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segunda-feira, dezembro 31, 2007


ACROSS THE UNIVERSE de Julie Taymor


Foi quando atravessou a rua de volta que ele começou a perceber. O sol forte de verão e os pés descalços. Existe qualquer certeza em qualquer pessoa, que é capaz de sinalizar quando algo não está bem. Como um fio desligado que impossibilita o funcionamento de uma máquina. Algo nele o fez perceber, como um estampido, que precisava sentar. Precisava de ar. Água. Conforto. Ela compreendeu que algo não ia bem ao olhar olhos nos olhos e perceber qualquer tipo de pedido de ajuda urgente.

- Eu não estou bem.

Eram quatro e é importante dizer que eram quatro jovens. E você sabe que jovens são essas pessoas ávidas por novidades, inteiramente disponíveis e quase nunca machucados. Eram jovens e estavam a caminho da praia de Copacabana dois dias antes do ano terminar. O verão exigente da cidade do Rio de Janeiro expulsando as pessoas de suas casas, misturando-as pelas ruas, bares, pela orla. Os quatro caminhavam sem preocupação, em direção ao mar. Foi quando, desplugar de qualquer interruptor, o mais velho entre os quatro, sentiu o suor descer mais forte pelo pescoço, as pernas sentiram o peso do corpo e a velocidade da cidade diminuiu vertiginosamente.

- Preciso voltar para o apartamento.

Três rapazes: um ator, um estrangeiro e ele, que eu não saberia definir a ocupação ou a nacionalidade. Ela não precisa de muitas qualificações, sendo a mais importante e talvez a que melhor esclareça: a única mulher entre eles. Em última análise, o norte dos meninos e boa parte do tempo a graça também. Foi ela, antes de qualquer cena cinematográfica pelas ruas de Copacabana, quem compreendeu que algo não ia bem. Não precisou de tanto esforço, apenas ouviu e olhou nos olhos o rapaz que ia perdendo a cor dos lábios e respirava com dificuldade. Sentado no meio-fio, o som das ruas foi se misturando ao eco confuso de vozes que não saberia dizer de onde viriam. Ela pegou na mão fria dele e chamou o ator, que dava atenção a uma senhora, provavelmente fã provavelmente curiosa. O ator observou e repreendeu a cena real por não acreditar de fato que algo não ia bem. O estrangeiro apenas observava, sem ter o que fazer ou dizer. Observava, como se deixasse os fatos acontecerem antes para que pudesse agir depois. Ou durante.

- Eu tô falando sério. Eu estou passando mal.

Desistiram da praia por alguns minutos. Deixariam o rapaz no apartamento e de lá cumpririam os seus planos de sol e mar, água-de-coco e biquínis indecentes. Só que antes, tal qual um eclipse, ao se levantar e dar alguns poucos passos, o rapaz percebeu e há nessa percepção muito mais do que seria possível descrever, que não só lhe faltava ar como também equilíbrio. Eclipse é o escurecimento parcial ou total de um corpo celeste, provocado pela interposição de um outro corpo celeste. Na antiguidade, em função do baixo conhecimento astronômico, muitos povos acreditavam que o eclipse era um sinal de que alguma coisa ruim ou uma catástrofe natural estava por acontecer. Não percebeu que seu corpo tombou ao chão. Não percebeu que o copo cheio de alguma bebida gelada havia escapado das mãos e escorrido pela calçada. Ou que o estrangeiro lhe segurava a cabeça e chamava seu nome. Não percebeu que ela correu para o restaurante mais próximo para pedir sal pelo amor de deus sal, moço. Só ouviu a voz do ator que interrompeu a escuridão que lhe provocou o desmaio, gritando:

- Volta! Não se deixe levar!

Na realidade, a totalidade de um eclipse dura no máximo sete minutos e meio. Um eclipse solar total começa quando a Lua alcança a direção do disco do Sol, e aproximadamente uma hora depois o Sol fica completamente atrás da Lua. Nos últimos instantes antes da totalidade, as únicas partes visíveis do Sol são aquelas que brilham através de pequenos vales na borda irregular da Lua. Retomou a visão, parte do equilíbrio, o desespero passou e ela voltou correndo, afobada, com dois saquinhos de sal nas mãos. Água gelada, uma fruta e o riso nervoso para dissipar a tensão inesperada. O retorno seja lá de onde, seja lá para onde. Alguns minutos depois, todos de acordo, caminharam em direção ao mar, ponto em comum entre os quatro. Destino inicial e que não deveria ser desperdiçado em dia de céu tão azul.

