Sonhei com você. Estávamos em Curitiba, no Festival de Teatro. Na bilheteria, uma fila enorme. Eu era o último e te esperava chegar. Uma mulher me entregou as últimas duas senhas. Fui me informar sobre o espetáculo e era um monólogo com a Dira Paes. Tinha um cartaz enorme que divulgava a peça. Ela estava linda e eu não lembro o nome. Eu não conheço a Dira Paes pessoalmente. Já assisti seus filmes, aquele programa de televisão que ela era mais divertida que a protagonista e já a vi no baixo Gávea duas ou três vezes. Depois o teatro abria e a fila ia se dissipando. O meu telefone tocava e você me surpreendia com um alô dizendo que não ia chegar, que tinha se perdido, que Curitiba era grande demais. Eu reclamava, brigava e você chegava por trás, me virava no susto e me abraçava. Eu não conheço Curitiba. Mas no meu sonho, tenho a certeza de que a arquitetura da cidade e os detalhes da ilusão se encaixam perfeitamente na realidade. Tenho essa certeza porque o teu abraço encaixou nas mesmas sensações reais de coração acelerado dos nossos abraços antigos. O único fato curioso é que eu acho que a Dira não está em cena atualmente. Acho que ela caminha para a última fase da gestação. Eu lembro que você usava uma bermuda que eu tinha acabado de ganhar do meu irmão. Usava um boné e as pessoas ao redor te observavam com curiosidade. Dentro do teatro, buscávamos sem sucesso, poltronas juntas. Os três sinais tocavam. E nada. As luzes apagavam e você mais uma vez me puxava e sentava no chão, encostado na parede. E me acomodava ao teu lado. Qualquer lugar ao teu lado parecia confortável. Qualquer lugar ao teu lado parecia o correto.
Depois eu acordei.
Não consegui mais dormir. Cheguei da janela e o dia estava a ponto de clarear. Fui caminhar. Hoje demorei um pouco mais. Tomei café na padaria. Tem um português de vinte e três anos que me serve e me dá papo. Acho ele bonito e ele me provoca a sensação aconchegante de sossego. Não sei explicar. Ele tem os olhos grandes. Pretos. E gosta de fazer perguntas. Ele deve saber que eu sou gay. E parece não se importar. Ele deve saber que eu preciso de um abraço. Não acho que tenhamos futuro, no sentido de cama, mesa e banho. Também não é esse o meu desejo. Mas eu gosto de olhar para ele. Gosto que ele olhe para mim. Gosto de perceber ele se aproximar de mansinho, procurando conversa, falando a nossa língua com aquele sotaque divertido. Quase todas as manhãs nos falamos. Hoje ele me perguntou se estou triste. E eu devo estar.
Depois de sair da padaria, caminho por volta de quarenta e cinco minutos, uma hora, depende do dia e da energia. Hoje caminhei por uma hora e meia. Comi muito chocolate ontem. Levantei hiper ativo. Caminhar me faz muito bem. É quase incrível que eu tenha me habituado. O corpo acostumou. E depois de um tempo, você descobre prazer. Os músculos e as articulações já não estão mais tão doloridos. Lembra vagamente sexo, mas pode ser que eu esteja dizendo isso só porque ando com um tesão sem controle por tudo o que se movimenta e não é mulher. Depois de chegar em casa e tomar um banho – aliás, o banho é uma das melhores partes do esforço: o corpo quente, suado, disponível, em contato com a ducha gelada, soberana, impiedosa; não há quase nada mais relaxante – eu sentei para ver televisão. Só me dei conta da minha inércia, quando o Bob Esponja ficou de castigo por qualquer travessura. Pensei em sair e ganhar o dia pela cidade. Sair sozinho. Pegar um cinema. Andar pelas ruas. Visitar a Travessa, o Paço, me deixar levar. Caminhar pelas ruas do Centro. Aproveitar esses últimos dias de folga. Pensei que estou próximo de um recomeço profissional e que estabilidade financeira é também uma forma de paz, amém. Que volta e meia eu falo sobre zerar, recomeçar, me dar uma nova oportunidade. Quase sempre eu toco nesse assunto e te confesso com intimidade e absoluta consciência da minha miséria, que esse desejo de recomeço me atrai e me fascina, porque eu sinceramente acredito que todos têm o direito de riscar suas frases em novo parágrafo. Só que de tanto me zerar, de tanto afirmar que eu preciso recomeçar, acabei deixando de lado o mais importante que são o meio e o fim de tudo o que me cerca. Me viciei pelo início de todas as coisas, me encantei pela possibilidade de abandonar o antigo e mergulhar em novas águas, que fui abandonando a responsabilidade de conduzir todas as histórias iniciadas. Fui perdendo a capacidade de conduzir.
Essa percepção tanto me assusta quanto ilumina. Ela me acende questões vitais. Faz com que eu perceba que eu sempre tive muito medo de dar fim quando necessário. Todo final parece definitivo. Eu aprendi que pode não ser bem assim. Que alguns movimentos precisam dessa ordem. Alguns óbvios precisam respeitar essa ordem natural. Mas nenhuma decisão é tão definitiva que não possa ser questionada. Por necessidade. Por desrespeito à cronologia dos fatos. Pelo prazer da subversão. Por amor também. Eu fui embora sem te avisar. Fui fraco, insensível, patético. Eu fui embora e você simplesmente aceitou. Por respeito, eu sei. Tudo muito fácil, muito civilizado. Muito consciente de que eu voltaria em algumas semanas. Não houve embate, reivindicação, não houve pedido de resgate ou luta. Não houve nada além de respeito. Não há nada além do nada. Fato que eu aprendi a aceitar. Eu sonhei com você e com a Dira Paes. E não sei o que isso significa. Nada deve mudar entre nós. O definitivo ainda me parece a melhor das escolhas. O definitivo talvez seja a forma mais legítima de um recomeço que eu jamais tive nas mãos. Sem aquele papo de auto-ajuda açucarado e pouco interessante. Um recomeço bruto. Real. Sem tréguas.
No fundo, o que eu tanto procuro é uma possibilidade.