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terça-feira, março 25, 2008


CHEGA DE SAUDADE de Laís Bodanzky


Sonhei com você. Estávamos em Curitiba, no Festival de Teatro. Na bilheteria, uma fila enorme. Eu era o último e te esperava chegar. Uma mulher me entregou as últimas duas senhas. Fui me informar sobre o espetáculo e era um monólogo com a Dira Paes. Tinha um cartaz enorme que divulgava a peça. Ela estava linda e eu não lembro o nome. Eu não conheço a Dira Paes pessoalmente. Já assisti seus filmes, aquele programa de televisão que ela era mais divertida que a protagonista e já a vi no baixo Gávea duas ou três vezes. Depois o teatro abria e a fila ia se dissipando. O meu telefone tocava e você me surpreendia com um alô dizendo que não ia chegar, que tinha se perdido, que Curitiba era grande demais. Eu reclamava, brigava e você chegava por trás, me virava no susto e me abraçava. Eu não conheço Curitiba. Mas no meu sonho, tenho a certeza de que a arquitetura da cidade e os detalhes da ilusão se encaixam perfeitamente na realidade. Tenho essa certeza porque o teu abraço encaixou nas mesmas sensações reais de coração acelerado dos nossos abraços antigos. O único fato curioso é que eu acho que a Dira não está em cena atualmente. Acho que ela caminha para a última fase da gestação. Eu lembro que você usava uma bermuda que eu tinha acabado de ganhar do meu irmão. Usava um boné e as pessoas ao redor te observavam com curiosidade. Dentro do teatro, buscávamos sem sucesso, poltronas juntas. Os três sinais tocavam. E nada. As luzes apagavam e você mais uma vez me puxava e sentava no chão, encostado na parede. E me acomodava ao teu lado. Qualquer lugar ao teu lado parecia confortável. Qualquer lugar ao teu lado parecia o correto.

Depois eu acordei.

Não consegui mais dormir. Cheguei da janela e o dia estava a ponto de clarear. Fui caminhar. Hoje demorei um pouco mais. Tomei café na padaria. Tem um português de vinte e três anos que me serve e me dá papo. Acho ele bonito e ele me provoca a sensação aconchegante de sossego. Não sei explicar. Ele tem os olhos grandes. Pretos. E gosta de fazer perguntas. Ele deve saber que eu sou gay. E parece não se importar. Ele deve saber que eu preciso de um abraço. Não acho que tenhamos futuro, no sentido de cama, mesa e banho. Também não é esse o meu desejo. Mas eu gosto de olhar para ele. Gosto que ele olhe para mim. Gosto de perceber ele se aproximar de mansinho, procurando conversa, falando a nossa língua com aquele sotaque divertido. Quase todas as manhãs nos falamos. Hoje ele me perguntou se estou triste. E eu devo estar.

Depois de sair da padaria, caminho por volta de quarenta e cinco minutos, uma hora, depende do dia e da energia. Hoje caminhei por uma hora e meia. Comi muito chocolate ontem. Levantei hiper ativo. Caminhar me faz muito bem. É quase incrível que eu tenha me habituado. O corpo acostumou. E depois de um tempo, você descobre prazer. Os músculos e as articulações já não estão mais tão doloridos. Lembra vagamente sexo, mas pode ser que eu esteja dizendo isso só porque ando com um tesão sem controle por tudo o que se movimenta e não é mulher. Depois de chegar em casa e tomar um banho – aliás, o banho é uma das melhores partes do esforço: o corpo quente, suado, disponível, em contato com a ducha gelada, soberana, impiedosa; não há quase nada mais relaxante – eu sentei para ver televisão. Só me dei conta da minha inércia, quando o Bob Esponja ficou de castigo por qualquer travessura. Pensei em sair e ganhar o dia pela cidade. Sair sozinho. Pegar um cinema. Andar pelas ruas. Visitar a Travessa, o Paço, me deixar levar. Caminhar pelas ruas do Centro. Aproveitar esses últimos dias de folga. Pensei que estou próximo de um recomeço profissional e que estabilidade financeira é também uma forma de paz, amém. Que volta e meia eu falo sobre zerar, recomeçar, me dar uma nova oportunidade. Quase sempre eu toco nesse assunto e te confesso com intimidade e absoluta consciência da minha miséria, que esse desejo de recomeço me atrai e me fascina, porque eu sinceramente acredito que todos têm o direito de riscar suas frases em novo parágrafo. Só que de tanto me zerar, de tanto afirmar que eu preciso recomeçar, acabei deixando de lado o mais importante que são o meio e o fim de tudo o que me cerca. Me viciei pelo início de todas as coisas, me encantei pela possibilidade de abandonar o antigo e mergulhar em novas águas, que fui abandonando a responsabilidade de conduzir todas as histórias iniciadas. Fui perdendo a capacidade de conduzir.

