JOGOS DO PODER de Mike Nichols
- Você é sempre assim?
- Assim?
- Reservado.
- Nem tão reservado.
- É que eu já te fiz algumas perguntas para tentar puxar assunto e as suas respostas são sempre tão subjetivas que elas encerram o assunto.
- Eu não me justifico. Só respondo. Você me perguntou se eu era dono de uma locadora. Sim, eu te respondi e disse também que é um trabalho muito bom porque eu sou louco por cinema. Não é uma resposta convincente? Ela responde a sua pergunta, não responde?
- Responde, mas você poderia se esforçar um pouco e conversar comigo.
- Mas estamos conversando. Só achei que se fizesse um monólogo sobre os benefícios de ter um comércio cada vez mais soterrado pela pirataria, pudesse te deixar cansado. Ou te causar a sensação de que eu sou o tipo de cara que adora idolatrar o umbigo e não olha para o lado.
- Eu tô tentando me aproximar de você.
- E me dizendo isso, você acha que agora vamos nos transformar nos melhores amigos?
- Toda vez que te encontro, eu sempre observo como as pessoas são carinhosas com você. Como vocês sentam e conversam e são todos tão íntimos e tão amigos. E nós sempre nos cumprimentamos, somos sempre educados e simpáticos um com o outro, mas não vai adiante. A gente sempre fica nessa sensação inaugural. Nas cordialidades de fazer sala, de cumprirmos as regras, enfim.
- Marquinhos, eu não sei quais são os caminhos para que alguém fique, como dizer... Íntimo, mas eu posso te garantir que quando acontece, quando a gente percebe alguém com mais entusiasmo, com mais afeto, acontece porque os dois permitiram um momento de cumplicidade. Às vezes favorecidos por uma situação, outras só porque se enxergaram e arriscaram uma conversa. É um movimento natural. Dos dias. Mexe com instinto, com deixar fluir, sabe quando flui? E se não acontece, se por algum motivo esse estalo/encaixe/cumplicidade não existe, não há o que fazer. Talvez esperar por uma nova oportunidade. A não-aproximação é tão natural quanto a aproximação. Forçar isso ou tentar forjar é como pegar um atalho de um caminho obrigatório. Você precisa passar por ali para ver como funciona, o que acontece quando você pisa no chão e dobra o joelho e dá o próximo passo. Precisa da vivência.
- Eu entendo o que você diz.
- Às vezes é com o tempo e só com o tempo. Você sente falta de alguém e você nem sabia que podia sentir falta. Ou tem o desejo súbito de encontrar aquela pessoa. Porque só a pessoa tal vai suprir aquela necessidade incompreensível de estar junto.
- Eu não queria falar sobre isso, mas eu queria que você soubesse que eu gostaria de estar mais presente.
- Esteja.
- De fazer parte dos dias.
- Faça. Falando em dia, hoje é dia vinte e nove.
- Verdade.
- Não tem aquele papo de você sair e comemorar, fazer alguma coisa atípica?
- Nunca ouvi nada sobre.
- Eu devo ter inventado, então. Mas pense. Um dia que só existe de quatro em quatro anos, precisa, não precisa, ser comemorado? Se você faz algo importante, se você credita importância a alguém, algum fato, algum acaso, se ele acontece justamente hoje, você só vai comemorar de quatro em quatro anos. Merece ser tratado com respeito, com alguma solenidade.
- É só mais um dia.
- De repente essa frase registra todo o mistério que não nos aproxima. Talvez por você pensar que seja só mais um dia e eu pensar que é um dia especial, esse conflito de idéias, pensamentos tão distintos, nos coloque em posições distantes. Personalidades que não se compreendem, astrologia e suas linhas e suas casas e toda a explicação que eu não sei dar. Talvez a gente realmente não se dê bem.
- Eu queria te dizer.
- Não se apaixone por mim. Não se aprisione. Eu não sou homem para ser cobiçado. Eu não sei reagir a qualquer manifestação de carinho, de afeto. Não sei enfrentar intimidade. Não se apaixone por mim. Porque eu sou aquele que se apaixona e persegue a idéia do amor a dois, até que eu contorne o ponto de partida e volte a ser um. Eu sou aquele que ama sozinho um outro alguém e escreve umas cartas e redige uns textos bonitos, algumas vezes até arrisca falar sobre. Eu sou aquele que ama raso sabendo que no fim das contas vai ter a porta batida na cara para poder encher o peito e falar sobre amor com alguma propriedade. Compreendo estilhaços e desastres. Aprendi a me comportar em situações de urgência e acabei viciado nessa sensação de precipício, por isso eu digo e te peço, não se apaixone por mim. Porque eu não vou saber corresponder. Porque eu não sei retribuir amor. Porque eu não sei ser tão forte.
- Você não quer dar sentido ao seu dia especial?
- Você deve ter bebido muitas cervejas.
- Se você não se deixa tocar, se você não se permite, eu sinto muito. Sinceramente sinto muito por você. Porque amar alguém é lindo e nos faz compreender uma infinidade de detalhes e perceber beleza onde nunca antes havíamos percebido. Mas não se deixar amar, não saber a sensação de que existe alguém louco por você, ávido por um momento de intimidade, disposto a todo tipo de aventura, de paixão, de não lucidez, meu caro, é como me dizer que você não ouviu bem a vida toda. Que você só conhece uma ou duas cores. Que só sabe metade do alfabeto. Que é cúmplice de todas as histórias de amor da literatura, do cinema, do caralho a quatro, mas nunca viveu uma.
- Isso te desaponta?
- Isso me faz te querer mais. Se apaixone por mim. Se apaixone e vamos comemorar todo dia vinte e nove de fevereiro.
- Que brega isso, pelo amor.
- Eu já passei dessa fase de brega.
- Ah é? Passou da fase? Agora então você evoluiu e está acima da humanidade, acima do brega e do chique, do amor e do ódio?
- Dizer o que sente é brega desde quando?
- Não mude o assunto.
- Você mudou o assunto.
- Você não me conhece.
- Sei o suficiente.
- Qual o meu filme preferido?
- Eu vou aprender.
- Meu prato predileto?
- Eu descubro.
- Minha cantora preferida?
- Marisa Monte.
- Como é que você sabe?
- Viu? Eu não te desconheço.
- Marisa Monte é a cantora preferida de todo brasileiro.
- Você podia ter dito Elis.
- Eu quase falei Elis, mas minha geração é outra.
- Que outra? Sei muito bem que você pegou a fase final da Elis. Aquele disco preto que tinha Romaria. Éramos crianças, mas pegamos sim.
- Você tem esse disco?
- Até hoje.
- Você não sabe nada sobre mim, Marquinhos.
- Você também não sabe nada sobre mim. E isso é ótimo.
- Como pode ser ótimo?
- Estamos em branco.
- Você me irrita.
- Isso já é alguma coisa.
- Vamos sair daqui?
- Só se você me prometer que janta comigo amanhã.
- Não.
- Não?
- Janto hoje. Amanhã já é dia primeiro.