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sexta-feira, novembro 28, 2008



ALICE
de Karim Aïnouz

Eu não tenho conseguido um monte de coisas. Se alguma concordância houvesse, você me pediria para enumerar todas essas coisas. Mas como estou no meio de uma caminhada verdadeiramente inesperada, não há você por perto de onde eu observo. Parece uma figura de linguagem qualquer, daquelas que colocam o indivíduo no meio de uma paisagem vazia sem ninguém no quadro e a gente entende o recado de que toda solidão é de todo homem e suspira. Eu não suspiro mais. Eu não tenho conseguido. E no quadro do qual eu faço parte, a cidade está lotada. Existe gente por todo o canto. Dentro do metrô, saindo e entrando de lugares com extrema urgência de existir. E eu não sei mais como é que se deixa alguém entrar. Eu perdi os caminhos. Esqueci dos procedimentos. Eu não consigo mais me relacionar. A geografia dos espaços onde eu transito é quadrada. Não existem curvas. Nada se arredonda. Tudo é reto e claramente objetivo. Como um labirinto. Que não me deixa mais dormir. De todas as coisas que eu não tenho conseguido, dormir certamente é a que mais me faz falta. Naturalmente é também a que altera qualquer atividade que eu sinta o desejo de realizar.

Ontem quando eu fui almoçar, uma chuva torrencial caía no Centro. Eu saí do prédio e algumas pessoas se aglomeraram apenas para observar a chuva. O trânsito parou. Uma neblina forte desceu pelas calçadas e as pessoas pararam. Não houve tumulto. Ou buzinas esquizofrênicas. Não houve confusão. As pessoas perceberam que diante da chuva intensa e do vento forte não havia o que fazer. Me juntei ao coro e observei. Pensando que aquela hora do dia era um reflexo da minha incapacidade atual de não conseguir realizar. Eu deixei de me relacionar. Me desinteressei pela comunicação. Por toda a complexidade exaustiva da comunicação de todo relacionamento. Das responsabilidades excessivas, dos cuidados atenciosos, de toda satisfação subliminar que cruelmente, friamente perde todo o sentido quando a gente percebe que boa parte do todo foi encenado. Eu não consigo atuar. Por agora porque eu tenho ciência de tudo o que houve antes. Não respondo cartas. Não escrevo mais as palavras de sempre fora de ordem. Os filmes eu assisto um pouco hoje e termino qualquer dia desses. As minhas infinitas urgências se calaram. Todas as páginas de todos os livros fecharam antes do fim do primeiro capítulo. E eu não me importei.

Eu não tenho conseguido comer. Me exercitar. Eu trabalho calado, no automático. Abandonei o cinema. Desde que o festival terminou, eu deixei de lado a minha paixão. A sensação é a de que o amor terminou assim que as luzes se acenderam. Terminou o amor. Algo urgente em mim perdeu a voz e eu não consegui reclamar. Como quem recebe um grande não e cai sentado diante da impossibilidade. Sem ação. Sem saber como agir. Enfraquecido por qualquer força superior, física ou não. Sem um objetivo novo para substituir o recém explodido. Diante de uma derrota particular, sem nenhuma imagem grandiosa baseada em comerciais de televisão. Quase resignado, se eu conseguisse. Sem raiva, sem direção, sem me importar, sem importância, sem querer parecer vítima ou carrasco. Eu não tenho conseguido vestir as fantasias mais tolas. Os desenhos mais óbvios que delimitam qualquer pessoa sem expectativa. Diante de um impasse fragmentado. Sem início meio ou fim. Um pedaço de vida e você que se resolva.

Então não estranhe que eu não responda o seu e-mail. Você pode superar, acredite. Nem toda carta necessita necessariamente de uma resposta, acredite também. Nem todo texto lindo, nem todo desabafo agoniado precisa de um feedback, acredite. Você deve saber que nem tudo precisa de um retorno imediato. Eu aprendi que escrever não esclarece a vida de ninguém, quando há ou não há um leitor. Aprendi te escrevendo a deixar de esperar por qualquer reação. Qualquer resposta, tímida ou extravagante. Compreendi entre uma palavra e outra que os efeitos das frases repercutiam, na verdade, em mim. Embora pareça uma descoberta óbvia, devo afirmar que ela é altamente significativa porque eu percebi, durante o silêncio, que eu ainda posso optar por me fazer compreender. Nem sempre eu consigo. Mas a tentativa é o que dá prazer. Então compreenda mais do que me critique, se crítica houver. Não há vilania em nenhum fato quando eu não estabeleço contato. Você há de superar. Acredite.