Essa percepção tanto me assusta quanto ilumina. Ela me acende questões vitais. Faz com que eu perceba que eu sempre tive muito medo de dar fim quando necessário. Todo final parece definitivo. Eu aprendi que pode não ser bem assim. Que alguns movimentos precisam dessa ordem. Alguns óbvios precisam respeitar essa ordem natural. Mas nenhuma decisão é tão definitiva que não possa ser questionada. Por necessidade. Por desrespeito à cronologia dos fatos. Pelo prazer da subversão. Por amor também. Eu fui embora sem te avisar. Fui fraco, insensível, patético. Eu fui embora e você simplesmente aceitou. Por respeito, eu sei. Tudo muito fácil, muito civilizado. Muito consciente de que eu voltaria em algumas semanas. Não houve embate, reivindicação, não houve pedido de resgate ou luta. Não houve nada além de respeito. Não há nada além do nada. Fato que eu aprendi a aceitar. Eu sonhei com você e com a Dira Paes. E não sei o que isso significa. Nada deve mudar entre nós. O definitivo ainda me parece a melhor das escolhas. O definitivo talvez seja a forma mais legítima de um recomeço que eu jamais tive nas mãos. Sem aquele papo de auto-ajuda açucarado e pouco interessante. Um recomeço bruto. Real. Sem tréguas.

No fundo, o que eu tanto procuro é uma possibilidade.

domingo, março 23, 2008



TALK TO ME de Kasi Lemmons


Eu, Egídio La Pasta Junior, carioca de trinta anos, carteira de identidade dez sete meia nove quatro onze nove IFP, neto de italianos que fugiram da guerra, filho de um músico e uma dona-de-casa, latino-americano com orgulho ainda que não saiba muito bem o que isso significa, ator por formação e paixão, funcionário quase público mas que não é cinza como todo funcionário público é, depois de pensar / sentir / escrever e se confundir por caminhos pouco claros da comunicação, percebeu que no meio da nova amizade, havia um entusiasmo por você. Um entusiasmo muito vivo, que me disse secretamente Pai Aurélio ser paixão. Eu gosto de você. E quase explodi algumas vezes palavra afora. Desisti por timidez, por não saber como encarar o espelho. Por ser tão meu o gostar que não implicava necessariamente um retorno. Duas vias. Me senti envergonhado. Bobamente envergonhado. Até que passou. Não tenho vergonha de gostar de alguém. Principalmente quando este alguém não é, definitivamente, qualquer um. Mas não era assim que eu gostaria de te informar. Porque antes do agora havia o quase agora. E foi mais ou menos assim: eu não queria sair de casa, mas atendi a ligação e disse sim ao teatro tal do dia tal na esquina tal.

Ouvindo um texto que eu conheço muito bem, me emociono com o ator em cena. Que eu não sei o nome, a cor predileta, o gosto mais saboroso, nada além da cena com aquele texto que grita um amor desesperado de um homem por uma mulher, possível a qualquer coração, seja ele quem for, esteja ela onde estiver. Salve o universal e os tons do sentir. Que me permitem a emoção. Me acendem o interesse pelo ator em cena como quem ilumina os cômodos de uma casa escura. Eu quero acender as velas de todos os quartos para te receber. Com exatidão. Sim, não cansei. Quero ser capturado. Montanha-russa de sensações. De cabeça-para-baixo ao menor toque. Velocidade de máquina ao reagir ao teu carinho, eu que não sou máquina e sei pouco sobre elas. Enfeitiçado pelo momento branco ao perceber o teu sorriso. Ao leve esbarrão na tua beleza clássica e enigmática dos teus traços de menino com jeito de homem crescido, de coração aberto. Coração que compreende as cores do amor. De quem sabe a facilidade do orgasmo concedido a uma grande paixão. De quem compreende a felicidade de um sorriso concebido a uma paixão grande. Quero a captura clássica. Quero fio por fio, letra por letra, toque por toque, página por página, arranhão por arranhão. Quero a possibilidade. A facilidade. A alegria. O direito. Vou suspender algumas canções. Desmarcar livros. Rebobinar meus vídeos. Fitas de cetim com histórias lindas e tristes sobre eu mesmo. Histórias espelho sobre nós desatando os nós. Obrigado ator que não sei de onde veio e que eu quero ir atrás por acender a minha imaginação e iluminar minhas necessidades. Eu te chamaria enfeitiçado pelo teu nome que ainda não sei. Diria teu nome e te sopraria com prazer de homem no cio algumas intimidades para que você compreendesse que é sobre brincar que eu estou falando. Eu insistiria sem pressionar e insistir seria praticar o jogo. O saboroso texto que te serviu como exercício do teu ofício, aceitei eu como conselho. Quero ser capturado, me disse o ator. E se não disse, assim compreendi.

Como seguir adiante se no fundo do espelho é você quem eu sempre encontro, homem mau?


quinta-feira, março 20, 2008



ENQUANTO VOCÊ DORMIA de Jon Turteltaub


"Do you believe in love at first site? I bet you don't. You're probably too sensible for that. Or have you ever seen somebody and you know, that if that person really knew you, they'd dump the perfect model that they were with and realize that you were the one that they wanted to grow old with? Have you ever fallen in love with somebody that you haven't even talked to? Have you ever been so alone that you spend the night confusing a man in a coma"?
(Fred Lebow & Daniel Sullivan)


O desejo de te escrever. Simples assim. Porque existe a geografia que impossibilita os olhos, o físico. Mas existe a gramática, que nos permite intimidade e delicadezas. E eu descobri, aos poucos e no meu tempo, que eu sou um homem que admira delicadezas. Talvez seja por esse motivo que eu te quero tão bem. Porque tuas palavras sempre me pareceram comuns. Comum não de parecer como qualquer um, mas comum no sentido da minha leitura esbarrar no teu olhar. Do teu olhar me sensibilizar. Aquele comum íntimo, de compartilhar a vida da palavra. De compreender parte do mistério do outro, como se o momento de identificação, transformasse o sentimento do teu nexo em nexo para o meu sentimento. Compreendes ou dei um nó? De maneira que eu tive vontade de te escrever. E eu penso muito em você. Em como seria se fôssemos vizinhos e eu pudesse correr no meio da noite para um chocolate e confidências, um abraço e poucas palavras, companhia e aconchego. Eu sempre tive a doce sensação de que entre nós, apesar da literatura nos ter cruzados os cursos, seria a facilidade do silêncio que nos enalteceria. Você é alguém que eu quero para estar em silêncio.