Durante a totalidade, o céu se torna escuro o suficiente para se observar os planetas e as estrelas mais brilhantes. Na praia, sob a sombra da barraca, do chapéu e dos óculos-escuros, ele observou a tarde com confusão, felicidade e uma ponta de medo. Algo dentro dele não estava bem. E ele sabia, ainda que as ondas, as pessoas, os sorrisos e o carinho do estrangeiro, do ator e da mulher lhe confortasse por alguns momentos. Algo de cabeça para baixo dentro dele. Algo que não saberia explicar, por isso essa palavra: algo. Algo que o faria repensar. Algo que modificaria a sua vida depois daquelas horas. Algo íntimo que não teria coragem de dividir com nehum dos presentes. Algo maior que ele e também mais forte. Algo que revelaria a sua fragilidade e mais, a exporia sem a preocupação com o cenário, o clima, os envolvidos. Algo que o pendurasse no cabide e lhe tirasse os pés do chão. Que não o faria chorar. Ou sorrir. Que não terminaria no momento final. Mas se prolongaria por onde quer que estivesse.

Depois cada um encontraria as suas partes, reviveria seus momentos, tirando a vida do pause. O ano no fim. A idade nova lhe estapeando e a sensação de que tudo ao redor está dessa maneira, sem ar, fragmentado, talvez um reflexo do calendário, desse futuro de plástico globalizado cheio de pressa. Sendo assim, como se fossem flores, os quatro recolheriam os seus, as suas, com as mãos cheias, característica boa de gente jovem.

Teve saudade de uma história com início, meio e fim.


Aos meus três anjos do dia vinte e nove.

sexta-feira, dezembro 28, 2007

30 anos, 30 filmes





1. O Sétimo Selo / Ingmar Bergman / 1957





2. A Pequena Loja dos Horrores / Frank Oz/ 1986





3. Conta Comigo/ Rob Reiner/ 1986





4. Mamãe Faz Cem Anos/ Carlos Saura/ 1979





5. Magnólia / Paul Thomas Anderson/ 2000





6. Antes do Pôr-do-Sol/ Richard Linklater/ 2004





7. O Baile/ Ettore Scola/ 1983





8. Cidade dos Sonhos/ David Lynch/ 2001





9. A Estrada da Vida/ Federico Fellini/ 1954





10. Edward, Mãos-de-Tesoura/ Tim Burton/ 1990





11. Cantando na Chuva/ Stanely Donen & Gene Kelly/ 1952





12. O Céu de Suely/ Karim Ainouz/ 2006





13. Short Cuts/ Robert Altman/ 1993





14. Do fundo do Coração/ Francis Ford Coppola/ 1982





15. Laranja Mecânica/ Stanley Kubrick/ 1971





16. Tiros na Broadway/ Woody Allen/ 1994





17. Pequena Miss Sunshine/ Jonathan Dayton & Valerie Faris/ 2006





18. Crepúsculo dos Deuses/ Billy Wilder/ 1950





19. Festim Diabólico/ Alfred Hitchcock/ 1948





20. A Razão do Meu Afeto/ Nicholas Hytner/ 1998





21. Plata Quemada/ Marcelo Piñero/ 2000





22. Amores Brutos/ Alejandro González Iñarritu/2000





23.Hair/ Milos Forman/1979





24.Melhor é Impossível/ James L. Brooks/1997





25. O Labirinto do Fauno/ Guillermo del Toro/ 2006





26.Tudo Sobre Minha Mãe/ Pedro Almodóvar/ 1999





27. Trinta Anos Essa Noite/ Louis Malle/ 1963





28.E Sua Mãe Também/ Alfonso Cuarón/ 2001





29. Curtindo a Vida Adoidado/ John Hughes/ 1986





30. O Garoto / Charles Chaplin/ 1921

sábado, dezembro 22, 2007


RATATOUILLE de Brad Bird


Eu encontrei dentro de um baú uma folha terrivelmente amassada escrita à mão. Ela já esteve no meu espaço antigo, mas sinceramente não me lembro qual filme a ilustrava. Confesso que me deu preguiça de ir pesquisar. Eu reli com a sensação muito certa de que era a primeira vez que o estava lendo. Mas como posso ler pela primeira vez um texto que foi escrito por mim? Como pode a minha grafia ter mudado tão pouco em quase cinco anos? Como resgatar e despertar um você que já não está nem tão perto, porque o acaso fez com que essa folha, terrivelmente antiga, me visitasse sem anunciar? Eu reli. Eu li. Eu encontrei um eu antigo que não mudou muito. E eu acredito que a gente repensa e arrisca por questões diversas, mas não deixamos de ser aquele que fomos compreendendo ao longo do caminho. Nenhuma mudança radical me parece convincente. A cor do cabelo, dos olhos, as roupas, os ambientes, um nariz, a mobília, os traços, a gente pode brincar com essa arquitetura de acordo com a opinião, a estação, o desejo simples. Sem deixar de ser a pessoa que sempre fomos. No singular, porque é o meu na reta: sem deixar de ser o cara que eu sempre fui. Então, ler as minhas palavras, o meu texto sem compasso de algum tempo atrás e descobrir que algumas idéias e velhas sensações não mudaram, não acompanharam as transformações externas, me causa a terrível sensação de que entre nós a cadência não se alterou. Nesse fato existe beleza. E também crueldade. Eis a folha amassada:

Deve ser por esse motivo que compro tantos livros / filmes / cd's. Porque posso tê-los. Nunca vão embora. Não existe em mim a sensação viva de ter que deixar partir. Não. Existe a certeza. De ter. E na vida real, essa de agora, é preciso deixar que não só as coisas, mas também e principalmente as pessoas, partam. Sigam suas vidas independente dos laços e afetos. Independente do amor. Deixar alguém subir balão acima rasgando o céu, é um exercício que dói muito. Exige disponibilidade de ambas as partes. Todas as partes.

