PRINCESAS de Fernando León de Aranoa
A última vez que eu vi o Vinicius foi pelos bares da Lapa. Ele me ligou, dizendo que estava de passagem relâmpago pela cidade e que ia tomar uma cerveja antes de ir para o aeroporto. Eu ia encontrar o pessoal para tentar entrar no show do Los Hermanos na Fundição Progresso. Dessas boas coincidências que só colaboram porque os fatos, a atmosfera, os desejos, os anjos e especialmente nós, estávamos em sintonia e conseguimos um horário em comum para poder matar um tanto da saudade, saciar um pouco do querer bem. Eu lembro que quando olhei para os Arcos da Lapa, na direção do bar, eu encontrei aquele sorriso lindo se abrindo para mim, pétala por pétala. Era noite no Rio de Janeiro, início de verão e o clima na cidade era quente. Camisetas brancas, uma lua enorme no céu, aquela malandragem carioca solta pelos bares, em forma de risadas, abraços, muitas garrafas de cerveja, algumas intenções e muita conversa boa. A gente se abraçou no olá e a Mariana estava presente. Ela é assim, alguém que sabe ouvir e sabe dizer e sabe que as palavras precisam de cuidado e é tão delicada. Ficamos os três, sem sentir o tempo passar, ouvindo do coração, o que deu certo, o que ainda não deu certo, que a cidade grande assusta, que a cidade pequena ficou menor, que dividir a vida é muito fácil, que dividir o espaço é muito difícil, que gostaria de viajar mais, que gostaria de só viajar, que não deu certo com aquele, que está muito cedo para falar sobre os acertos com o outro, que eu precisava ouvir aquela banda tal, que ela pensou que poderia ter um novo amor, que foi alarme falso, que ele tinha planos de viver aqui, que se ele vivesse aqui eu seria um homem mais feliz, que já sofreu tanto por aquele tal de outros tempos, que eles mal se falam hoje em dia e que esse resquício de afeto não lhe faz muito bem, que todo final assusta, que o final bom é o de poucas palavras e intenções verdadeiras, que todo grande amor antigo já virou alguém pouco interessante, que o olhar manso dele me deixa tão enfeitiçado, que o sorriso bom dele me causa esses desejos todos que eu adoro ter.
Depois nos despedimos e eu pedi que ele voltasse logo e ele fez que sim e a Lapa naquele momento era os dois corpos e um só abraço. Aquele carinho de um até breve e o desejo que a noite permanecesse e prosseguisse entre nós. Só para testar o estar junto. Só para gente prolongar essa afinidade. Faz tanto tempo que a gente se conhece. Que ele veio lá do Sul e se instalou aqui, se hospedou aqui, foi me ensinando essa molecagem, foi compartilhando os dias, trocando o olhar dos olhos, o olhar sobre o que há além da palavra. A gente foi se ganhando. A gente foi percebendo que as afinidades não só nos aproximavam, mas identificava muito dos nossos pequenos desejos gigantes, da nossa sede de querer o mundo e querer todos os homens do mundo e todos os sabores e intensidades. A gente foi se encontrando e isso de encontrar é muito sério. Sério sem solenidade ou pesos desnecessários. Sério porque se encontrar é ser menos só. É perceber o outro. E permitir. Então é sério porque há entradas e saídas e variações sobre esse trânsito e a gente alimenta, a gente cria expectativas mesmo sem saber que não deve. A gente acredita. E crer é coisa séria. Então a gente concordou que existe o tempo e que ele vai se encarregando de colocar a ordem no aparente caos. A gente foi vivendo as nossas histórias, e as nossas histórias foram nos encarregando de nos cruzar o carinho. O nosso carinho foi nos unindo e foi acontecendo. E fomos nos transformando em bons amigos. Aquela sensação confortável de querer saber do outro. De querer que o outro esteja bem. Feliz. Vivendo a vida em voz alta. Aquela sensação gostosa de querer que o outro saiba que você está bem. Que também está vivendo a vida em voz alta. E de contar tudo o que acontece por aqui. As pequenas felicidades. Aquele miúdo que faz a diferença. Arriscar segredos que a gente guarda. Confiar.
Na verdade, o que aconteceu entre nós, é que nos oferecemos a amizade. E ele soube dizer sim. E eu disse sim sabendo.
Ontem ele deixou um recado dizendo que vai passar por aqui no feriado do final do mês. Ele dizia que gostaria de passar a tarde da quinta-feira comigo. E respondi de imediato dizendo que sim, porque eu manipularia a minha agenda quantas vezes eu precisasse só para estar livre para encontrá-lo. E quando ele vier, a gente vai se ver e vai se abraçar e falar das coisas boas, daquilo que nos movimenta, das intenções desgovernadas que a gente vai colecionando com a idade, jovens senhores. Digníssimas putas. A gente vai tomar uma cerveja e brindar. Dez cervejas. E deixar a tarde nos embalar em qualquer canto dessa cidade onde a gente possa ser um pouco mais feliz. O Vini me deixou um recado, então a semana começa fácil. O trânsito agradável, veja você, os graus na temperatura certa, as pessoas não se esbarram e é possível cantar ao atravessar a rua. Fim de tarde e o céu entre o azul e o marinho, as estrelas prontas para se pendurarem como suspensas por fios. Tudo muito calmo e simples e é possível perceber os detalhes e os pequenos detalhes nos detalhes, como a cor dos olhos de quem me olha, a textura e o volume do cabelo de quem abraça, o cheiro doce de um suor salgado. Sereno anoitecer e eu diria que hoje a cidade está tranqüila e mais do que ela, eu também estou. Como se funcionasse dentro de uma perfeita ordem, um esquema simples de minutos que duram sessenta segundos culminando em outros segundos que duram minutos e passam as horas. O trânsito flui, veja você. É possível sentir a brisa e o cabelo ventar. É possível cantar e ouvir o som da própria voz entre os ônibus. É possível sorrir e olhar nos olhos ao atravessar a rua. Sorrir segunda-feira é possível e eu havia esquecido. Bastou um recado do meu amigo e a segunda ganhou ares de sábado.
Cidade cheia parecendo vazia.
Muitos carros na rua parecendo seguir o fluxo
sem sinais fechados ou buzinas fora do tom.
Pessoas caminhando na rua como passeando em jardins.
Músicas, telefonemas, conversas e bombom.
Água, segredos, gramática e tons.
Mensagem, carta, pensamento, pulsação.
Bolinho, contos, lágrimas e coração.
Passou uma pantera no meio do meu dia.
E era cor de rosa.
Tinha um sotaque gostoso.
Lá do sul que eu nunca estive, só ouvi falar.
Tinha um sorriso sacana.
Uma sombra de olho borrada.
Um punhado de histórias da noite.
Dos homens, dos paus, das frestas, do desejo.
Ela me falou de um mundo perfeito.
E a gente sabe que o mundo perfeito não é perfeito.
Sabe que ele racha, solta a casca, queima a lâmpada,
vaza a água, cai o parafuso.
Mas a gente sabe também que por algumas horas ele pode ser.
Depende do desejo.
Da vontade. Da intensidade.
Do tom ou do dom.
De transformar ou valorizar ou perceber
ou conceder ou compartilhar ou gargalhar
ou contemplar ou lapidar ou tecer ou ceder
ou ad infinitum de cada um de mim.
Ou de nós.