Além do desejo, alguns fatos que me induzem a uma fragilidade boba: noite de final de verão grande pela frente e eu sem vontade alguma de aparecer naquela festa e encontrar as mesmas pessoas de sempre para falar sobre os mesmos assuntos de sempre, essa quase ausência de paciência para entrar na roda, essa data simbólica e industrial que faz com que todos os que estão solteiros sintam-se como alienígenas ao sair de casa ou ao ligar a televisão - e nem chegamos ao dia dos namorados - o humor que acordou atravessado ou a ausência dele e a idéia de que hoje, especialmente, é um dia para não me aproximar, a não ser de quem eu tenha o desejo. E você, meu querido, por tanto e por nada, é meu confidente. Meu ombro amigo e silencioso dessa noite enorme. Hoje a festa é entre nós, dois homens distantes, vamos falar sobre o mistério do encontro, sobre a vida inspirada que reúne as histórias, sobre o acaso que transforma, a beleza e a força que um pode exercer sobre o outro, os amores de ontem, a alegria e a felicidade de outros ventos, dos pés descalços para fora do cobertor. Vamos falar sobre esses detalhes imperceptíveis, sobre cada ponto da costura, sobre a vida no mínimo, da força da vida que alimenta sonhos, cores e futuros.

E eu não sei te dizer muito bem como aconteceu, mas quando eu percebi, era o clássico solteiro dentro de casa: as luzes apagadas, um pote de pipoca e guaraná, o vento protegido pela coberta e a Sandra Bullock em cena apaixonada por um homem enquanto ele dormia. Caí na armadilha porque às vezes o melhor a fazer é se render. E derramei uma lágrima pequenina, ponto de crochê, lá pelo final, quando a vida parece fazer sentido e o casal se beija com música de fundo para encerrar a idéia universal do amor romântico, da paixão idealizada. Não sei não, meu amigo. Eu saí do filme leve, quase insustentável. Como se tivesse alimentado minha solidão. Minha cama vazia. Meu banho quente para uma toalha. Meus sonhos de compartilhar. Minha comédia nem tão romântica assim. Saí do filme e caí na cama. Levantei de madrugada assustado pelo apartamento escuro. A noite linda, esbofeteando minha opção de não querer sair de casa. Um suco para despertar o paladar. Pensei na festa, que de repente, eu poderia estar dançando ou papeando os mesmos assuntos com os amigos de sempre, um vinho atípico, uma fumaça para transformar o olhar e quem sabe, alguém na pista de dança, buscando alguém para dividir a solidão. Nuvem que dissipa a viagem do pensamento, sentei para te escrever. Sem saber muito bem o assunto. Mas o assunto a gente sempre encontra. Feliz descanso de Páscoa. Eu tenho planos de ter um final de semana feliz.

Te vejo em breve.

Um beijo.

quarta-feira, março 19, 2008

VALENTE de Neil Jordan

A cidade virou o tempo e o relógio despertou às sete e quarenta e cinco da manhã. De um sábado. Levantou dez minutos depois, resmungando, perguntando de quem foi a idéia, a brilhante idéia de marcar um exame às oito e cinqüenta da madrugada. O tempo de escovar os dentes, se enfiar em qualquer roupa e abrir a porta mastigando qualquer biscoito, qualquer bolo. Desceu as escadas e ainda encontrou sua mãe, que voltava da padaria.

- Você está atrasado. Pegou o guarda-chuva?
- Não está chovendo.
- Vai chover.

Teimosia consciente, ignorou o conselho e encarou as ruas caminhando quase correndo, camuflando o cabelo dentro do boné, procurando os fones de ouvido dentro da bolsa e driblando a calmaria dos poucos que encontrou pelo trajeto até o metrô.

Ao sair da plataforma, conferiu o relógio que denunciava dez minutos de atraso legítimo. Subiu as escadas e encontrou a Tijuca sob forte tempestade. Chuva com vento forte e relâmpagos barulhentos acompanharam os seus passos, até que finalmente chegou na clínica.

- Bom dia, eu tinha... Eu tenho uma consulta com a Dra. Lídia.
- Consulta ou exame?
- Exame, mas eu preciso da consulta.
- É que tem senha para exame e senha para consulta, bombom.
- Foi marcado pelo telefone, há duas semanas. Eu tenho três exames para fazer. E eu preciso de consulta porque eu quero que ela confira o grau dos óculos novos.
- Os graus.
- Isso.
- Você marcou por aqui ou pelo consultório?
- Eu marquei pelo telefone.
- Sim, bombom. Mas se foi por aqui, o procedimento é um. Se foi pelo consultório, o procedimento é outro.
- Se eu te der o meu nome, não adianta? Você digita aí, coloca o horário marcado e vê o que aparece.
- Não é assim que funciona. Qual o horário marcado?
- Oito e cinqüenta.
- São nove e vinte, bombom.
- São nove e oito.
- De qualquer forma, eu vou ter que te encaixar. Você perdeu o horário e já viu como está movimentada a recepção hoje?
- Sim, eu já vi.