Estou sensível e estar nesse estado ou estágio me deixa natural e obviamente vulnerável. Nunca fui tão eu mesmo. Nunca me senti tão Egídio. Erupção de cuidados / carinhos / amores e não me lembro de tão fina dor. Deixar partir exige e dói. Não deixa feridas abertas. É mais intenso do que se supõe porque parte de uma percepção. E você sabe que perceber é no estalo. Às vezes sutil. Outras como um tapa, solavanco, raio de luz. Acúmulo de fios invisíveis que precisam ser cortados - porque deixar partir é uma necessidade. Saudável necessidade de um provável vício. Não tem relação direta com a posse, já que livros / cd's / filmes são possíveis na estante. Pessoas não, pessoas são vivenciadas. As minhas, pelo menos. E cada qual com seus mistérios e simplicidades. Fora da ordem, no meio da cidade, enfrentando a balança, que raramente está em sintonia. Sempre mais pesos que medidas. Ou o contrário.

O fato é que te deixar partir me pegou um tanto de surpresa e já é verão. Porque percebi no estalo do abrir de uma cortina, no vermelho de um vestido. Sangrando na platéia, percebi bruscamente que o fio invisível desfez o nó e te lançou foguete acima. De maneira surpreendente. Como nas histórias mais bonitas. Mais intensas. Estou quase em silêncio e compreender me ilumina e nos enaltece. Compreende que te deixar partir é também, me deixar ir embora. Não é te dizer adeus, não compreenda por essa estrada. É apenas perceber que não posso ter você. Que não é possível ter alguém. Que essa idéia - ter - é uma forte e perigosa sensação porque ela parece real. Te deixo partir porque essa é a imagem que tenho de nós dois agora. Nossa história, nosso afeto, nosso amor, tudo isso são conquistas. Valores que estão na circulação, correndo pelo coração. Quem parte é o indivíduo. É ele quem segue.

Siga adiante. Também eu sigo. Lance mergulhos e vôos. Lanço eu os meus. Ame. Vou amar. E deixar as pessoas chegar. E partir. Como um fluxo de experiências. Meu amor por você vive me surpreendendo. Eu havia escrito isso, mas não tinha compreendido.

Te deixar partir não é deixar de te amar.

Hoje assistindo o ratinho perseguir a sua natureza, contrariando todas as previsões, opiniões e interferências, eu compreendi que se perde muito tempo com os obstáculos. Que boa parte das oportunidades se resolvem na opção de um sim. De um não. Sem fantasmas, sem subjetivos suspiros, sem poesia para sublimar qualquer realidade olho no olho. Eis o fato. Eis a realidade dos fatos. Não nego a magia, compreenda. Mas algumas pessoas são menos mágicas do que supomos. E não merecem os nossos sonhos. No singular que não sou homem de me justificar no bando: perdeu, zé mané.

terça-feira, dezembro 18, 2007


O ASSASSINATO DE JESSE JAMES PELO COVARDE ROBERT FORD
de Andrew Dominik


- Porque tudo o que eu te digo, tudo o que eu faço para que a gente não estacione, qualquer tentativa, é vã. Então não me importa se são duas da manhã, se faltam duas semanas para que o ano termine, se a tua mãe vai operar amanhã. O que importa é que finalmente eu tive a coragem de tomar uma atitude prática. Eu vou embora. As malas estão prontas. O táxi está esperando.
- Não vai embora dessa forma, por favor.
- Não me peça para não ir embora. Essa é a primeira vez, depois de quanto tempo, que eu decido alguma coisa. Eu.
- Não é verdade. Senta aqui no sofá, vamos conversar um pouco. Deixa eu dispensar o táxi.
- Não!
- Eu não estou pedindo para você não ir embora, entenda. Eu só estou pedindo para você não ir embora agora. Alguns minutos... Eu te peço alguns minutos para que a gente possa conversar, para que eu possa te ouvir e tentar entender. Por favor, Gabriel.

Ele se chamava Gabriel e o nome havia sido escolhido pelo pai que estudava os anjos e outros afins. Vinte e oito anos, músico por mero acidente. Um dia seu irmão mais novo quebrou o violão de uma vizinha. Foi Gabriel quem se responsabilizou pela compra de outro instrumento para reposição. No Centro da Cidade, descobriu uma série de lojas de instrumentos especializadas e também no Centro, descobriu a Escola de Música, onde por impulso e curiosidade, entrou para conhecer. Duas semanas depois, já era aluno e o instrumento escolhido para praticar era o violão, que lhe serviria com facilidade após as longas aulas de teoria. Entre Gabriel e o violão havia química. E mais que isso, havia intimidade. No final do curso de música, dois dias antes da formatura, ele foi apresentado durante uma festa de um amigo do amigo ao André. Três meses depois, os dois se mudaram para um apartamento em Copacabana. Moraram juntos por quatro anos, três meses e vinte e oito dias.

