ENCANTADA de Kevin Lima
- Tive um romance que não durou muito. Não foi adiante. Sabe quando tudo começa com luzes, intenções e um brilho nos olhos? Sabe quando você percebe que tudo isso faz parte do encantamento natural de todo início, mas por qualquer motivo inevitável, por qualquer misterioso movimento involuntário, a mágica se desfaz, a projeção do ‘dessa vez vai dar certo’ bate no escudo e volta em forma de água fria? De desencanto. Então a gente suspira e segue adiante, porque seguir adiante é dizer sim. E você? E o seu coração?
- Em silêncio. Como se a cidade estivesse em silêncio. A minha cidade particular, que te envolve objetivamente quando a gente arrisca de se encontrar, fósforo de risco óbvio safado malandro carioca.
- Nós somos apenas dois bons velhos amigos.
- Que improvisam muitas vezes o discurso sobre o amor. Outras vezes enferrujam as palavras, de tão antigas e tão repetidas.
- Mas...
- Existe sempre o brilho do teu olhar aceso que faz do momento presente aquela íntima indiscutível intransferível festa entre nós dois.
- Eu perguntei sobre o teu coração.
- Que faz do momento presente aquela brincadeira de verdade que a gente insiste no meio de todo o barulho, em busca do silêncio comum. Da cidade comum.
- Quantas cervejas nós já bebemos?
- Tua geografia complementa a minha e viva o lugar comum da metáfora, mas o que eu quero te dizer hoje vai além de todo esse jogo da gramática. Eu quero te falar do que existe dentro. Entre. Do espaço entre todas as palavras, do invisível que existe entre um significado e outro. Da respiração entre os sinais e as pausas e o fôlego muitas vezes perdido e retomado. Eu te amo, ouve assim no pé do ouvido.
- Nós bebemos demais, Marcio.
- Não te digo somente que eu te amo, eu quero te dizer de tudo o que existe antes e depois dessa frase, de cada sensação, de cada estímulo, de cada reação, cada não palavra que deu origem a palavra que sucede a palavra. O que houve antes dela, o que haverá depois, no meio dela.
- Pare por um segundo. A gente já tem idade suficiente para perceber que tudo é feio que tudo é bonito.
- Eu quero te dizer de todo o processo, de cada reação, dos incêndios que você me provoca, dos ardores que você me causa, das flanelas com que nos polimos para parecermos dois distintos cavalheiros modernos dos dias velhos, a que tudo estão acostumados, vento sol pedreira ou pétalas e são cada vez mais raras as flores...
- Frases de efeito são somente frases de efeito.
- Onde é que foi parar a delicadeza?
- Eu vou pedir a conta.
- Eu te amo assim torto e míope. Você me ouve? Você quer me ouvir? Não estou pedindo um favor, eu tô pedindo socorro, existe um momento em que o sentido perde o sentido, a gente leva uma porrada que não é real nem deixa marcas e depois descobre que quase nada depende de nós. Isso deixa marcas. Os passos, as escolhas, as predileções, os desafetos, a trilha sonora, a gente ainda exerce algum tipo de controle. Da vida viva não. Do eu te amo, não.
- Desse teu eu te amo, assim, sem possibilidade, com conceitos deturpados, não.
- Tudo fica maior e precisa se encaixar com o tempo: o espaço, a natureza e seus desastres e eu te dizia que eu quero ir além das palavras, transcender o diálogo, quero permanecer depois de me calar. Pode parecer pretensão e hoje eu não ligo, existe em mim a cidade em silêncio e todo esse eco de querer dizer além de tudo o que eu te digo sempre. O que virá depois que eu me calar? Ou mais uma vez repetir. Você consegue compreender o sentido que virá depois do silêncio entre uma frase e outra? Garçom, você poderia completar as minhas frases, de acordo com os seus dias, os seus estilhaços, as tuas emendas e perfeitas histórias que cabem na palma da tua mão. Poderia?
- Não senhor.
- Me perdoe, ele já bebeu um tanto.
- Esse jogo de se completar.
- Você pode fechar a nossa conta?
- Pois não.