Mentiu. Na correria, ele sequer olhou o lugar. Somente depois de quase perder a paciência, é que foi identificando a população local: senhoras, crianças barulhentas, a televisão no alto tocando uma música seguida da outra, um auto-falante que chamava as pessoas pela senha e a chuva forte lá fora. Sentou para esperar, com dois números nas mãos. Dois números com o mesmo destino: a oftalmologista. Até que se aproximou um rapaz. Barba feita. Perfumado. Pegou uma revista. Sentou ao lado dele.

- Consulta ou exame?
- Pergunte algo menos complicado, por favor. A senhora ali me confundiu a cabeça.
- Dê um desconto. Ela está sozinha. A chuva atrasou as outras meninas.
- Tá caindo o mundo lá fora. E eu tenho duas senhas.
- Isso acontece.
- Mas elas me levam ao mesmo lugar. Se exame ou consulta, qual a diferença se eu vou ver a mesma médica?
- Existe um controle interno. Por isso eles precisam saber.
- Nem sempre tanta máquina simplifica a vida.
- Quer um café?
- Eu tomo pouco café.
- Isso foi um sim ou um não?
- Não, obrigado. Eu quase não tomo café.
- Tem uma máquina ali no salão. Existem outras opções além do café.
- Outra máquina? Que surpresa...

Alguns minutos mais tarde, já conversavam com mais entusiasmo. Embora o humor os protegesse dos silêncios repentinos, havia no ar a leve sensação de que o sábado começava com chuva forte com pancadas ocasionais de paquera. Todo homem sabe e não há como negar, seja por instinto ou evidências, todo homem sabe quando outro homem olha para ele com intenções além da de ser educado. Se não há interesse ou não é a sua praia, o outro homem também percebe a recusa. Alguns respeitam. Alguns insistem. No caso desses dois, havia a permissão de ambos.

- Mas o que você tem contra as máquinas, rapaz?
- Eu não tenho nada contra elas. Uso o computador a maior parte do dia, seja no trabalho ou em casa. O que me causa espanto e irritação é quando a máquina quer substituir a relação humana e não é eficaz. Quando ela atrapalha. Você perde o dobro do teu tempo. Você se irrita com os resultados ou com o atendimento. A moça ali me chamou de bombom umas três vezes e sequer olhou nos meus olhos. Foi consultar o computador fazendo perguntas e perguntas, quando poderia apenas ter sorrido um bom dia e digitado o meu nome.
- Ela chama todo mundo de bombom.
- Cafona. Tive um professor que chamava os alunos de bombom. Como é que você vai levar alguém que te chama de bombom a sério?
- Não julgando?

Sorriu coçando o queixo. O outro retribuiu fitando os olhos. A língua nos lábios umedecendo a boca, como se a preparasse para um beijo. Um balé de mãos inquietas, driblando o fato de que estavam em lugar inapropriado com tantas crianças e pais e pacientes que por ali transitavam. Até que ele compreendeu no repente, quase em câmera lenta, uma aliança no dedo do outro. Engavetou o sorriso. Descarregou a munição. Quase ejetou a sedução. Mas antes:

- Há quanto tempo?
- Como?
- Há quanto tempo você tá tentando me dizer que é casado?

Um silêncio. O mundo caindo lá fora. Toda essa água precisa escoar.

- Eu pensei que você tivesse visto desde o início.
- Não, não vi. Qual é a situação aqui? Você freqüenta consultórios médicos atrás de caras atrapalhados como eu? Presas óbvias. Aparentemente gay. Aparentemente fácil de cair em conversa de bonitão casado. Qual é a tua?

A mulher que chamava todo o mundo por bombom se aproximou com a rapidez de uma raposa. Se colocou entre os dois e apertou o botão de expresso. Olhou o relógio com impaciência, cantarolou para preencher o silêncio constrangedor que se estabeleceu antes de retornar ao trabalho, após tomar calmamente o seu delicioso café, pegou o martelo e sentenciou a estocada:

- Dr. Flávio, o senhor tem quatro pacientes. O primeiro em cinco minutos. Eu posso mandar subir?
- Pode sim, eu já subo.

Olhou para ele como se desmontasse.

- Então você trabalha aqui...
- Eu ia te dizer.
- Colocando sutilmente o jaleco?
- Eu gostei de você.
- Eu também e eu poderia te dar algumas razões. Algumas boas razões. Mãos bonitas, conversa boa, a voz acolhedora, essa masculinidade latente. É o que mais me atrai, sabia? Não, você não sabia. Você atirou no escuro e acertou o pato.
- Eu ia te dizer no momento certo.
- Que você seja médico, eu até entendo. Tem a coisa do fetiche e tal. Mas que você seja casado, eu não gosto da idéia. Não gosto. Você vai me levar para um motel, vai se fartar e se revelar e eu sei bem o que eu tô dizendo. Você não seria o primeiro, acredite. A gente ia se encontrar algumas tardes. Bunda, pau duro, gemidos, taras e camisinhas. Uma boa cama redonda e dois animais insaciáveis no cio. Mas depois eu ia para casa, provavelmente saciado, provavelmente sem culpa alguma e você ia voltar à sua vida perfeita, seu consultório, sua esposa feliz. E minha vida continuaria a ser de mentira.
- Tão a favor da moral e dos bons costumes.
- Nem tanto. A favor de mim, na verdade. Isso que você deseja, eu já experimentei. A maior parte do tempo. Tenho até tesão. Meio puta, sabe? Mas a puta tá ficando velha. Ela anda preferindo a vida real. Só se deixa enganar quando quer. Ela faz as escolhas por vontade própria, veja você. Diz sim e diz não e cansou das migalhas do João e Maria que nunca a levaram ao final feliz. Ela sabe que não existe final feliz. Mas não desiste. E também não insiste na sina de ser miserável só porque é puta. A puta sente e não cai mais em armadilhas de homens como você. Se você me dissesse que queria me comer no seu consultório, eu subiria e resolveríamos nosso tesão. Mas você precisou criar a ilusão e despertou a minha ilusão para que você parecesse melhor homem do que realmente você é. Puro exercício de vaidade. Eu não quero mais gente como você na minha vida. Me encorajando farsas, me instigando falsas realidades. Agora eu tenho que ir porque a máquina ali está apitando o meu número e a Dra. Lídia me espera.
- Eu não tive a intenção.
- Eu sei que não, doutor. Com licença.