- Eu preparei o jantar. Arrumei a casa. Fiz a comida que... Eu não vou dizer esse texto de novela. Você podia ter ligado, André. Você podia ter me dito que não, que eu não precisava mais me preocupar com você, que eu podia sair com os meus amigos e flertar com qualquer outro, porque você preferia estar com outra pessoa. Que nós dois juntos precisávamos de um tempo. De um verão afastados, sei lá. Você deveria ter sido leal
- Então você vai embora porque não te liguei? Você sabe o inferno que eu tô passando no trabalho...
- Eu tô indo embora porque eu preciso ir embora daqui.
- Sem motivo, Gabriel!
- Eu preciso, necessidade. Você melhor do que ninguém entende o que é uma necessidade. De se colocar em primeiro plano. De não depender de ninguém para agir com a vida. Eu vou embora porque eu preciso ficar longe de você. Não é porque você não me ligou. É porque você gosta de outra pessoa. Porque você está se envolvendo com outra pessoa. E eu não suporto fingir que eu não percebo o perfume na tua roupa, que eu não vejo as marcas nas tuas costas, no banho. Que todas as ligações que eu atendo são misteriosamente interrompidas depois do meu alô. Não negue, aceite. Aceite e você vai se poupar de uma cena ridícula, negando o óbvio para que a sua imagem de bom moço permaneça intacta. Eu conheço você. Talvez esse seja o motivo principal da minha dor. Porque te conhecendo, eu sei que você me ama e ainda não me procurou para conversar porque ainda não teve coragem. Te conhecendo eu também sei que você não é homem de se deixar levar por qualquer um. E por isso mesmo... O que você está vivendo, seja lá com que for, é forte. É amor. É suficiente para que a gente não permaneça. E eu tenho inveja dele.
- Eu queria tanto que você ficasse.
- Eu também queria ficar. Mas não é mais uma questão de querer ou não querer.
- Fica.
- Eu preciso te deixar.
- Por favor.
- Eu preciso te deixar porque eu não suportaria ser deixado por você.

Gabriel, derivado do hebreu significa: "Homem vigoroso de Deus". É considerado por algumas religiões como um arcanjo ("principal dos anjos"). O Anjo Gabriel, comemorado em vinte e nove de setembro pelas denominações cristãs como o Arcanjo da Esperança, da Anunciação, da Revelação, sendo comumente associado a uma trombeta - é a Voz de Deus, o transmissor das Boas Novas. Ao anjo Gabriel foi confiada a missão mais alta que jamais havia sido confiada a alguém: anunciar o nascimento do Filho de Deus. Por isso, é muito admirado desde a antigüidade. O termo de apresentação quando apareceu a Zacarias para anunciar-lhe que ia ter por filho João Batista foi este: "Eu sou Gabriel, o que está na presença de Deus".

- Vai viver a tua história, André. Sabe que por muito tempo eu tentei me adequar ao teu universo prático de tentar manter uma aparência que te favorecesse aos olhos de quem não te conhecia. Eu nunca precisei aparentar, eu nunca me preocupei em causar uma impressão nas pessoas. Sempre acreditei que agindo de forma sincera, de acordo com os meus princípios e de tudo em que acredito, eu ia aproximar ou afastar as pessoas. Ia ficar quem tivesse que ficar. Depois que a gente começou a namorar, especialmente depois de nos mudarmos, eu fui deixando de ser eu mesmo. Eu fui me transformando no namorado de alguém. A sombra, a segunda opção, o estepe. Você, o modelo perfeito, a escultura irretocável. Eu nunca me importei com isso. Porque eu sempre te amei e eu te amo. Eu nunca me importei em ser o preto e branco da relação. Eu achava que a minha permissividade te deixava num lugar confortável. Te dava espaço para você brincar com o seu ego, a sua capa de revista, os teus emblemas de plástico. Mas você me traiu, foi desleal e eu não posso fingir mais.
- Se você quiser eu saio do apartamento.
- Não me doeu tanto quando você trepou com aquele outro depois de dois anos juntos. Porque eu sabia que era só tesão. Que uma camisinha e algumas horas num motel barato, iam te satisfazer. Que depois a culpa ia te corroer e você ia me contar, chorando, arrependido, me pedindo perdão. Eu ia xingar, te bater, quebrar uns quadros e depois nós faríamos sexo para lavar os estilhaços. Eu não tô puto porque você tem outro. O teu amor é viciado em você mesmo. Todas as curvas e todos os retornos vão dar no mesmo lugar. Eu me sinto traído porque eu nunca te julguei capaz de amar alguém que não fosse coadjuvante. Eu sempre soube que o nosso amor era um amor... Frágil. Pouco real. Eu nunca te julguei capaz de amar alguém, de verdade, além das aparências. Amar além da embalagem. Amar a ponto de ter que largar alguém depois de quatro anos, cientes de que não houve amor, mas afinidades e carinhos e alguma compreensão. Isso me deixa puto. Enfurecido. Babando de ódio, inveja, raiva, mágoa. Porque você ama alguém que não sou eu.

