ALICE de Karim Aïnouz
Eu não tenho conseguido um monte de coisas. Se alguma concordância houvesse, você me pediria para enumerar todas essas coisas. Mas como estou no meio de uma caminhada verdadeiramente inesperada, não há você por perto de onde eu observo. Parece uma figura de linguagem qualquer, daquelas que colocam o indivíduo no meio de uma paisagem vazia sem ninguém no quadro e a gente entende o recado de que toda solidão é de todo homem e suspira. Eu não suspiro mais. Eu não tenho conseguido. E no quadro do qual eu faço parte, a cidade está lotada. Existe gente por todo o canto. Dentro do metrô, saindo e entrando de lugares com extrema urgência de existir. E eu não sei mais como é que se deixa alguém entrar. Eu perdi os caminhos. Esqueci dos procedimentos. Eu não consigo mais me relacionar. A geografia dos espaços onde eu transito é quadrada. Não existem curvas. Nada se arredonda. Tudo é reto e claramente objetivo. Como um labirinto. Que não me deixa mais dormir. De todas as coisas que eu não tenho conseguido, dormir certamente é a que mais me faz falta. Naturalmente é também a que altera qualquer atividade que eu sinta o desejo de realizar.
Ontem quando eu fui almoçar, uma chuva torrencial caía no Centro. Eu saí do prédio e algumas pessoas se aglomeraram apenas para observar a chuva. O trânsito parou. Uma neblina forte desceu pelas calçadas e as pessoas pararam. Não houve tumulto. Ou buzinas esquizofrênicas. Não houve confusão. As pessoas perceberam que diante da chuva intensa e do vento forte não havia o que fazer. Me juntei ao coro e observei. Pensando que aquela hora do dia era um reflexo da minha incapacidade atual de não conseguir realizar. Eu deixei de me relacionar. Me desinteressei pela comunicação. Por toda a complexidade exaustiva da comunicação de todo relacionamento. Das responsabilidades excessivas, dos cuidados atenciosos, de toda satisfação subliminar que cruelmente, friamente perde todo o sentido quando a gente percebe que boa parte do todo foi encenado. Eu não consigo atuar. Por agora porque eu tenho ciência de tudo o que houve antes. Não respondo cartas. Não escrevo mais as palavras de sempre fora de ordem. Os filmes eu assisto um pouco hoje e termino qualquer dia desses. As minhas infinitas urgências se calaram. Todas as páginas de todos os livros fecharam antes do fim do primeiro capítulo. E eu não me importei.
Eu não tenho conseguido comer. Me exercitar. Eu trabalho calado, no automático. Abandonei o cinema. Desde que o festival terminou, eu deixei de lado a minha paixão. A sensação é a de que o amor terminou assim que as luzes se acenderam. Terminou o amor. Algo urgente em mim perdeu a voz e eu não consegui reclamar. Como quem recebe um grande não e cai sentado diante da impossibilidade. Sem ação. Sem saber como agir. Enfraquecido por qualquer força superior, física ou não. Sem um objetivo novo para substituir o recém explodido. Diante de uma derrota particular, sem nenhuma imagem grandiosa baseada em comerciais de televisão. Quase resignado, se eu conseguisse. Sem raiva, sem direção, sem me importar, sem importância, sem querer parecer vítima ou carrasco. Eu não tenho conseguido vestir as fantasias mais tolas. Os desenhos mais óbvios que delimitam qualquer pessoa sem expectativa. Diante de um impasse fragmentado. Sem início meio ou fim. Um pedaço de vida e você que se resolva.
Então não estranhe que eu não responda o seu e-mail. Você pode superar, acredite. Nem toda carta necessita necessariamente de uma resposta, acredite também. Nem todo texto lindo, nem todo desabafo agoniado precisa de um feedback, acredite. Você deve saber que nem tudo precisa de um retorno imediato. Eu aprendi que escrever não esclarece a vida de ninguém, quando há ou não há um leitor. Aprendi te escrevendo a deixar de esperar por qualquer reação. Qualquer resposta, tímida ou extravagante. Compreendi entre uma palavra e outra que os efeitos das frases repercutiam, na verdade, em mim. Embora pareça uma descoberta óbvia, devo afirmar que ela é altamente significativa porque eu percebi, durante o silêncio, que eu ainda posso optar por me fazer compreender. Nem sempre eu consigo. Mas a tentativa é o que dá prazer. Então compreenda mais do que me critique, se crítica houver. Não há vilania em nenhum fato quando eu não estabeleço contato. Você há de superar. Acredite.
Na tentativa de finalmente tentar concluir, eu te escrevo sabendo que apenas te escrever, mais uma vez, não vai me salvar dessa sensação indelével do quase. Todo senão preso na garganta não se diluirá porque eu te escrevo. Talvez chamem de desencanto o avesso do que há. Ou quem sabe aprender novas palavras e o mesmo texto com outra roupagem eu produziria? Eu não tenho conseguido escrever. Ou falar sobre os assuntos que todas as pessoas falam o tempo todo. Eu não consigo mais obbservar a lógica em tudo o que eu faço. A falta de lógica de tudo o que eu não fiz. Feito um eremita das histórias em quadrinhos, que não dura nem vinte minutos. Feito um monte de clichês sem costura, absurdamente sem direçãom como quem procura por algo que, já sabemos, deve resultar em reticências. Na tentativa de tentar concluir, percebo que é vã e docemente sem êxito o quase esforço. Alguma coisa em mim não quer terminar. Alguma coisa em mim desaprendeu todo o início. Alguma coisa em mim abandonou o meio. Por agora, eu não passo de uma tentativa de suavizar outra tentativa mãe, que é a de ansiar por dias menos ordinários.