Na tentativa de finalmente tentar concluir, eu te escrevo sabendo que apenas te escrever, mais uma vez, não vai me salvar dessa sensação indelével do quase. Todo senão preso na garganta não se diluirá porque eu te escrevo. Talvez chamem de desencanto o avesso do que há. Ou quem sabe aprender novas palavras e o mesmo texto com outra roupagem eu produziria? Eu não tenho conseguido escrever. Ou falar sobre os assuntos que todas as pessoas falam o tempo todo. Eu não consigo mais obbservar a lógica em tudo o que eu faço. A falta de lógica de tudo o que eu não fiz. Feito um eremita das histórias em quadrinhos, que não dura nem vinte minutos. Feito um monte de clichês sem costura, absurdamente sem direçãom como quem procura por algo que, já sabemos, deve resultar em reticências. Na tentativa de tentar concluir, percebo que é vã e docemente sem êxito o quase esforço. Alguma coisa em mim não quer terminar. Alguma coisa em mim desaprendeu todo o início. Alguma coisa em mim abandonou o meio. Por agora, eu não passo de uma tentativa de suavizar outra tentativa mãe, que é a de ansiar por dias menos ordinários.

Depois de três noites abandonando o papel, eu me deparo com Alice. E ali, no invisível inexplicável, eu compreendo. A máquina parece estabelecer o sinal. Eu estendo os braços, mais uma vez. Leave and let die, eles cantam. Cometo o primeiro parágrafo. Marco uma cerveja. Vejo dois filmes inteiros. Inauguro o motel do bairro. Amanhã cedo eu faço as compras. Ainda há tempo. Ainda há. Eles não cortaram a minha cabeça. Ou o meu coração. E a loucura nunca foi tão saudável, amém.

segunda-feira, novembro 17, 2008



MADRUGADA DOS MORTOS de Zack Snyder


Era sábado. Passava das duas da manhã e a cidade, por incrível que pareça estava silenciosa. Ele acordou no repente. Acordou como quem acorda atrasado. Como quem acorda no susto, atrasado para algum compromisso. Não havia compromisso. Apenas dormira assistindo televisão e não viu a tarde cair, não viu a noite começar. Não viu a madrugada avançar. Até que despertou. Do oitavo andar, ele fumava o seu cigarro e observava as luzes ao longe. A ausência de carros nas ruas. Os poucos que caminhavam em direções diversas. Existe muita gente por aí, ele pensou. A secretária eletrônica apitou e ele foi ouvir o único recado armazenado de todo o tempo que passou dormindo.

- Me liga quando você chegar. Eu quero ler um lance. Hoje não parece sábado. A cidade está com um clima diferente. Parece vazia. Meio filme de zumbi. Vazia. À espera de um ataque. Me liga.

Pegou o telefone e foi para a janela. Sem se importar com o horário. Certo de que, ao discar, do outro lado, seria recebido.

- Eu caí no sono.
- Pensei que estivesse com alguém.
- Ninguém. Sono mesmo. Acumulado.
- Já viu algum zumbi da tua janela?
- Ainda não. Vi um bêbado caindo na sarjeta.
- O céu está meio vermelho. E esse silêncio. Parece Silent Hill.
- Esse eu não vi.
- Era um jogo de videogame que virou filme.
- Que ótimo.
- Mistura de horror, ficção científica e elementos dramáticos.
- Parece bom.
- Encontrei um texto seu que eu adoro. Antigo. Quero ler.
- Tudo bem.
- Deixa eu pegar.

Uma chuva muito fina começou a cair enquanto ele esperava. O céu realmente parecia vermelho. Definitivamente, a cidade não estava em um dia comum. A agitação típica dava lugar a espaços vazios. O trânsito e suas buzinas incontroláveis cediam o espaço para as ruas molhadas e curvas quase perigosas. As pessoas gargalhando alto e correndo para as suas festas imperdíveis hoje resolveram fazer greve. O que se via, do alto e de qualquer outro plano, eram poucos transeuntes, sem destino e sem urgência. No mínimo, curioso.

