- Me desculpe.
Ganhou um olhar de reprovação que ao encontrar o seu olhar de pânico, perdeu a força e se transformou num ato impulsivo, acredito, que o fez ganhar um beijo no rosto. Como se dissesse qualquer carinho e sublinhasse que a noite agitada em lugares disputados é assim mesmo: a gente esbarra sem olhar, a gente pisa sem querer, a gente não enxerga ninguém e torce para que seja divertido.
- Você está bem?
Não me faça essa pergunta ele repetia sem dizer, deixando que os olhos mergulhassem na superfície azul dos olhos do outro. Não me faça essa pergunta complexa. Não me faça essa pergunta sem resposta, esse poço sem fundo, esse buraco preto infinito. Não me pergunte porque eu corro o risco de querer responder e eu não sei se você está sendo apenas educado ou exercitando a simpatia. Eu não sei se você vai querer saber de tudo o que aconteceu antes dessa escada. Antes dessa noite. Para eu te responder, eu teria que deixar você entrar na minha vida. Eu teria que entrar na sua vida e eu não sei entrar na vida das pessoas porque eu sou espaçoso e eu gosto de atenção. Então não me faça essa pergunta porque se você quiser ouvir a resposta, vamos ser mais do que apenas dois estranhos. Também não sei se você é mais um na multidão e só quer a noite e não a pessoa. Você quer a pessoa?
- Você está bem? – ele repetiu e dessa vez tocou as suas mãos frias.
- Eu só preciso sair daqui.
- Quer tomar uma cerveja lá fora?
Respondeu que sim com a cabeça. Por um momento, temeu que falar poderia lhe trair as intenções. Poderia dizer sim com muito entusiasmo, o que poderia lhe fazer parecer desesperado. Ou poderia ainda não ser enfático e assim pareceria descaso. Por isso balançou a cabeça e driblaram a saída e todas as pessoas daquele lugar escuro barulhento onde resolveu se aventurar, depois de tanto tempo ausente.
- Faz muito tempo que você não sai?
- Algum tempo.
- A gente desacelera.
- A gente desacostuma.
- Você veio sozinho?
- Deixei os amigos lá em cima. Não consegui ficar cinco minutos por lá.
- Essa confusão não é para qualquer um.
- Engraçado porque eu saía todo fim de semana. Tinha um grupo animado. Era mais jovem e eu não me importava, sabe? Eu enfrentava a noite. Eu compreendia esse rito da madrugada. Hoje em dia me parece tão assustador.
- O que te deixa assustado?
- Eu não sei dizer. Mas tudo me parece meio estrangeiro.
- Você não se encaixa.
- Eu poderia, mas seria exaustivo e não seria verdadeiro.
- Então por que você veio?
Abriu a lata da cerveja com calma. Antes de responder, ainda brindou em silêncio e recebeu o brinde em retribuição. Também em silêncio.
- Eu tive vontade. Acho que a gente não precisa anular o que nos causa desconforto. Ou medo.
- Tudo é uma questão de hábito, não é?
- Ou de desejo.
Eu não saberia explicar, mas começaram uma conversa boa sobre todas as coisas. Filmes, livros, televisão, pessoas em comum, o trânsito, a temperatura, os encontros furados, expectativas, contas, responsabilidades, segurança, família, mínimos óbvios. Falaram de amor. De amores. Amantes. Falaram de tanto o quanto podiam, com encaixe. Com aquela sensação nobre de falar e ser ouvido e deixar que o outro fale e seja ouvido. Com aquela generosidade da conversa que se olha nos olhos e estimula a próxima frase. Desperta o desejo de compartilhar. Algum pequeno segredo. Alguma grande banalidade. Não importa. O interessante é que dois homens conversavam e conversavam sem fim e sem medo em julho de dois mil e oito. Os amigos se aproximaram e se apresentaram. Insistiram para que eles os acompanhassem, vamos curtir essa festa! Sem êxito, se afastaram enérgicos e voltaram ao andar de cima, onde tantos dançavam também sem fim a madrugada fria. Lá fora era a palavra que abria as portas dos dois distintos rapazes. Era a palavra que informava e dava dicas, confundia o caminho, fincava as bandeiras, sintonizava a nitidez e ouso, a transparência.
- Como é que a gente nunca se esbarrou antes?
- Como, me diz?
- Tantos amigos em comum, tantos lugares em comum.
- E o que a gente faz agora?
- Boa pergunta.
- A gente pode dançar.
- A gente pode comer.
- Comer seria uma ótima.
- Ou dançar.
Quando alguém conhece outro alguém que nunca ouviu falar antes, se houver atração, em pequena ou grande escala, se estabelece um ritual do envolvido em questão, de querer parecer melhor do que é. Os charmes se destacam. Os acertos se evidenciam. A parte bacana querida e fofa de cada um ganha contornos mais fortes e a gente deixa o lixo longe, empacotado e devidamente amarrado. A gente evita falar demais porque as palavras são provas importantes que podem ser usadas contra você, especialmente quando a gente menos espera. A gente evita opiniões maiúsculas, especialmente se a atração for igualmente maiúscula porque se o outro ousar discordar de ti e se for desprovido de senso de humor, alguma pequena avalanche há de atrapalhar o caminhar do enlace. A gente enfatiza a simpatia, a educação e a pacificidade. Sem perder a personalidade, a gente observa o território alheio e tenta fazer com que esse território, se interesse houver, sinta-se em harmonia com o teu terreno. Quando alguém conhece outro alguém que nunca ouviu falar antes e por alguma razão misteriosa e intuitiva, você quer prolongar a simpatia, a gente abre um tanto a mão do mundo real.
Com eles, não havia esforço ou cortesia forjada.Com eles era mais simples. E eu não sei explicar o motivo. Também não sei se existe algum motivo. Apenas mais simples.
- Me conta um segredo.
- A cadeira elétrica foi inventada por um dentista.
- Sério?
- Li isso em algum lugar e nunca mais esqueci.
- A gente pode se encontrar de novo?
- A gente deve se encontrar de novo.
- A gente deve.
Depois, em casa, ainda encantado, pensou na lógica do senão. Quando, por algum impulso, por algum desejo, quando a necessidade aponta e a gente quebra a rotina e a vida te sopra um sorriso, é preciso retribuir. Encantado, pensou em todas as noites de todos os dias, quando disse não. Pensou em todas as justificativas inúteis que deu aos amigos quando recusou seus convites. Pensou que pensar nisso não adiantaria tanto. Por tanto tempo foi assim. Por tanto tempo foi bom ser assim. Encantado, ligou o computador para checar suas mensagens. O coração acelerou quando ele clicou no endereço e havia uma carta dele.
A primeira.