Depois de três noites abandonando o papel, eu me deparo com Alice. E ali, no invisível inexplicável, eu compreendo. A máquina parece estabelecer o sinal. Eu estendo os braços, mais uma vez. Leave and let die, eles cantam. Cometo o primeiro parágrafo. Marco uma cerveja. Vejo dois filmes inteiros. Inauguro o motel do bairro. Amanhã cedo eu faço as compras. Ainda há tempo. Ainda há. Eles não cortaram a minha cabeça. Ou o meu coração. E a loucura nunca foi tão saudável, amém.
Ontem quando eu fui almoçar, uma chuva torrencial caía no Centro. Eu saí do prédio e algumas pessoas se aglomeraram apenas para observar a chuva. O trânsito parou. Uma neblina forte desceu pelas calçadas e as pessoas pararam. Não houve tumulto. Ou buzinas esquizofrênicas. Não houve confusão. As pessoas perceberam que diante da chuva intensa e do vento forte não havia o que fazer. Me juntei ao coro e observei. Pensando que aquela hora do dia era um reflexo da minha incapacidade atual de não conseguir realizar. Eu deixei de me relacionar. Me desinteressei pela comunicação. Por toda a complexidade exaustiva da comunicação de todo relacionamento. Das responsabilidades excessivas, dos cuidados atenciosos, de toda satisfação subliminar que cruelmente, friamente perde todo o sentido quando a gente percebe que boa parte do todo foi encenado. Eu não consigo atuar. Por agora porque eu tenho ciência de tudo o que houve antes. Não respondo cartas. Não escrevo mais as palavras de sempre fora de ordem. Os filmes eu assisto um pouco hoje e termino qualquer dia desses. As minhas infinitas urgências se calaram. Todas as páginas de todos os livros fecharam antes do fim do primeiro capítulo. E eu não me importei.
Eu não tenho conseguido comer. Me exercitar. Eu trabalho calado, no automático. Abandonei o cinema. Desde que o festival terminou, eu deixei de lado a minha paixão. A sensação é a de que o amor terminou assim que as luzes se acenderam. Terminou o amor. Algo urgente em mim perdeu a voz e eu não consegui reclamar. Como quem recebe um grande não e cai sentado diante da impossibilidade. Sem ação. Sem saber como agir. Enfraquecido por qualquer força superior, física ou não. Sem um objetivo novo para substituir o recém explodido. Diante de uma derrota particular, sem nenhuma imagem grandiosa baseada em comerciais de televisão. Quase resignado, se eu conseguisse. Sem raiva, sem direção, sem me importar, sem importância, sem querer parecer vítima ou carrasco. Eu não tenho conseguido vestir as fantasias mais tolas. Os desenhos mais óbvios que delimitam qualquer pessoa sem expectativa. Diante de um impasse fragmentado. Sem início meio ou fim. Um pedaço de vida e você que se resolva.
Então não estranhe que eu não responda o seu e-mail. Você pode superar, acredite. Nem toda carta necessita necessariamente de uma resposta, acredite também. Nem todo texto lindo, nem todo desabafo agoniado precisa de um feedback, acredite. Você deve saber que nem tudo precisa de um retorno imediato. Eu aprendi que escrever não esclarece a vida de ninguém, quando há ou não há um leitor. Aprendi te escrevendo a deixar de esperar por qualquer reação. Qualquer resposta, tímida ou extravagante. Compreendi entre uma palavra e outra que os efeitos das frases repercutiam, na verdade, em mim. Embora pareça uma descoberta óbvia, devo afirmar que ela é altamente significativa porque eu percebi, durante o silêncio, que eu ainda posso optar por me fazer compreender. Nem sempre eu consigo. Mas a tentativa é o que dá prazer. Então compreenda mais do que me critique, se crítica houver. Não há vilania em nenhum fato quando eu não estabeleço contato. Você há de superar. Acredite.
Na tentativa de finalmente tentar concluir, eu te escrevo sabendo que apenas te escrever, mais uma vez, não vai me salvar dessa sensação indelével do quase. Todo senão preso na garganta não se diluirá porque eu te escrevo. Talvez chamem de desencanto o avesso do que há. Ou quem sabe aprender novas palavras e o mesmo texto com outra roupagem eu produziria? Eu não tenho conseguido escrever. Ou falar sobre os assuntos que todas as pessoas falam o tempo todo. Eu não consigo mais obbservar a lógica em tudo o que eu faço. A falta de lógica de tudo o que eu não fiz. Feito um eremita das histórias em quadrinhos, que não dura nem vinte minutos. Feito um monte de clichês sem costura, absurdamente sem direçãom como quem procura por algo que, já sabemos, deve resultar em reticências. Na tentativa de tentar concluir, percebo que é vã e docemente sem êxito o quase esforço. Alguma coisa em mim não quer terminar. Alguma coisa em mim desaprendeu todo o início. Alguma coisa em mim abandonou o meio. Por agora, eu não passo de uma tentativa de suavizar outra tentativa mãe, que é a de ansiar por dias menos ordinários.
Depois de três noites abandonando o papel, eu me deparo com Alice. E ali, no invisível inexplicável, eu compreendo. A máquina parece estabelecer o sinal. Eu estendo os braços, mais uma vez. Leave and let die, eles cantam. Cometo o primeiro parágrafo. Marco uma cerveja. Vejo dois filmes inteiros. Inauguro o motel do bairro. Amanhã cedo eu faço as compras. Ainda há tempo. Ainda há. Eles não cortaram a minha cabeça. Ou o meu coração. E a loucura nunca foi tão saudável, amém.