Abriu a porta e não se preocupou em fechá-la. Desceu as escadas e o mundo não terminou. Pensou em tragédias, maremotos, deslizamentos, tempestades e ventanias. Não sabia se sua raiva era um disfarce incômodo de uma inveja maiúscula como jamais ousou sentir ou se de fato, era uma raiva crescente, vulcão ativo em cidade povoada. Não sabia que podia sentir por André nada que não lembrasse o amor de sempre, colcha de retalhos.

Passou a noite no apartamento dos pais.

No dia seguinte, viajou. Mas o destino eu não conto.



quinta-feira, dezembro 13, 2007

SONHANDO ACORDADO de Jake Paltrow


Um ou dois ou talvez uma infinidade de detalhes que você precisa saber para que a gente não desperdice tanto do nosso tempo, tanto do nosso carinho. Eu gostei de você antes de te conhecer. Um gostar curioso, apreensivo porque não havia a imagem real: o teu rosto iluminado pelo teu sorriso de cabelo bagunçado. Um gostar de menino que ainda não viu o amor. Eu tinha o receio de criar alguém no pensamento que pudesse desmoronar no plano real. Um ou outro amigo me dizia que eu ia gostar de você, que era impossível eu não me deixar devastar porque as afinidades, a calmaria, o tempo do silêncio, tudo isso me aproximava sem eu sequer pedir, sem eu sequer saber de ti. Foram duas semanas adiando o encontro e eu não sei dizer as razões reais. Eu sei dizer que eu não queria e não querer não é não gostar de você. Não querer só me dava mais tempo para te resistir. Para te manter intacto, intocável e absolutamente possível. Não querer era te preservar no pensamento. Antes mesmo do primeiro aperto de mão.

Você não é aquele cara que eu criei na minha fantasia. Você não veste as mesmas roupas que os amigos confeccionaram em noites de anúncios e planos embriagados. Você também não me ganhou no olá, como eu já ouvi em algum filme. É difícil falar com você, o que é uma grande mentira, falar é fácil, puro exercício de gramática, educação e voz. O que me parece difícil é me fazer compreender. Ou entender o que você me diz. Nossa comunicação não acontece da forma que eu esperava. Eu não me sinto à vontade para te fazer nenhuma pergunta, apesar de não ser tão curioso. Me sinto verdadeiramente desinteressante perto de ti, incrivelmente sem base, sem conseguir fixar o olhar por muito tempo. E todas aquelas afinidades anunciadas se perdem no espaço que há entre nós, tímidas que são. Você nunca me pareceu tão inacessível, apesar de achar sinceramente que é apenas uma questão de momento, energia, astrologia, whatever, que ainda não aconteceu. Mesmo assim, dessa maneira tão controversa, de universos que ainda não se reconheceram, eu talvez – e dizer talvez seja uma maneira exemplar de confirmar – eu esteja apaixonado por nós dois.

Desse desafio de não conseguir conciliar o você real com o você imaginado, eu descobri um homem mais interessante do que havia, sem haver. Então cada vez que te encontro eu também desfaço trouxas de um pensamento antigo e jogo no rio. Para que sejam lavados sem ser levados. Para que na limpeza da sujeira, eu possa zerar os meus equívocos. E te olhar como quem chega, já sabendo que vais partir, porque eu sempre soube das condições da tua visita. O fato é que existe pouco tempo para nós dois. O fato é também que ainda não existem dois para essa história. Morro de medo de te estender o tapete, bobo da corte, sem conseguir te dizer quem eu sou, onde moram os desejos, revelar alguns segredos, esbarrar na intimidade de se deixar tocar além do físico. Me transformar em alguém melhor do que aquele que você apenas tomou conhecimento e não se encantou. E meu caro, eu quero o encantamento. Sou dessa gente que opta pelo risco, antes mesmo de saber das condições do resultado. Que diz sim e diz não e diz talvez respeitando as suas vontades, ainda que doa, que seja bom, que seja pouco, raso ou que valha cada minuto. Sou dessa gente que não deixou de lado o amor. Que não abandonou os sonhos em gavetas. Que não guardou a poeira em caixas e sobreviveu ao bater de todas as portas. Espantou os fantasmas de todo não assombrado, com uma nova oportunidade para dividir a vida dos dias. Sou dessa gente que insiste sem querer desistir. Junta os cacos e no acerto, no melhor dos acertos, silencia e agradece aos anjos, aos deuses e todos eles juntos sopram essa brisa enfeitiçada de um negócio que eu não dizer qual, como, onde, para onde foi, para onde vai.

domingo, dezembro 09, 2007


OBRIGADO POR FUMAR de Jason Reitman

Tinha um cigarro na mão. Direita. Aceso. Eu vi exatamente o momento que ele chegou no ponto de ônibus. Eu estava na porta da locadora, tomando um café quente. Aí tem aquele estalo da pessoa de repente aparecer no cenário até então comum, sem que seja anunciada. Você presencia o minuto exato que ela entra em quadro, no teu campo de visão e se ela te interessa, por algum motivo, o que há em volta se reorganiza e o café quente, tão cotidiano, se transforma em charme improvisado. O cigarro na mão direita, por acidente ou distração, escorrega entre os dedos e cai no chão. Ele esbraveja tão baixo que mal consigo perceber o tom da sua voz. Ele passa as mãos no cabelo curto e volumoso, preto, penteado e quase molhado. E encontra os meus olhos de observador. Não nego e não me intimido ao ser desmascarado. Ele parece confuso e levemente irritado. Ao se aproximar, engulo o último gole do café. Doce.

