VIOLÊNCIA GRATUITA de Michael Haneke
Foi assaltado por dois homens por volta das três horas da tarde. Relutou por alguns segundos, tentando acalmar a situação. Levou uma pedrada na testa e dois pontos na sobrancelha, além do sangue na camisa e o susto. Claro, o susto. Levaram o celular novo, que estava no seguro e também setenta reais porque ele ia comprar um livro. Não estava com a carteira, o único documento de identificação foi preservado no bolso de trás da calça que não foi questionado pelos dois rapazes negros de boa aparência e bem vestidos, que se aproximaram com muita serenidade no meio da praça movimentada.
Saiu do hospital com o rosto dolorido e voltou ao trabalho porque lá tinha deixado a mochila e todos os pertences que não foram roubados, amém. Ligou para a operadora e demorou quase quarenta minutos para explicar que fora roubado, que etc e tal e que precisava desligar o aparelho e bloquear a linha.
- Mas senhor, em caso de furto, é preciso um registro de ocorrência na delegacia mais próxima.
E com pouca paciência, depois de ter falado com mais de seis pessoas diferentes, ele quase chorou.
- A delegacia mais próxima fica muito longe do meu trabalho e eu não posso sair daqui – ele disse segurando o tom da voz. - Amanhã bem cedo eu faço o registro.
- Mas senhor, a ocorrência precisa ser feita no mesmo dia do roubo, senhor.
- Olha aqui, sua puta, chama a porra do seu chefe de merda que eu cansei de gente babaca que repete frases decoradas num curso mal feito, ministrado por pessoas incompetentes. Ou cancela a minha linha agora ou eu vou entrar com um processo contra vocês – explodiu sem freios.
Veio o supervisor. Depois veio o superior do supervisor que ele nem sabe o nome que se dá.
- Escuta, eu fui roubado. Tomei dois pontos na testa. Fui agredido. Pegaram o meu dinheiro. Levaram o meu aparelho que eu comprei com o dinheiro que eu ganho fazendo um trabalho que eu destesto. Eu não tenho que me justificar para vocês. Eu não tenho que dar nenhum tipo de satisfação ou me sentir culpado porque eu fui vítima dessa cidade estúpida. Eu só quero que você cancele a minha linha, porque a essa altura, o ladrão já deve ter ligado pra puta que me pariu e quem vai pagar por isso, sou eu. Porque até quando vocês cometem erros, a gente tem que pagar para ser ressarcido depois. Então, pelo amor de Deus, eu estou no trabalho, eu não estou em condições psicológicas e emocionais de ficar implorando por um direito que eu tenho. Cancela. Cancela agora porque essa conversa está sendo gravada e eu vou, eu juro que eu entro com uma ação contra vocês, por qualquer motivo que eu quiser escolher, porque já deu, entende?
- O seu celular está no seguro, senhor?
- Se você consultar o seu sistema, você vai ver que está.
- É que casos assim precisam ser comprovados, senhor.
- Eu vou comprovar. Qual foi a parte que você não compreendeu? Eu vou comprovar a porra toda, eu só não tenho como chamar o ladrão para testemunhar, porque ele não vai topar. Agora me diz com quem eu preciso falar para comunicar que eu tomei porrada na rua e eu preciso cancelar essa conta? Me diz.
Meia hora depois, o chefe comovido pela situação evidente, dispensou o rapaz. Arrumou a mochila. Fez outras ligações rápidas e desceu. Caminhou em direção ao metrô. Duas meninas se aproximaram. Mãos vazias:
- Passa a carteira, seu babaca.
- Chegou tarde, minha filha. Já me levaram dinheiro e telefone mais cedo.
- E essa mochila?
- O que tem essa mochila?
- Abre aí pra gente ver o que tem dentro.
- Olha só, eu posso dar uma de maluco e começar a gritar. Eu posso te enfiar a mão na cara e te machucar porque eu estou com ódio acumulado.
- Tu bate em mulher?
- Bato em ladrão safado com o maior prazer.
- Mas eu sou mulher. Posso chamar o guarda e tu se fode.
- Quer que eu chame o guarda com você?
- Muita marra, branquelo.
- Você quer me roubar e sou eu que tenho muita marra? Some daqui antes que eu perca a cabeça.
- Então paga um lanche ali.
- Desde quando vocês não comem?
- Faz tempo.
Pagou dois sanduíches para cada uma e dois sucos de laranja. As meninas nada disseram. Não agradeceram. Não se despediram. Não fizeram nenhum comentário. Guardaram a hostilidade. Camuflaram a falta de educação. Olharam com atenção quando ele tirou a carteira e puxou uma nota de dez reais para pagar o lanche. Mastigaram em silêncio suas histórias. Suas necessidades. Seus pequenos e grandes desejos. Depois sumiram na multidão apressada da mesma forma como apareceram.
Em casa, finalmente em casa, após o banho e a comida, ele ouve o interfone e atende. O vizinho invade a sua calma, sem dar boa noite, sem perguntar como foi o dia, sem querer saber se está tudo bem. O vizinho reclama que o carro está um pouco fora da faixa no estacionamento e que é assim todos os dias. Que encheu o saco. O vizinho fala muito baixo, mas não há a menor intimidade para a grosseria com que ele conduz a conversa. Então ele tenta sublimar, dizendo que hoje não foi um bom dia. O vizinho parece não se importar ou querer saber do seu dia e lista tudo o que lhe incomoda. Lista absurdos.
