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terça-feira, outubro 28, 2008



PROIBIDO PROIBIR
de Jorge Duran

O telefone tocou e eu resolvi atender porque era a Mila. Só ela me conhece do avesso. Só ela compreende um tanto da minha vida, dos meus atritos e desvios. Só ela sabe o quanto eu e o Alexandre somos tão sem nexo, embora nos encaixemos. Em algum momento fazemos sentido. Ou fizemos.

Marcamos no mesmo bar de sempre, ali no fim da Lapa, já na Mem de Sá. Lá a cerveja é barata e as pessoas sempre aparecem. Se alguém atrasar, a gente segura a onda com o pessoal de sempre. Eu sinceramente não esperava encontrar o Alê à mesa, no momento em que entrei no bar. Eu disse ‘boa noite’ e entre o início e o fim dessa frase, os meus olhos se encontraram com os dele, meu coração disparou e eu desviei o olhar.

- Boa noite – ele me respondeu sem alarde.

Abracei quem estivesse mais próximo. Quem eu sentia saudade. Quem pudesse me servir de apoio, de escape. Distribuí e ganhei sorrisos e ‘alôs’. Os mais íntimos, no abraço, ao pé do ouvido, sacavam suas dúvidas e curiosidades:

- Vocês não estão se falando?

Descobri que a melhor maneira de fugir de algum assunto delicado é permanecer em silêncio absoluto. A gente levanta a sobrancelha e pisca os olhos como quem diz ‘tudo vai se resolver’, até que o outro perceba que não há resposta. Que não haverá resposta e algumas perguntas não deveriam ser feitas. Se a pessoa insistir, você usa o ‘isso é particular’. Ou então responde com alguma pergunta absurda:

- Você leu sobre o maremoto em Brasília?

Mila chegou e antes de me encontrar no balcão do bar, foi surpreendida pela presença do Alexandre e por um abraço demorado. Não sei se ele fez para me irritar ou se, de fato, precisava ser abraçado. Eles conversaram por muito tempo. Daquelas conversas íntimas, para quem observa de fora. O tom de voz muito baixo. Os olhos nos olhos. A atenção ao redor, para que ninguém pudesse ouvir. E eu, inteiramente impaciente no canto do bar. Quase claramente contrariado, afinal quem marcou com a Mila fui eu. Eu que deveria estar falando sobre ele. Enumerando as minhas razões. Justificando a minha atitude. Desabafando.

Quando o Pedro entrou no salão, eu já estava pensando em ir embora. Não fosse ele o motivo de boa parte das brigas que eu tive com o Alê, a conversa com a Mila não terminaria em frações de segundos. Essa implicância gratuita com o Pedro sempre me irritou. Primeiro porque eu nunca me interessei por outra pessoa depois que nós começamos a namorar. Toda atração aparente, eu sempre transformei em comentário. E isso sempre foi motivo de risada entre nós. Quase nunca concordávamos. E frequentemente atribuíamos notas aos rapazes. O Pedro sempre foi um seis para mim. Embora o Alê insistisse na idéia de que ele me cantava deliberadamente, nunca percebi nada além de simpatia, dentes brancos e uma invejável cultura cinematográfica.

- Pensei em você – Pedro me disse ao se aproximar.
- Por que não me ligou?
- Vi o filme do Duran. Pensei em você na hora. É o tipo de filme que vai te inspirar bons textos.
- Eu não sabia que você lia o que eu escrevo.
- Agora já sabe – ele me disse sorrindo.

Sorrindo o Pedro era um sete. Definitivamente. Mila interrompe. Mila quando se aproxima não se preocupa com atropelamentos. Não importa se estou ao telefone, no meio de uma conversa ou de um beijo. Mila não respeita nem beijo. Quando eu e o Alê fizemos aniversário de namoro, se eu não me engano o terceiro, ela interrompeu o nosso beijo para dizer qualquer absurdo que não cabia no momento. Eu nunca soube se ela fazia isso de propósito ou apenas para se fazer presente. Sempre relevei, mas confesso que estou começando a ficar irritado.

- Olá meninos! – ela se debruçou acima da frase do Pedro.
- Você veio de carro, Pedro? – perguntei respondendo o seu ‘olá’.