- Você tem um cigarro?
- Não fumo.
- Perguntei se você tem um cigarro. Você tem?
- Não, eu não tenho um cigarro porque não fumo.
- Droga. Meu último caiu no chão.
- Sim, eu vi.
- Eu vi que você viu. Pior que não vão trocar cinqüenta reais por um cigarro na padaria. E eu ainda tô atrasado para a escola.
- Escola?
- Sim, tenho uma prova chata de Português no segundo tempo. Sabe que eu levei bomba em Geografia porque eu não consigo acordar cedo para pegar o primeiro tempo?
- Já pensou em mudar de turno?
- Educação Física também, mas o professor gosta de mim e me coloca sempre em prova final. Depois faço um trabalho escrito.
- Sobre o que você escreve?
- Varia. Normalmente o tema sempre é relacionado aos benefícios das atividades físicas.
- Que você, certamente, desconhece. Você não parece estudante.
- Eu deveria parecer?
- Quando eu te vi chegar, imaginei que você estava indo para o trabalho, algo no setor artístico, música, você parece músico.
- Ainda não. Qual a tua idade?
- Trinta em alguns dias.
- Você também não parece ter trinta anos.
- Já entendi que as aparências nos enganam. E você?
- Dezenove três dias atrás. Olha o meu ônibus aí.
- Boa prova pra você.
- Eu passo aqui quando eu voltar para te contar como foi.
- Sim.

Depois disso o tempo passou. Não pela falta de romantismo, o pensamento teceu outras teias de ocupação e o trabalho, os amigos, o toque do telefone, as novidades grãos e tanto da poeira, fizeram com que aquela promessa do eu passo aqui quando voltar se dissipasse. Não que não me importasse. Não que eu não quisesse. É que a gente se deixa levar. A gente se deixa levar pelo sei lá, mesmo quando arrebatados. Porque essa é a maneira de não se deixar sufocar. Até que o relógio me informou que era hora de fechar a loja e o dia foi tão... Onde estão as palavras... Veloz. Não deu tempo de fechar o caixa, de trocar os cartazes, de fazer metade do que havia planejado. Fechei a primeira porta e passei o trinco. No movimento para fechar a segunda, uma mão interrompeu o movimento e antes de me assustar, ele me disse:

- Não vai querer saber como foi o meu dia?
- Lindo. Você está lindo.
- Passei em casa antes para tomar um banho, mudar a roupa.
- Fez a barba, se perfumou, caprichou na camisa. Vai encontrar a namorada?
- Eu vim te ver.

sexta-feira, dezembro 07, 2007


O BÚFALO DA NOITE de Jorge Hernandez Aldana

Sete de dezembro de dois mil e sete, eu me situo no tempo para não parecer tão perdido. Rio de Janeiro, zona norte da cidade, eu situo o espaço para não soar tão desgovernado. É noite e eu não saberia precisar os minutos, apenas o céu azul de um marinho tão profundo como pensamentos iluminados por estrelas e edifícios. Busco por um silêncio que me fascina e é necessário. Faço o caminho de uma estrada que não sei onde termina ou onde vai desaguar. Possibilidades me assustam tanto quanto a ausência delas. Grande companheira a mala numa viagem não pensada ou desejada onde sem sair de casa, me deixo navegar no perigoso e fascinante exercício de praticar a vida. A mala nas mãos e o silêncio necessário que me diz dez mil palavras, segredos ou mentiras, verdades ou ilusões e eu acredito, questiono, desobedeço e tento compreender que. A vida é cheia de códigos. Óbvia conclusão que na prática te pega de surpresa e confunde as peças.

Com fúria e com vontade de ter você em meus braços, eu te. Querendo acertar, eu te. Mas as pedras do tabuleiro não se moveram. Por isso eu peço para sair do jogo de nenhum de nós. Termina o jogo sem fim antes da próxima rodada? Eu saio em busca de partidas mais simples, sem tantos nós presos na garganta, sem tantos nós. Vou pensar o singular. Eu. Vou me permitir verbos e outros plurais mais adiante. Por isso te peço sem doer exagerado como uma canção do Cazuza, que não me procures mais. Escreva tuas linhas longe das minhas. Que haja amigos aos montes, amores coloridos, momentos para desfrutar, motores para ouvir, marés para te acalmar e muitas luas entre nós. Entre. E não bata ao sair. Que minha vida aconteça longe da sua vida que acontece. É inevitável o tempo das entrelinhas que costura nossas fábulas de homens brasileiros. Preciso de uma pausa entre nossas respirações para tentar me compreender no mapa. Um olhar do alto, situando forma, conteúdo e caminhos para desbravar.