- Eu só espero que você não me culpe pela queda do Diego Hipólito.
E aos poucos, ele vai destruindo a calma que conseguiu conquistar, apesar do dia, apesar de tanto. Ele sente o sangue correr, o pescoço começa a ficar vermelho e ele grita e briga e bate as janelas e já nem mais ouve o que diz. Ele grita e fala palavrões e mesmo que o mundo se acabe, sua calma, sua paz fugaz foi demolida dois andares abaixo.
São onze horas da noite e a adrenalina é tamanha. São onze horas da noite e alguma sensação dentro dele parece querer explodir e é preciso que essa energia seja usada para que não o sufoque. São onze horas da noite e o suor escorre pela testa sem pudor. O que acontece com alguém que acumula toda e qualquer sensação de indignação no decorrer do dia e precisa explodir para que não imploda? Como é que o acúmulo do avesso dos fatos se transforma em desabafo? Quais as vias, qual o caminho mais seguro? É no grito, no tapa, na força, no laço? Revida-se? Não dá para sair por aí assaltando pelas ruas, matando o pessoal do atendimento ao cliente, alimentando crianças batedoras de carteira, degolando o vizinho grosseiro. Não dá. Revidar seria se transformar num sociopata. Seria cumprir as expectativas.
Ligou a televisão e encontrou o Brasil jogando vôlei de praia. Pensou que torcer resolveria os seus nós. Porque na torcida a gente grita, pula, a energia é exposta, liberada, justificada. Mas o jogo foi fácil e o Brasil infelizmente foi eliminado rapidamente. Então colocou o tênis e foi correr. Precisava dessa sensação de que alguma coisa estava sendo feita. Alguma medida estava sendo tomada para que ele não afundasse, sem conseguir dormir, sem conseguir sonhar. Foi correr. Colocou os fones no ouvido e foi, se deixando conduzir pelas canções. Pela noite quente, pela lua grande. Foi para queimar energia, para acalmar o coração, para sentir escorrendo toda sensação de irritação. Como quem vai embora, ele correu quarteirões inteiros, dobrou esquinas driblando putas, ignorando travestis e qualquer outra alegoria. Dobrou o cansaço, esgotado de vontades azedas de extravasar. Apenas extravasar.
Correr o deixou ainda mais excitado. Ainda mais furioso. Com sede extrema de vingança. Com o desejo de lutar. Ganhando ou perdendo, mas o desejo de poder escolher e lutar de igual para igual. Sem covardias. Sem grosseria. Sem nenhuma teia que confunda a visão. Chegou em casa e comeu. Jantou. Mastigou. Engoliu. Faminto, suado, absolutamente atento, como um selvagem. Tomou um banho gelado, na esperança de que pudesse, enfim, relaxar. Não conseguiu. Discou o número menos provável. Do outro lado do túnel, ele atendeu:
- Quero te fazer uma proposta.
- Faça.
- Eu quero sexo.
- Eu também quero muitas coisas.
- Guarde a ironia. Eu quero trepar até desmaiar. Eu tô com uma puta energia.
- Por que você não paga alguém?
- Porque você me conhece bem. Ensinar um estranho seria cansativo.
- Você me faz me sentir como uma puta.
- Eu não vou te pagar.
- Você acha que me ligando e me dizendo que quer sexo, eu vou abrir a porta da minha casa e te agradecer pelo convite?
- Eu te pago um táxi. Você chega em vinte minutos.
- Eu recuso.
- Eu quero você. Eu só quero sexo. A gente pode ficar sem se falar depois o tempo que você quiser. Eu não ligo que você tenha raiva de mim. Sinta o que você quiser. Mas hoje, agora, eu quero você. Eu quero entrar e sair de você. Eu quero que você entre e saia. Use a tua raiva. Eu vou usar a minha. A gente sabe que funciona bem.
- Falando assim, você realmente me deixa com raiva.
- Ótimo. Vai ser melhor do que eu imaginava.
Nem ódio, nem amor. O que houve foi sexo. Sexo sem compromisso. Sexo de tatear os corpos e testar os limites. Ir além do além. Sexo por puro exercício, por mera vaidade, por simples prazer. Sexo para que a noite termine e o tempo não passe. Sexo para sentir outra sensação que não a de agora. Para lavar a alma. Para deixar o corpo dolorido por dias. Sexo físico, sem medo, de fácil acesso. Dois homens íntimos e suas questões infinitas e pessoais. Sexo até não mais resistir. Sexo onde a explosão dos corpos é apenas o início da brincadeira.
Desmaiaram.
Quando amanheceu, ele acordou sozinho com o barulho incômodo de alguém batendo na porta. Era o vizinho da briga do dia anterior.
- O cano do banheiro estourou. Eu preciso da sua ajuda.
- Sinceramente, eu não te desejei isso – ainda sorri de canto de boca.
Ajudou o vizinho na urgência do inesperado. Ajudou porque sentiu vontade. Nenhum traço de nobreza havia nessa atitude. Poderia ter dito ‘não’ e batido a porta. Resolveu começar o dia com um ‘sim’. Quem sabe hoje o dia não amanhece diferente?
Até que ligou a televisão.
E a Argentina fazia o terceiro e humilhante gol no time de futebol masculino da seleção brasileira.
Lá do outro lado do mundo, algo também não ia bem.