- De saber onde vai terminar. De saber que esse bar mais essas bebidas mais aquele moreno iam causar esse óbvio recurso de mão no cabelo, sorrisos no escuro da batida que não termina e é música, eles dizem e depois de um gesto sutil, um banheiro rápido para uma punheta no final daquela música que você tanto gosta.
- Não seja ridículo.
- É batida.
- Vou pedir um café.
- Estou ótimo.
- Um café, por favor.
- Entre duas pessoas que se amam podem existir espinhos além do óbvio. Entre duas pessoas que se amam existe todo um acordo transparente de dedicação, fidelidade, cuidados e carinhos que eu desrespeitei. Da mesma forma que tu desrespeitaste. Sabe que eu acho chique usar o tu. Não há aqui o desejo de me vingar.
- Vingar?
- Não sou assim. Existe aqui a cidade em silêncio e seus ecos ensurdecedores. Você não gosta de antíteses, eu sei.
- Não gosto.
- Mas o que eu posso fazer se eu vejo através desse ângulo?
- Você é exagerado.
- Não me exija melhor do que eu sou.
- Linda frase.
- É do Artur da Távola.
- Linda.
- Não me exija melhor do que eu sou. Todo amigo é também uma forma de socorro, onde os braços, o silêncio e uma boa aspirina fazem milagres possíveis.
- Esse tom de voz, eu conheço. Você não vai chorar, vai?
- Choro feito um menino em dor e noite. Choro caminhando sem rumo pelas ruas da cidade iluminada. Bêbado de um amor que me tomba poesia e um vigor que adormecia. Choro porque eu te traí, porque você não se incomodou.
- Você não me traiu.
- Traí ao amor.
- Você está chato.
- Choro hiperbólico sem vergonha viciado que sou.
- Chato.
- Não existe dor mais forte que a da traição ao sentimento. Carne a gente compreende. Sexo a gente engole. O secreto, quando violentado, não. Nunca.
- Você tem dinheiro trocado?
- De repente do riso fez-se o pranto /Silencioso e branco como a bruma /E das bocas unidas fez-se a espuma / E das mãos espalmadas fez-se o espanto./ De repente da calma fez-se o vento /Que dos olhos desfez a última chama/ E da paixão fez-se o pressentimento/ E do momento imóvel fez o drama./ De repente, não mais que de repente/ Fez-se de triste o que se fez amante/ E de sozinho o que se fez contente/ Fez-se do amigo próximo o distante/ Fez-se da vida uma aventura errante/ De repente, não mais que de repente.
- Não declame o Soneto de Separação. Nós somos apenas dois bons amigos.
- Estou declamando Vinícius de Moraes. Eu sei o que fomos.
- Precisa deixar de lembrar.
- O que importa é que você pegou na minha mão e ao tocar os meus dedos, seu olhar verde acendeu em mim qualquer luz vermelha e me interessou a maneira, que perdi a palavra por alguns segundos, perdi o sentido. E agora, eu quase perguntei em voz alta. Seu toque era bom e encaixava com exatidão, eu nunca fui um cara de exatidões e enchia de cores e tudo aquilo que você já sabe porque também arriscou e foda-se toda a cerveja e todas as garrafas e até o moreno do banheiro. Nós dois juntos em qualquer borda e havia sentido que houvesse sentido. Eu amei você e cada pergunta desencontrada e até a sua via movimentada de querer tecer o que não há nem pode haver se não começarmos em comum acordo qualquer tipo de comunicação. Você.
- Vamos?
- Você não entende o meu silêncio e eu não entendo as tuas palavras.
- Ou vice-versa.
- Vamos partir daqui.
- Sim.
- A gente já tem idade suficiente para perceber que tudo é feio que tudo é bonito. Enfrente, investigue, perceba que onde existe o medo existe também a ingenuidade e a ausência do saber. Não o saber de enciclopédias e salas de aula, mas o saber de caminhar, de estar dentro da vida, em contato com ela, o feio e o belo. Não entendo muito de relações partidas, mas compreendo os ecos do desatar, os efeitos do desfazer, quando a gente fica no singular à espera de.
- E teu coração?
- Encantado.