Hoje despertei dramático que sou, decidido. Valorizando o liquidificador de informações mutantes que me serve as horas. Entre segredos e lacres, entre verdades e pés no chão, entre fantasias e armadilhas, salvem-se todos cientes de que viver dói e é bom. Mesmo nos melhores momentos. Sobretudo nos piores. A vida é cheia de códigos. As pessoas também. A mala na mão me diz que a viagem pode durar o tempo que vier. Que as descobertas não cessam, ainda bem. Que as pessoas são encantadoras, mas cada qual precisa de momentos de silêncio e carnaval. Pólvora e fumaça. Amores e despedidas. E aí querido Hamilton, eu tenho um texto sobre o acaso, que mais uma vez me proporcionou um novo encontro, mas eu precisava não engasgar e dizer trovoadas que o céu aqui fecha mesmo no quase verão. Hoje a notícia é de que todo carnaval tem seu fim, como disse o Camelo. E esse termina quase no final do ano.

sábado, dezembro 01, 2007


JOGO DE CENA de Eduardo Coutinho

Uma e vinte da manhã, informa o relógio da parede vermelha, logo atrás ao barman. Não faz frio na cidade e não faz calor também, mas o verão se aproxima e dezembro anuncia a sua estréia com as pessoas nas ruas e bares, celebrando seja lá qual evento. Todas as justificativas servem para arrancar homens e mulheres de frente da televisão e misturá-las ao vivo, estimulando ou desafiando qualquer lei da física, química ou geografia. A madrugada acontece em harmonia e inexatidão, dentro do princípio de que a noite costuma embaralhar todo o tipo de gente: dos que são apaixonados pela lua, dos que raramente saem dos seus apartamentos. É sobre esse leve toque entre o sol e a lua, que algumas histórias acontecem, muitas vezes no mais secreto silêncio, regido entre fumaças e tulipas.

- Você tem um fósforo?
- Não se pergunta a uma mulher se ela tem fogo. Ela pode dizer que sim e você não vai saber como resolver a questão.
- Como?
- Você quer fogo?
- Para acender o cigarro.

Ela estende o braço e passe de mágica, produz um isqueiro em riste de onde uma chama alta não vacila. Permanece o tempo do rapaz se aproximar, acender seu cigarro e engasgar com a fumaça.

- Se você não fuma, não deveria tentar. Nem para fazer tipo. Ou parecer integrado.
- Eu fumo. Pouco, mas fumo.
- Então trague.
- Eu trago.
- Trague sem engasgar.
- Muito obrigado pelo... Muito obrigado por ter acendido o meu cigarro. Saí com pressa e deixei meus fósforos no bolso de outra calça.
- Certo. Quer dançar?
- Não.
- Não se recusa uma dança.
- Eu não danço. Me desculpe, eu não danço.
- Não dança... Bebe?
- Sim, claro. Mas hoje eu não... Amanhã eu acordo cedo e também, eu tô dirigindo, sou fraco com álcool, sabe como é.
- Por favor, não me diga que você tem dezesseis anos.
- Vinte e nove.
- Foi uma brincadeira. Você seria barrado na porta se fosse menor de idade.
- Eles pediram a minha identidade.
- Agora é lei. Então me conte o que você faz, além de não beber, não fumar, não ter senso de humor?
- Eu falo pouco.
- Sério?
- Antes que você me pergunte, estou sozinho.
- Eu não me aproximaria se você não estivesse sozinho.
- Então estava sendo observado?
- Não posso negar.
- É assim que funciona pra você? Você observa alguém que te interessa, fica de olho para ter certeza de que ele não está acompanhado e se aproxima?
- Para alguém que fala pouco, você é bem perspicaz.
- E depois?
- Depois?
- Sim, depois que você acende o cigarro, mostra o decote e joga o cabelo, muito bem perfumado, diga-se de passagem, o que acontece depois?
- Depende muito da noite.
- Você é sempre bem sucedida? Os homens caem fácil na sua... Como posso dizer... Na sua cantada infalível?
- Depende muito do homem.
- Uau! Com essa cruzada de pernas, deve ser muito difícil te dizer não. Ela é seu último recurso? Você usa essa cruzada quando seu arsenal está se esgotando?
- Lindo, meu arsenal ainda nem começou.
- Linda, eu não curto puta.

Silenciaram com os olhos se enfrentando. O barulho do bar e algumas pessoas dançando na pista foi dispersando a tensão entre eles. Ela desocupou a cadeira e ele pediu uma cerveja, rapidamente providenciada pelo rapaz de preto que o serviu boa parte da noite.

- Eu nunca te vi por aqui.

Virou o rosto para conferir de onde vinha o comentário.