quarta-feira, março 12, 2008

BOOGIE NIGHTS de Paul Thomas Anderson

- Pode guardar.
- Por que?
- Pode guardar, Francisco.
- Mas vai me dizer o motivo?
- Quer que eu dê nome aos bois?
- Por favor.
- Certo. Digamos que o seu boi seja grande demais para o meu, como posso dizer... Curral.
- Você tá dizendo que eu sou bem dotado, é isso?
- Você tem dúvidas? Exageradamente. Sinceramente agradeço o seu investimento e todo esse tempo de conversa, telefonemas e encontros rápidos no final da tarde, mas eu não tenho... Não dá, entende? Não tenho estrutura física e talvez emocional para agüentar o teu, quero dizer, entende, não entende? Tamanho.
- Isso é besteira.
- Besteira porque não é você. Eu sei que hoje em dia existem facilidades e cremes, preservativos e pomadas, eu sei. Mas transar com você seria como participar de uma olimpíada, sabe? Exigiria muito de mim. Seria como te dar uma prova de amor. E eu não me sinto apaixonado.
- Apaixonado eu também não estou. Acho que a gente tem futuro.
- Então no futuro voltamos a falar no assunto.
- No futuro eu vou continuar o mesmo, entende? O mesmo.
- Fatalmente.
- Você me pegou de surpresa, eu me sinto culpado.
- Não se sinta culpado por ter um pau enorme. Gigante. Besteira. Tenho uns cinco amigos que perseguem homens como você. Se quiser, te passo o telefone.
- Se eu quisesse alguma relação sem compromisso, eu teria procurado. Obrigado por querer me ofertar aos seus amigos. Isso diz o suficiente. Sabe que isso nunca foi um problema? Nunca me ajudou, nunca me atrapalhou. Não sou ator de filme pornô, entende? É um detalhe.
- Permita-me discordar de você. Mas um detalhe é um sorriso sacana, uma tatuagem no braço, uma bunda bonita, uma pegada mais forte. Isso não se trata de um detalhe.
- O que eu quero dizer é que isso não me qualifica ou define quem eu sou.
- Você é um querido, Francisco. Tudo deu tão certo entre nós desde o início, que eu cheguei a desejar para que permanecesse dessa forma leve. Gostosa.
- Eu acabei de sair de um namoro, você sabe. Tudo o que eu não esperava era me envolver com alguém tão rapidamente.
- Aqui estamos nós. Diante de um impasse.
- Um grande impasse. Enorme impasse, segundo o seu veredicto. Sexo é físico, Guilherme. Instinto, necessidade, às vezes desejo, paixão, amor. Às vezes só desejo de experimentar sensações, de despertar o corpo do outro. Retribuir estímulos, uma grande brincadeira para adultos.
- É um compromisso também. Mesmo que seja por algumas horas. Você está comprometido com o corpo de outra pessoa.
- Sim e embora tenhamos teorias elaboradas e promissoras sobre o sexo, nós permaneceremos no quase.
- Na trave.
- Você ainda está magoado?
- Eu me sinto anestesiado.
- E você acha que inventar desculpas para me afastar de você, vai te deixar melhor? Você realmente prefere estar sozinho nesse momento?
- Eu não sei.
- Se você me disser que sim, eu vou embora. Porque eu sei que com mágoa a gente não pode brincar. Eu respeito qualquer decisão sua, desde que ela seja para te fazer se sentir melhor. Sem drama. A gente volta a conversar lá no futuro, se você ainda me quiser.
- A gente sempre joga os problemas para frente. Vai empurrando para depois, para um futuro que não existe. Um futuro que é agora.
- Seja otimista.
- Eu sou.
- Te conheço pouco e você quase sempre valoriza as dificuldades. Enaltece os impedimentos.
- Eu preciso ser otimista. Tenho os meus medos. Alguns fantasmas me assustam com mais freqüência, mas eu tenho esperança, eu espero sempre pelo melhor. O melhor para mim, o melhor das pessoas, das situações, o melhor de um livro, de um filme, de um cantor. O melhor do pior. Acho que isso deve ser otimismo.
- Deve.
- Eu me sinto menos perdido, Francisco. Desde que o ano virou eu enfrentei alguns momentos onde não havia lugar para o melhor. Momentos onde eu não conseguia enxergar o que havia de melhor. Talvez porque não houvesse. Momentos brutos, bombardeados pelo lado de fora e a vida, a cidade, a família, tudo conspirando para que eu compreendesse que era um momento duro, sem afago, sem muita escapatória. Você é obrigado a respirar fundo e dizer pode vir que eu quero agüentar. Pode mandar a tempestade com a criança na boca do lobo, engarrafar o trânsito, emudecer a população, rasgar as minhas roupas, riscar com o meu mapa, pode fuder com tudo, que eu vou lá. Eu enfrento. Alguns dias de cabeça erguida, pode mandar atirar. Outros dias aterrorizado, sem conseguir me movimentar. Mas disponível. De pé. Ciente. Com o universo interior quase exonerado, sob escombros das próprias armas e você pensa, cara, qual é? Dá um tempo. Eu me sinto menos aturdido agora.
- Ouvindo assim parece dramático e triste.
- Nem tão triste porque não é um drama para os outros assistirem. É íntimo. Não é uma sensação extravagante. Você faz a tua luta, duela com o que tiver de duelar, se resolve ali, internamente, se destrói e se recompõe e continua porque não dá para parar.
- Não dá.
- Eu retomo o emprego essa semana. E eu sinto que voltar a trabalhar vai me ajudar a sair dessa confusão sem grandes estragos. Hora da virada, entende?
- Hora da virada.
- E tem tanta coisa bacana acontecendo para me animar. O Marcelo saiu do Big Brother finalmente. Tô caminhando todas as manhãs. O American Idol já definiu os doze finalistas. A Malu Galli, a Drica Moraes, a Regina Remencius, a Debora Bloch, a Denise Fraga e a Maria Luiza Mendonça estão na televisão falando um texto inspiradíssimo da Maria Adelaide Amaral. Outro dia a Fernandona soltou dois filho da puta no meio de uma cena tensa, fantástica e eu fiquei tão feliz. Não pelo palavrão, mas pela liberdade e pelo incontestável texto da autora que não permitia outra palavra que não filho da puta. Como é que eu posso deixar de me animar com fatos como esses? Atrizes desse tipo na televisão? Sem contar que eu andei preocupado com besteiras que andei fazendo no ano passado e peguei o resultado de um exame de sangue hoje, que me aliviou a consciência. A gente não precisa perder o encanto. Não precisa perder a beleza. É só prestar atenção, olhar ao redor, observar. Tem tanta gente boa que pode ajudar o impulso. Tirar proveito, contribuir. Trocar.
- Você fala com entusiasmo, mas não hesitou em me dar um pé na bunda.
- Não foi bem na bunda que eu dei com o pé. Eu quero que você fique. Se você quiser ficar, eu digo.
- Eu quero.
- Eu adoro a idéia de saber que você está comigo. Não é exatamente um amigo porque ainda nos falta tempo. Mas é alguém que eu quero por perto. Alguém para dividir. Que entende carinho da mesma forma que eu e ainda consegue rir fácil. Alguém disponível.
- Fico feliz.
- Mas não se anime muito não porque nós ainda temos um problema para resolver.
- Que problema?
- Um problema um pouco abaixo do seu umbigo.