Ele acenou que sim e me perguntou se eu queria uma carona.

- Eu não vou ficar por muito tempo. Eu tô exausto. Só passei para dar um alô.
- Você já vai embora? – Mila, sempre ela.
- Aceito a sua carona, Pedro.
- Mas nós não conversamos. – ela reivindicou.
- Outra noite, Mila.
- Você não vai fazer uma cena porque o Alê me prendeu para conversar, vai?
- Não, eu só vou embora.
- Você queria que eu o deixasse falando sozinho?
- Eu não sei, Mila. Mas eu só aceitei sair de casa para te ver. Se eu soubesse que ele ia aparecer, eu teria evitado esse encontro. Eu estou nesse balcão há uns quarenta minutos. Então não espere de mim a melhor recepção. Prefiro ir embora. Outra hora a gente conversa.
- Uma cerveja? – sedutora.
- Não – encerrei.

Pedro assiste a tudo. O seu silêncio me conforta. O seu silêncio é cúmplice.

- Quando você decide, não há quem mude a sua opinião – ela pediu a conta.

No estacionamento, antes de entrar no carro do Pedro, uma crise de choro me surpreendeu. E eu deixei. Pedro não disse nada. Nenhuma palavra. Pedro não me disse que tudo vai ficar bem. Ou que vai passar. Não disse que é assim mesmo. Que chorar alivia. Que todo mundo sofre por amor. Que ele estava ali para me ajudar, que ele era um ombro amigo. Nenhuma palavra. Pedro se aproximou. Foi só o que ele fez. Ele se aproximou e me fez carinho enquanto eu chorava.

quinta-feira, outubro 16, 2008

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA de Fernando Meirelles

Ele tomou um copo d’água e engoliu o comprimido branco. No mesmo dia, horas antes, ele havia tomado um tiro no braço. A bala entrou e saiu sem avisar. A camisa branca, em poucos segundos deu lugar ao vermelho molhado de um incontrolável braço furado. A camisa vermelha e a falta de direção dos seus olhos causavam a sensação de que a situação era mais grave do que parecia. Mas tudo o que eu posso dizer é que ele não sentia dor alguma e embora muita gente ao redor se espantasse e apresentasse sinais de desespero ou euforia, ele domava os nervos e o sangue escorrendo com uma serenidade e tamanha calma que, mais tarde, ele pôde compreender, lhe serviu de exercício. De concentração, de tentar privilegiar a consciência, de manter a calma diante de uma urgência evidente. Autocontrole e não se fala mais nisso.

Depois ouviu o médico dizer que só vai ficar a cicatriz e que ele teve sorte.

- Eu tomei um tiro que não era para mim, doutor. Isso não é sorte. É egoísmo.

Ouviu as recomendações básicas de antiinflamatórios e muita água. Repouso absoluto, o médico insistiu com propriedade, alegando que o músculo precisa se recuperar do trauma.

- Não foi só o músculo que sofreu um trauma, doutor.

O médico sorri pequeno e faz receitas, dispensa médica e não olha nos olhos. O médico chama a enfermeira e os dois, em comum acordo, se justificam dizendo que precisam enfaixar o seu braço. Ignorando o calor de quarenta graus e o incômodo óbvio de ser enrolado em gazes, a dupla enfaixou o seu tronco e ganhou um olhar incomodado.

- Mais um pouco e a múmia sai caminhando – ele tentou.
- Você veio com alguém? – o médico, nenhum humor.
- Não.
- Como você chegou aqui? – a enfermeira, traços tímidos de humanidade.
- Pés, braços, quinze reais de táxi com o maior cuidado para não sujar o estofado. O motorista estava mais preocupado com o banco do carona do que comigo.
- Ninguém te ajudou?
- Algumas pessoas foram muito solidárias. E como o senhor me disse, eu tive sorte. Poderia ter sido muito pior. Mas a maioria só parou para olhar. Bem de perto, feito lobos, ávidos por desgraça, por mais sangue. Provavelmente esperando que eu desmaiasse e caísse no chão, para saquear a carteira e a mochila.
- É pouco comum quando o ferido é quem toma as decisões. Precisa de disciplina para não se desesperar. Para não perder a cabeça.
- Não é uma qualidade, doutor. Já me desesperei por muito menos. Acho que foram as circunstâncias que...