- Eu permito. Sem considerar nenhum outro desejo que não o de agora. Sem considerar nenhum passado entre nós ou qualquer possibilidade de futuro. Permito. Entrego confiando nos teus olhos todos os passos que nos permitimos até aqui. Onde zeramos nosso antes e interrogamos o nosso depois. Aqui eu tiro a roupa dos dias e exijo a tua nudez de homem e o vermelho da tua boca, a maciez da tua pele, os pêlos na desordem do corpo, os traços e volumes e os músculos e nós. Nós, a soma do eu e do tu. O plural, transbordando o copo, o olhar duplicado, as diferenças, a vida comum refletida pelo espelho dos olhos do outro, o elo de qual ligação nos deu o laço de qual sapato, de qual coração vagabundo leviano estamos falando? Eu permito. Sabendo de tudo o que eu sei até aqui e ignorando essa trajetória para começar um novo começo. Porque é preciso desaprender de quando em quando, zerar para uma nova temporada, limpar a pista para um novo desfile, cada pessoa é um novo começo. Não pense que não. Tenho a soma dos teus olhos nos meus, a soma da tua barba na minha e todo o embolar de cabelos e sons, desde quando o sexo é tão bom e confortável e dura tanto e não deve ter fim e fodam-se as convenções e os papais-mamães e todas as transas sem amor porque para compreender o que é invadir o corpo do outro é preciso amar e desejar tão intensamente sem ter que pedir licença para entrar, sem se sentir constrangido para explodir séculos e vidas dentro do universo e da intimidade e da história do outro. Entre. Eu permito. Eu desejo. Eu exijo a tua brutalidade sem que queiras me impressionar, apenas satisfazer nossos silêncios. De olhos nos olhos e corpos nos corpos, deslizar de abismos, selvageria de estranhos íntimos.
- Terminou?
- É uma folha de caderno, escrita a lápis.
- Achei brega. Essa parte sexual, além de óbvia é de mau gosto. Não acha?
- Acho lindo. Você não lembra desse texto?
- Lembro do ‘eu permito’ que a Daiana gostava. Ela adotou esse texto por um tempo.
- Começou a chover por aí?
- Bem fininho.
- Chuva de sangue. Esse céu tão vermelho.
- Hoje em dia seria ‘eu não permito’. Ou ‘eu não estou com vontade’. Ou ainda um ‘me deixa em paz no meu canto’. Você está numa vibe Zé do Caixão hoje, não está?
- As minhas unhas estão bem cortadas.
- Não gosto do texto.
- Eu gosto. Você quer que eu te mande?
- Não. A parte boa é que ele me mostra que com o tempo, a gente muda o olhar sobre algumas especificidades.
- Ainda assim, acho válido.
- Acho que eu cansei da permissividade. De dizer sim. Amém. De deixar o outro chegar tomando o espaço. Cansei dessa invasão de propriedade. A gente se deixa apropriar e depois se fode. Em algum momento, a gente se fode.
- Mas é melhor do que não se deixar penetrar. Muito melhor do que viver cercado pelas paredes do apartamento. Sem envolvimento. Sem contato com o mundo real. Envolvido com as pessoas só para trocar estímulos sexuais. Descartável. Inteiramente descartável.
- Bela crítica. Você poderia ter evitado a baboseira da desculpa do texto e ter começado logo no ‘alô’ as suas idéias brilhantes sobre quem você acha que eu sou.
- Você mudou.
- Eu não mudei. Só cansei. Enchi o saco de vampiro que só quer sugar o que há de bom e depois me deixar. Essa metáfora deve te agradar.
- Não. Você sempre quebra a cara porque procura o inacessível.
- Não.
- Gosta de homens impossíveis.
- Não
- Relações inalcançáveis. Você tem essa sede de querer bater a cara na parede para tentar ir além. Só que o além não existe.
- Qual é? Tratamento de choque? Sessão de análise as duas da madrugada?
- Antes dos zumbis atacarem.
- Vou continuar o meu filme.
- Vai fugir mais uma vez.
- Não vou. Você ta sempre atrás de uma conversa inacabada. Sempre perseguindo assuntos suspensos. A notícia é que as coisas às vezes não prosseguem. Elas têm início, meio e fim ou muitas vezes nem isso e a gente não percebe. Não precisa concluir. Não precisa continuar. Espocam, feitos uns flashes e pronto. Ali aconteceram e bola pra frente. Nem tudo precisa ser uma tese, caro amigo. Você tem passado muito tempo dando aula.
- Alfinetadas e mais alfinetadas. Espero que não surja um vencedor.
- Não. Eu vou voltar para o meu filme. Se algum zumbi aparecer, me liga.
- Se ele me deixar vivo.
- Ele não mataria alguém da própria espécie.