sábado, março 08, 2008


LOST - Temporadas 1,2 e 3


"Eu vou embora sozinha. Eu tenho um sonho, eu tenho um destino, e se bater o carro e arrebentar a cara toda saindo daqui, continua tudo certo. Fora da roda, montada na minha loucura”.
Caio Fernando Abreu em Dama da Noite


Eu sou fraco. Ia começar te dizendo que eu sou frágil, mas eu não concordo e não acredito que aos trinta anos, a gente ainda se deixe bombardear com a mesma intensidade de outros tempos. Há de ter algum benefício à medida que a idade avança. Há de ter. Então eu sou fraco. Eu preferi escrever um texto onde eu pudesse exorcizar tudo o que eu não tenho, tive e provavelmente não terei coragem para te dizer. Eu preferi optar pela palavra escrita, que é onde eu encontro segurança e sentido. Onde eu consigo finalmente fazer algum sentido. Eu me faço compreender escrevendo. Ao vivo, eu não me revelo tanto. Talvez por ter um medo enorme do mundo. Talvez porque esse medo me aterrorize a ponto de me deixar no raso, onde não corro riscos e onde eu posso me integrar ao todo. No raso, eu posso tentar resgatar quem afunda. Posso tentar alertar dos perigos do mergulho, das rochas, dos animais selvagens. Daquilo que o meu campo de visão me permite enxergar, porque no raso nenhum perigo é iminente. Eu chamo de fraqueza e não me incomoda saber que sou assim. Porque eu sou. Por isso, então, eu te escrevi. Porque eu saberia coordenar os meus fantasmas de maneira inteligível. Eu não conseguiria jamais te telefonar para te dizer do que eu sinto, do que eu penso que nos transformamos. Do que eu acho em relação a nós dois. Eu ia te dizer meia frase e engolir o resto. Ia fugir no meio da noite, como você já me viu fazer diversas vezes. Ou talvez eu transformasse em piada, como eu também já fiz, qualquer iniciativa de tentar dialogar. Não é nada agradável não se saber capaz. Não é nada fácil ser fraco. Implodir o pensamento, engavetar sensações, relevar e simplesmente relevar qualquer interferência, qualquer falha na comunicação. Por isso te escrevi. Por isso te escrevo. Por isso talvez seja esse o meu ofício, sem dor ou orgulho: escrever cartas, prolongar ou encurtar cenas, criar um universo paralelo, onde eu possa existir e ser e estar legítimo.