Desmaiou antes de completar a frase.

Quando acordou, estava no soro, no segundo saco, que a enfermeira fez questão de informar.

- Logo após o desmaio, o seu telefone tocou e eu atendi. Era um rapaz retornando sua ligação. Eu disse onde você estava. Ele chegou há umas duas horas.
- Onde ele foi?
- Comer alguma coisa. Ele ficou muito tempo ao teu lado. Te fez carinho. Fez algumas ligações. Me pediu para não sair daqui enquanto ele não voltasse. Deve ser gostoso ter alguém que se preocupa tanto com a gente. Ele chegou chorando tanto.
- Você sabe se ele avisou aos meus pais?
- Ele fez muitas ligações. Eu acredito que sim.

Quando o irmão apareceu na porta do quarto do hospital mastigando um biscoito qualquer, ele finalmente chorou. Não pelo caos da cidade ou pela violência desgovernada. Não chorou pela dor que começava a sentir na altura do ombro ou por estar deitado em uma cama de hospital. Não foi pela arbitrariedade do acaso ao ser escolhido no meio de tantos para ser destino da bala perdida. Ou pela leviandade de gente que aponta suas armas de fogo e dispara a grande roleta-russa que move a guerra no Rio de Janeiro. Chorou por alívio. Porque encontrou nos olhos do irmão a segurança que tanto lhe faltou. Encontrou paz para poder finalmente sentir. Enlouquecer um tanto, por todos e tantos motivos aparentes.

Quando a vida nos aterroriza, a gente não revida. A gente sorri, observa ao redor e tenta proteger quem parece mais frágil. A gente abraça uma causa que não é de ninguém e que é de cada um. E secretamente torce para que não seja com a gente ou com nenhum dos nossos. Caminha pelas ruas atento, sabendo que só a atenção não é suficiente porque a improbabilidade e a imprevisibilidade são muito mais do que palavras grandes. São fatos que se consumam ao atravessar a rua no sinal vermelho.

Abraçados, eles ficaram até que as lágrimas secaram e a família e os amigos começaram a chegar, fazendo brincadeiras com a importância irreversível dos fatos. É o que nos cabe: suavizar. Transformar em piada, como todo bom e fiel brasileiro. A gente sorri porque é mais gostoso. E de alguma maneira distanciada, vai transformando a realidade em uma boa história para contar outro dia. Como se fôssemos personagens, longe do pânico, do medo, do temor e da insegurança de todo e qualquer homem que não sabe do que virá.

quarta-feira, outubro 15, 2008


FATAL de Isabel Coixet - complemento

Você vai entrar por aquela porta em menos de duas horas. Em menos de duas horas, eu vou sentar no sofá e antes de sentar no sofá vermelho, eu vou te oferecer uma taça de vinho. E você vai aceitar porque eu sei que você jamais recusou uma taça de vinho. Eu vou te dizer o quanto eu gosto de você e vou tentar evitar falar a palavra amor. Eu vou tentar e se eu conseguir evitar, pode ser que você me odeie menos e nem pense em me dizer. Talvez você apenas se levante e vá embora de maneira educada e gentil. Você sempre me surpreende e eu já desisti de tentar prever suas reações muito tempo antes de pensar em te deixar.

Você vai chegar bem vestida e perfumada. Provavelmente curiosa, mas nem por isso menos segura. Você vai passar por mim e ao passar, o seu perfume vai iluminar todos os pontos sem luz e eu vou pensar 'uau'. Você me deixa sem palavras e refém, junto os cacos do que ainda me resta e assassino a grafia se te escrevo, embaralho a concordância se te falo, eu ignoro o significado quando te amo. Você, apesar de me deixar da maneira que deixa, de ter o melhor abraço que eu jamais vou ter, de ser a mulher por trás do homem patético, hoje há de saber que eu vou te deixar.

Você ao entrar, vai desarticular todo e qualquer pensamento arquitetado. Você desfaz os meus ensaios com apenas um movimento. Você destrói as minhas pilhas de idéias organizadas e desconstrói todo castelo de papel que eu diversas vezes ensaiei construir. Você me causa a sensação de que a vida não faz sentido. Você me causa sensações, entre elas, a mais potente, de que a vida nunca fez qualquer sentido. Você me ensina todas as noites e todos os dias que não há qualquer sombra de sentido em ninguém. Em nada. Talvez na natureza. Nunca em qualquer um de nós. Por isso eu me desafio e vou te deixar.

