato é que você sempre me pareceu esse homem previsível, esse amontoado de frases de efeito, atado a algumas crenças alegóricas, que no início me prendeu a atenção, presa fácil que sou, mas que não sustentou tanto do mistério e também do interesse do que poderia resultar na história de nós dois. Então não se aborreça quando eu interromper a viagem e deixar o trem. Também não se entristeça. Porque talvez eu te escreva uma carta, dessas cartas arrebatadoras de despedida e ou abandono, reconfortantes certamente, que vai te credenciar uma importância tal, que você não merece, saiba. Faz parte desse rito e aqui vou usar a palavra desapego, creditar alguma solenidade ao absurdo. E todo desencontro é um absurdo. Fossem dois dias antes, eu te escreveria na folha do pão um eu te deixei e prenderia com o imã da tua geladeira azul sem qualquer roteiro para te fazer compreender, satisfazer ou até mesmo festejar.

Aproveite essa mesma viagem que me desconstruiu certezas ao vento. E não é tão mal ou relativamente seguro, estar a dois. No plural, como você insistiu em brincar e eu nunca compreendi porque mesmo na soma do eu mais tu, eu sempre me senti sem conjugação. No esforço árduo para que o outro não se sinta tão só, existe também o agravante fato do esforço da solidão em vão. De que nada pode ser feito, já que algumas chamas resistem, outro fato incontestável. Você não é o homem que você me diz ser. Se fosse, não repetiria aos ventos com tanta freqüência. Não se preocuparia em se dar nomes, adjetivos, adornos que nada acrescentam. Você seria. Simplesmente. Eu saberia em silêncio pacífico e confortável. Te estenderia o tapete do meu melhor abraço e viajaria para qualquer lugar, entraria em qualquer trem porque nem a trajetória nem o destino romperiam a confiança do te quero em qualquer canto. Te laçaria o melhor dos beijos e ofereceria meu corpo sem sacrifício algum, puro exercício do prazer, sem querer me perder ou me encontrar ou qualquer besteira romântica excessiva dessas de livros e filmes. Apenas o laço. Certeiro e irresistível. Eu te falaria calmamente sobre infinitos motivos. Eu só não esperava te olhar nos olhos e encontrar essas lágrimas.

Diga todas as palavras, vasculhe o dicionário da tua dor que eu ouço sem interromper, sem questionar, sem nenhum ponto ou vírgula. Fale. Quer chorar, derrame, tombe toda a cerveja dessa noite em sal. Precisa doer, deixe doer toda a dor que omitiu, que deixou para depois. Respire as gotas em alívio e exista sem fugir. Parece que dói menos quando a gente finge que esquece, quando a gente faz que não percebe, mas em algum momento, no mínimo detalhe, a gente percebe, inevitável que é: um reflexo no espelho, uma voz no celular, um simples copo de caipirinha. E ele chorava e chorava e quanto mais ele chorava, mais em silêncio eu ficava. Não existe palavra que conforte quando o outro não deseja o conforto. Compreendi que minha presença naquele quarto daquela quase manhã era só para deitá-lo no colo e deixar-me molhar a camisa já molhada da dança de ainda agora. Que todo mundo precisa de alguém para ouvir o desabafo real, a dor latente, viva. Sem palavras inúteis ou educadas ou amáveis que de nada adiantam. Optei pelo silêncio sem vazio. O silêncio em respeito. O silêncio atento, que ouve sem parar toda a tua história, em detalhes, repetidas vezes. Porque é importante ser ouvido e dizer tudo aquilo que amedronta, que faz doer, que incomoda. Tudo o que você nunca disse a ninguém e só teve coragem porque bêbado a gente enfrenta a timidez, a gente rompe com as boas maneiras, a gente volta ao instinto da criança que chora porque dói. Chorou até amanhecer. A cidade nublada e fria. As ruas vazias. O caminho de volta para casa. O rosto vermelho. O abraço que nos separou em busca dos destinos. Voltei para casa sem pensar em nada. O pensamento em branco. Admirado com o silêncio de todas as ruas por onde passei.

Chore hoje teus rios que também eu tenho os meus. Também eu tive finais não concluídos, malas prontas, olhos nos olhos, o telefone em espera infinita e um porre logo após o ponto final para usar como justificativa para o desabafo das inevitáveis lágrimas. Também eu tive momentos intensos, de amor e sorrisos, de beijos e suor, intimidade e pernas, conquistas e comemorações. Nossa história se confunde com personagens diferentes.