Eu não acho que você é um monstro. E também cada vez mais percebo que esses adjetivos só servem para nos encarcerar. Você sabe disso, eu tenho certeza. Você não me fez nada que pudesse me provocar te querer mal. Não existe um motivo específico. Existem anos de convivência. Anos de percepções, atitudes, gestos e tanto mais, que somados me trazem até aqui. Vale tanto para mim quanto para você, você certamente tem sua opinião. Estou aqui para te dar a minha. A diferença é que a minha soma não me agrada. Ela me deixa triste. Ela não te transforma em monstro. Ela não me coloca na posição de vítima. Ela só me faz perceber que às vezes insistir em alguém ou alguma idéia, pode não resultar em futuro. Pode se transformar num ato mecânico, onde ambas as partes se acomodam, estacionam e se acostumam, sem que não haja nem mais atrito. Como se encaixassem as suas peças e o quadro permanecesse. Imóvel, bonito, mas sem movimento. Imparcial. Quadros assim só costumam funcionar na horizontal. Se colocados na parede, podem despencar com qualquer sopro. Isso é fragilidade. Eu usei o blog porque há algum tempo ele me faz companhia. Ele é cúmplice, camarada e é destino para tudo o que escrevo. Não pensei, sinceramente, no alcance disso tudo. Aliás, o alcance do que escrevo e do próprio blog não me pertence. Vai além do que eu posso oferecer. Eu poderia ter escrito à mão, te mandado por e-mail, mas eu preferi publicar. Poderia deixar passar como ficção, como já aconteceu. Escrever cartas endereçadas e sem remetente me preservou por tanto tempo. Ou poderia ser encontrado se você, por iniciativa ou curiosidade, procurasse por mim. Você sempre soube onde me encontrar. Se me justifico tanto, é para tentar te iluminar questões levantadas na nossa rápida conversa virtual. Eu não vou enumerar as minhas razões. Ou te entregar três ou quatro motivos. Isso seria covardia. Eu só sou fraco.

Mila outro dia me disse uma frase que ficou em mim por muito tempo: eu e ele somos para sempre, ela me disse. Eu balancei a cabeça e concordei com ela. Ao me dizer isso, sem saber, eu fui ficando incomodado, impaciente, insatisfeito. Até que eu percebi que o que me incomodava não era perceber a eternidade de vocês. Era não sentir que nós contávamos com essa mesma percepção, longevidade. Eu não senti futuro em nós. O que, de imediato, me derrubou. Como é que depois de tantos anos, eu não tenho uma rede para me amortecer? Alguma certeza mínima que me faça relaxar? Psicólogo de mim mesmo, respondo me advertindo que eu devo então, sair do raso. E ver no que dá. Eu nunca amei ninguém da forma como eu te amei. Essa deve ser a principal razão pela qual encerrei com os meus mergulhos. Por perceber que muitas vezes não têm volta. Nessa de me perder e me confundir, nós conseguimos juntos construir um querer bem, uma paixão lúcida, um companheirismo íntimo, raro, eu reconheço. Nós poderíamos ter nos perdido tão mais cedo. Anos antes. Mas sempre um puxou e o outro foi no impulso. Às vezes um cedia, o outro pressionava. Sempre um precisou e o outro socorreu. A gente foi deixando ser assim e se passou tanto tempo que eu desaprendi o sabor de saber como tudo era antes disso. Eu não perdi a identidade, saiba. Mas eu me perdi dentro de nós dois. É desse resgate que tudo se trata. Não é como das outras vezes que eu pedi atenção, que eu reclamei um carinho, que eu te alertei de uma dor. Eu estou assustado. Porque agora, mais do que necessidade, me parece o mais sensato: seguir adiante sem nós dois. Você não sabe a dor que essa atitude me causa. Eu não durmo há três noites. Me perco olhando para o nada. Perdi a concentração por aí. Não é fácil para mim, eu quero e preciso que você saiba. Eu estou assustado. E continuar e tentar concluir essa carta me obriga a decidir que estou abrindo mão de nós. Você lembra que eu sempre te dizia isso? No final da escola de teatro, eu já vinha com essa conversa de que não sobreviveríamos fora de lá. A gente foi driblando e conseguindo. Eu tinha a sensação romântica de que a gente se entendia cada vez mais e cada vez melhor. Te escrevi muito sobre isso. De fato, a gente se entendeu e se festejou por muito tempo. Mas eu preciso te dizer que eu cansei, verdadeiramente, de me sentir bobo. Bobo por não sentir reciprocidade. E não é porque quero que você me ame ou me jogue no sofá e me cubra de beijos. Eu não quero que você se transforme em outra pessoa para me agradar. Não. Mas eu não me sinto sendo cuidado. Eu me sinto sem proteção. Vulnerável. Bobo. Então eu preciso transformar o nós em eu, tu e ele. Me colocar no singular.

Eu preciso que seja assim.