Eu vou porque a tua beleza descortina a minha imensa feiúra. Eu vou porque teu perfume me enfeitiça docilmente. Porque ainda existe algum sentido em mim antes do afogamento. Porque outras mulheres e outros homens eu quero amar. Porque por outros homens e outras mulheres eu quero ser amado. Porque o amor não se basta. Porque só o amor não é o bastante. Porque você nunca achou que fosse amor. Porque eu nunca soube amar. Porque eu tenho essa necessidade italiana de querer marcar o território. Porque eu não passo de um cachorro vagabundo. Porque você confunde educação com frieza e eu tomo ciência todos os dias que viver é em voz alta. Porque um milhão de coisas. Porque eu jamais daria nome às coisas porque eu nem sei delas a metade. Porque esse papo não vai dar em lugar algum, a não ser em apartamentos distintos, objetos separados, um ou dois porres para deixar de lembrar.

Você vai chegar. E eu não vou saber o que te dizer. De todas as tentativas que eu fizer, uma delas você há de compreender.

A língua portuguesa nunca me foi tão complicada.

(Publicado também na coluna Depois do Filme da Revista Paradoxo).

domingo, outubro 05, 2008

FATAL de Isabel Coixet

“Foi um sonho medonho/
Desses que às vezes a gente sonha/
E baba na fronha/
E se urina toda/
E quer sufocar”
(Chico Buarque / Não sonho mais)


Eu te perguntei e você me respondeu que morava com seu irmão. Achei que sim, você alimentava a minha fome de ser um cara daqueles por quem se espera, porque disse que morava com o irmão. Me causa a sensação de companheirismo. Se você me dissesse que ele mora com você, eu ia pensar que a casa é sua e que ele está ali apenas para ajudar nas contas, arrumar a bagunça. Mas você não disse. ‘Eu moro com meu irmão’, você me olhou e me informou e eu sorri e pensei que seria bacana aparecer para conhecer o teu apartamento e passar algumas horas ouvindo vocês se irritarem e contar uma série de histórias da infância, da juventude e da idade adulta. Eu comecei a tecer uma colcha infinita de momentos e fragmentos de momento que eu poderia presenciar ao teu lado, até que eu ouvi você me dizer:

- Eu detesto metáforas. Essa tua colcha de momentos, pode desfazer.

Uma parede ruiu e você ouvia tudo o que eu não dizia. Você ouviu o meu pensamento e eu por puro nervosismo, não conseguia articular nenhuma frase. A minha voz se perdeu. Eu deixei de falar porque você me ouvia no mais íntimo tom. Você ouvia o inconfessável. Você ouviu tudo o que não se diz. Você ouvia a minha maneira caótica de observar o mundo e as pessoas. Você soube que eu sou uma farsa. Você sabe.

- Comigo é tudo no preto e no branco. Não gosto de jogos. Enrolações.

Refém absoluto, eu preciso de você porque ninguém mais me ouve. Mudo e quase cego, você é a minha única direção. Não me coloque uma coleira. Não me faça andar em círculos. Não me faça de escravo, eu imploro. Seja o homem que eu sempre achei que você fosse. Satisfaça as minhas expectativas românticas. Encaixe exato no molde que eu guardo desde menino. No fundo e no raso, eu só quero alguém para viver uma história. Uma história comum, banal, real.

- Quando eu posso trazer as minhas coisas para o apartamento?

Eu sou um homem de imagens e palavras. Muita mais de imagens. Eu gostaria de poder dizer imagens. Te dizer meses de amor. O quanto eu adorei te adorar. Essa delicadeza bruta confusa exata. Você vai ser sempre esse cavalheiro admirável, que me surpreende com os carinhos mínimos e me encanta tão moleque tão responsável, muito mais adulto do que jamais vou ser. Desprotegido e tudo o que eu sempre fiz até hoje foi tentar me proteger. De maneira, que ninguém mais consegue entrar. Ninguém mais consegue penetrar. Eu fiz muros altos demais. Cadeados complexos sem chaves. Eu fui longe demais.