- Se você for garoto de programa ou estiver vendendo drogas, eu não gosto, obrigado. O bar tá cheio, é só você observar e certamente vai encontrar alguém que queira o mesmo que você quer.
- Conversa, eu só quero bater um papo.
- Me desculpe a paranóia, não estou acostumado a sair de noite.
- Por isso nunca te vi por aqui.
- Segunda vez na vida que entro aqui. Primeira vez foi um aniversário de amigos.
- Festas de aniversário são super comuns por aqui. Semana que vem, faço trinta anos e adivinha onde vou comemorar?
- Trinta também? Eu entro neles em dezembro, quase na virada. Assustado?
- Talvez. Na verdade não tenho uma opinião formada sobre o assunto.
- Eu também não. Mas não te parece uma responsabilidade? Trinta anos?
- Eu fui responsável por todos esses anos: com a família, a carreira, os amigos. Então nada muda.
- E os amores? Você não falou sobre eles.
- Ainda. Mas você acha que se houvesse alguma responsabilidade amorosa, eu estaria conversando com você agora?
- Faz sentido.

Conversaram por pouco tempo. O suficiente para perceber que o acaso não os reuniria. Toda pergunta feita não encontrava resposta que não vestisse ironia ou impaciência. O rapaz voltou aos amigos que comemoravam embriagados e falantes. Na mesma bancada, pediu outra cerveja, providenciada com eficiência pelo mesmo garçom, que o observara boa parte da noite. A bebida gelada vinha também com um furtivo comentário:

- Eu saio em vinte minutos.
- Bom pra você, eu espero.
- Vinte minutos e a gente pode sair daqui.
- Me desculpe, mas por que eu sairia desse bar com você me acompanhando?
- Não precisa fazer jogo duro, cara. Eu já saquei a sua.
- Você pode me dizer qual foi a sua sacada, porque sinceramente eu não sei do que você está falando.
- Você está me paquerando há horas. Eu tô te servindo desde o sorriso que você me deu.
- Eu acho que você está enganado.
- Eu entendo de paquera, relaxa, cara. Eu sou super discreto.
- Sem querer ser grosseiro, você deveria entender de servir cerveja. Eu não te paquerei. Eu mal percebi a sua presença até agora. O que te faz concluir sobre a minha sexualidade, além do fato de ter dispensado duas pessoas ainda agora?

Silêncio quase constrangedor, não fosse o jogo de cintura do garçom.

- Três, se eu resolver me incluir. Você me achou feio, ou foi esse uniforme horroroso que nós usamos aqui?
- Eu não ligo pra beleza. Eu até prefiro gente mais... Comum. Causa menos problemas. Me desculpe, mas você pode me trazer a conta?
- O que faz um cara sozinho na madrugada, pedindo cerveja num balcão movimentado?
- Nada, o cara não faz nada. Ele só resolveu sair de casa, contrariando as expectativas e desafiou a noite, batalha inútil, porque já está perdida. Sabe que me assusta a quantidade de pessoas nas ruas? Eu estacionei lá na esquina e para chegar até aqui, eu driblei uns oito bêbados, umas meninas histéricas com roupas indecentes, uns caras barbudos vomitando na árvore.
- Teve um show na Fundição.
- Maria Rita, eu estava lá.
- Foi bom?
- Inesquecível, mas o que me deixa assustado é que todas essas pessoas estão aqui, agora, procurando qualquer sensação que as satisfaça mais e melhor do que o aconchego dos seus apartamentos.
- Estamos todos no mesmo barco.
- Sim, mas eu me pergunto se existe a ilusão de que nós vamos encontrar uma pessoa, uma droga pesada, uma situação enfim, que potencialize essa solidão, esse sentimento que nos...
- Talvez você só esteja fazendo drama. E as pessoas só estejam afim de se divertir. Simples assim. Encontrar os amigos, dançar até suar, paquerar, beber um pouco para comemorar: uma festa, as pessoas, suas vitórias, os dias.
- Talvez.
- É muito simples. Tem gente por aí que só quer viver. Isso já é motivo para trezentas festas. Intermináveis.
- Que horas você sai?
- Só tirar o uniforme e fico pronto.
- Quer ir para o meu apartamento?
- Não. Mas eu topo sair daqui e comer alguma coisa em outro lugar. O que me diz?
- Eu topo.

Dentro do improvável, descobriram o melhor cachorro-quente da redondeza. Descobriram também um sorriso fácil, natural e uma série de assuntos que os faziam divergir nas opiniões, mas de forma quase inédita, os fazia também ter paciência, delicadeza e vontade, principalmente, de ouvir o outro. A noite ventou fácil, anunciando desejos e florescendo anseios. Vulneráveis, como qualquer um que se desnuda e se permite conhecer outra pessoa, não deixando de ser quem sempre foi. Ele gostaria de dizer que não saberia o que dizer, mas gostaria de dizer também que não havia o que dizer. Houve um momento de palavras que os guiou boa parte da madrugada, até o amanhecer, quando se despediram com um abraço, o telefone trocado e um cinema marcado para o final da tarde.