Eu fui duro com as palavras que usei no texto anterior. E talvez você não mereça essa brutalidade. Usando as suas frases, você não precisa se dar ao trabalho de me responder. E embora, esteja te mandando por e-mail, como eu deveria ter feito com o outro, eu vou publicar o texto mais tarde no lugar onde você sempre vai poder me encontrar, sem que eu saiba.

quarta-feira, março 05, 2008


LARS AND THE REAL GIRL de Craig Gillespie


Eu cansei do seu teatro de luxo. Cansei da tua maneira covarde de ser. Sempre mascarando qualquer sentimento somente para preservar a tua imagem de cara bacana. Esse teu desejo monstruoso de querer parecer o homem ideal, essa tua preocupação abusada do que será que os outros vão pensar de mim, me deixou exausto. Foda-se o cara bacana. Se ele existe, não necessita de tanto esforço para permanecer. Ele perdeu a cor, o tom. Deixou de ser interessante porque não consegue virar o pescoço para nenhuma direção que não tenha um espelho gigante que devolva a sua imagem e enalteça o seu ego. Cansei desse balé sem nexo e fora de moda. De ser coadjuvante de um protagonista que não sabe dialogar, viciado em textos decorados que eu já deveria saber de memória e eu não sei. Eu cansei de guiar a tua cegueira. Cansei de ser a gramática do teu livro incompleto. Cansei de assistir você justificar toda a desatenção com que você nos faz afundar. Cansei de ser carinhoso por nós dois. De tentar vedar os vãos com poesia e o escambau. Cansei de ser aquele que é lembrado por conveniência. Lembrado quando pinta urgência. Me esqueça e você seria mais honesto comigo. Eu cansei de você. Esgotei anos de paciência. Anos de compreensão integral e infinitos monólogos sobre como ser você não revelando quem de fato, você é. Eu cansei de viver a minha vida pelas beiradas da sua. Mendigando carinho, disputando atenção, reivindicando afeto. Não espere de mim que eu te espere. Não mais. Eu não sou mais seu anjo da guarda. Jogo aos leões as minhas asas.

Eu não te conheço mais em mim. Hoje acordei às cinco e meia da manhã para caminhar. Ver o dia despertar, suar, sentir o corpo quente, vivo, disposto e pronto para enfrentar as minhas decisões. Não quero que minha irritação se transforme em mais um texto. Eu vou atrás da vida real. All we need is love e não venha me dizer que é porque eu ainda carrego paz e amor no peito. Eu peguei o final dos anos setenta. Algum resquício de ilusão eu deveria trazer comigo. The end, meu caro. Sem os créditos subindo. Sem trilha sonora. Sem as luzes se acendendo. The end e ponto. Cidade em movimento. Pessoas com pressa. Em busca de suas intermináveis urgências. The end soco seco e eu parado ouvindo o trânsito. Recebendo o final da tarde. The end e estou eu na estrada amarela esperando o sol sair. Roendo todas as unhas, controlando a ansiedade, ávido por qualquer pombo-correio. Mande um sinal, uma outra carta, um pedaço de intenção, um carinho para fazer com que tudo germine. Senhor ator, eu só te peço para que não se perca de mim. Nessa cidade é fácil se perder, é fácil se deixar levar. É fácil. Eu tenho a maior admiração pelo tempo de nós dois. O maior carinho por todas as portas que soubemos destrancar. Pela noção delicada de que a vida é o agora, o durante e também o depois. É o silêncio que existe entre nós. É o silêncio entre os nós. Tudo o que permanece depois do the end. Semente. Que coloca em movimento o querer. O ser. O estar. Altera o horário porque deixar alguém entrar na sua vida é como mudar de cidade. É como precisar se adaptar ao outro sem abrir mão da tua cidade em mi bemol. Saborear a generosidade de abrir o cadeado. Saborear a generosidade de saber reconhecer a hora de fechar. Sem fazer doer. Trocar. The end assim sem choro ou música de fundo. The end seco. Em silêncio. Observar ao redor e não ouvir absolutamente nenhuma palavra, nenhum som. Nada. The end assim. Cru. Talvez cruel. Mas limpo. Consciente. Sem drama nem beira porque terminar é dos dias. Faz parte do contexto. Faz parte da natureza.

Não vou me repetir. Não vou sublinhar a importância que existe e eu prezo, mas que não pode me impedir de seguir nesse momento. Prosseguir, por infinitas razões, cada uma suficientemente considerável para me alimentar qualquer tristeza para noites solitárias e textos obesos. Não. The end seco. The end e sexo. Sem você. Com outro alguém que ainda não sabe acionar, que ainda não conhece a soma, que ainda está chegando e já me diz o vento, que não vai permanecer. The end on the rocks, me serve um? Venha me ouvir cantar e vamos gargalhar dos meus exageros. Lavar a louça para poder pensar com calma e não me deixar levar por nenhum impulso sem significado real. E eu preciso da noção do que é real, embora eu esteja de braços abertos para todo o tipo de fantasia, vamos celebrar sim! Mas hoje, ao acordar, depois de um sonho tão simples, eu despertei e percebi que preciso da noção do que é estar no chão, caminhando em passos compatíveis com os da realidade. Hoje. Eu sonhei boa parte da noite. Eu não vou te dizer sobre o sonho. Quero te dizer sobre os efeitos dele. Eu passei o dia pensando que só com a noção dos pés no chão, do que é real, ou melhor, do que não é sonho, é que eu vou poder suportar com mais leveza o não saber. E eu não sei. Embora eu tenha o desejo de explodir céu acima, de querer em volume alto, de dividir em total sintonia ou até mesmo rir da falta dela, embora eu tenha sonhos de moleque, já passou da hora de agir feito homem. Ciente. Consciente. Para que não perturbe mais do que já me. Para que não soem os alarmes em qualquer hora do dia. Ou da noite. Para que eu possa deixar entrar sem tantas exigências. Ou vou terminar todos os textos assim: só. Por isso the end. Por isso também você não sabe. Por isso também o começo de tudo. Por isso eu quero que você saiba dar nome ao tudo. Dois pontos.