- Você é especial, mas eu amo outra pessoa.

Sonhei com um menino que quebrava vidraças e corria por ruas preto e branco. Você é alguém que eu preciso assim com algum desleixo, para não parecer tão necessário. Quando você for embora e me disser o gigante não, destruidor de toda uma cidade, vai me enlouquecer por semanas, meses e vai me fazer escrever imensas cartas sobre o mesmo assunto. Você vai ser a minha maior dor. A incomunicabilidade mais promissora. O meu desacerto mais complexo. Você vai me fazer ouvir Roberto Carlos e compreender.

- Você está ouvindo o que eu te digo?

Eu sei que você gosta de outra pessoa. Eu sei que antes de nós dois, havia uma mulher, um homem, vai saber. Eu não quero que você me conte sobre. Eu não quero saber quem você foi antes de chegar até aqui. Eu não aceito comparações. Por isso, limpe bem os pés antes de passar pelo tapete. Mude o perfume também. Não mencione o passado. É muito difícil amar alguém que ama outro alguém. É um esforço em vão. Querer dar conta de um peso maior que o suportável.

- Eu vou embora.

Eu não sou bom com duplas. Com trios. Eu não sou bom com gente. Eu tenho uma terrível dificuldade de me comunicar, de me fazer compreender. Eu só sei que eu sou mais estranho do que pareço. Não gosto de ser observado. Não gosto de ser objeto de estudo sem consentimento. Não gosto de exposição. Não é o último abraço, sabemos, mas esse é importante porque cada um acontece de uma maneira, um jeito específico. Você sabe, não sabe, que nenhum minuto é igual ao outro? O dia amanheceu calado, as linhas despertaram em harmonia, hoje eu não saio de casa. Hoje eu só saio da cama para receber o telegrama. Vou receber notícias de finais. Beijos e despedidas. Histórias e malas prontas. A vida, enfim, pronta para o próximo passo.

- Você realmente acredita nessa exatidão de sentimentos? Etapas, processos, finais? Tudo está misturado e são indissociáveis. Tua vida não é uma planilha matemática. Tudo acontece ao mesmo tempo.

Você demole o prédio. Ninguém foi mais filho da puta que você no universo. Eu preciso acreditar que o acaso vai brilhar depois que você explodir longe de mim. Que eu vou estar sujeito a novos olhares. Novos nexos. Novas saias e cuecas, novas camas, timbres. Novas viagens. Eu sou assim, feito uma planilha do excel e não preciso da tua permissão para acreditar. A vida, enfim, para seguir adiante. Onde é que nos encontraremos para um novo diálogo triste de proporção tamanha que vai nos definir mais uma temporada? Quando é que posso ter a certeza e desfazer a mala, retirar a história e guardar com cuidado na gaveta?

- Não existe certeza. Será que você não entende?

A vida acontece toda hora e você não é mais futuro algum. Você não pode mais ser meu companheiro e não consegue voltar para o teu antigo amor. Você é a mula empacada no meio da sala gigante cheia de móveis. E eu não sou ninguém. Hoje eu te confesso tudo o que você quiser saber. Respondo perguntas, esclareço intenções, revelo detalhes, trilhas, cada milha percorrida. E todo o não saber, que é maioria. Hoje eu te ofereço um futuro breve, de minutos, com flores nas mãos. Os braços abertos. A primeira página de um livro em branco.

- Eu vou embora de novo.

A gente vai se perder no meio de tudo e de todos. A gente vai escorrer pela cidade. É tão fácil se perder na multidão. Até que a gente se encontre novamente. Até que nos encontrem novamente. A vida, enfim, pela frente. O não saber. O acaso. A rotina. As intenções. A cerveja. O carinho de muito longe. O carinho de ainda agora. O carinho do nunca mais. A beira da estrada. O braço estendido. Os carros que avançam. A gente segue no fluxo contínuo de algo que não vai parar. A gente acredita senão tudo é labirinto. Você foi meu labirinto de mais fácil acesso. Eu sinto muito que seja assim. Mas é necessário que seja assim. Toda metáfora quer dizer alguma coisa. Toda palavra é um exercício de comunicação. Uma tentativa. Eu tentei. Nós tentamos.

- Vocês está acordado?