Voltou para o filme e dormiu antes de terminar. Mais uma vez. Quando acordou, o domingo era de sol. O céu azul. As janelas abertas. A rua movimentada. Ambulantes, pessoas, carros nas ruas, ônibus, confusão. Sentiu saudade desse caos urbano. Abriu um sorriso. Despertou cedo, preparou um café reforçado, ligou o aparelho de som, fez a barba e foi para a praia. A vida, enfim, voltava a entrar e a sair pelas portas do apartamento.


(Publicado na coluna Depois do Filme da Revista Paradoxo)

quarta-feira, novembro 05, 2008



MISTER LONELY de Harmony Korine

“Estamos, meu bem, por um triz
pro dia nascer feliz”
(Frejat/Cazuza)

Dançaram boa parte da madrugada. Não se conheciam muito bem. Ficou apenas a impressão simpática do primeiro encontro semanas antes na casa de uma amiga em comum. Ela se encantou de imediato. Ele não percebeu nada além da simpatia. Talvez porque estivesse saindo de uma relação inacabada e não percebesse ao redor qualquer atenção extra. Qualquer intenção, camuflada ou não. Talvez porque desde algum tempo tenha deixado de lado a sedução gratuita de carioca e tenha optado, sem grandes questões universais, sem maior complexidade, apenas conhecer as pessoas. Socializar. Sem fins de cama, transas selvagens, manhãs constrangedoras.

Partiu dela o movimento. E ele não estranhou a ligação. Ela se identificou. Ele de imediato lembrou e disse sim. Provavelmente por impulso, mas ele disse sim e um sim abre as portas e libera o acesso – monitorado ou não. Um sim é um sorriso que permite sabe-se lá o que. Trocaram informações mais objetivas: telefones particulares, endereço, fragmentos para que se sentissem mais seguros. Mais reais. Ele iria direto do trabalho, então desceu alguns andares do edifício movimentado onde diariamente ele bate o ponto, entrou na loja de sempre e comprou uma camisa nova. Branca, com gola em vê. Clássica, com jeans e sapato.

No meio da tarde ele discou e ela atendeu apreensiva, imaginando que ele ia desistir, que ia inventar qualquer desculpa, que ele pensou melhor e viu que era uma grande besteira sair com ela, que ela não era tão interessante assim.

- Eu queria te fazer uma outra proposta – ele disse calmamente.

Que esse corte de cabelo não me caiu bem. Que ele deve ter conversado com algum ex-namorado meu. Que ele deve ter pesquisado o meu nome no google e viu que eu sou advogada. Que ele vai dizer que se enganou e me confundiu com outra. Que ele vai começar um discurso sobre o relacionamento que não deu certo. Que ele vai me dizer que vai cuidar do cachorro, das plantas, do apartamento.

Que ele vai me dizer que me ama e que cansou da solidão.

- Faça – automática e preparada para o pior.
- Vamos cancelar o cinema?

Silêncio absoluto de três segundos para ele. Três gerações centenárias, para ela.

- A gente cancela o cinema. Eu queria te convidar para dançar. Me deu muita vontade de dançar. Um amigo está tocando em Ipanema. Anos setenta, boa bebida, boa comida.
- Que horas você me pega?
- Às nove.

Ele chegou pontualmente e abriu a porta do carro para que ela entrasse. Trocaram um beijo no rosto e sentiram o perfume um do outro. Era agradável para ele. Era agradável para ela. Ele usava um blazer preto, aberto, por cima da camisa branca. Ela optou por um vestido bem solto, vinho, a saia bem rodada. A roupa que ela usava encaixava com os tons das roupas dele. Ambos estavam elegantes, esbanjando simplicidade. Ela elogiou a trilha sonora que ele ouvia, ao dirigir. Ele disse que sem música não há solução. Ela sorriu. Não arriscaram nenhum assunto maiúsculo. Mas o trivial era naturalmente agradável. E ambos estavam perfeitamente tranqüilos. Como pessoas que se fazem companhia. Sem urgência, sem alarme, sem estupidez.

- Fiquei feliz que você aceitou o meu convite para dançar.
- Eu adoro dançar.
- Cinema eu também adoro. Mas parar a tua vida para assistir um filme, exige uma atenção especial. E hoje, você sabe...
- Eu sei.

Conversaram sobre música, sobre os filmes, os bares, a vozes e os bichos de estimação. A cidade exigia que o carro fizesse suas curvas. E ele fazia. Sinalizava o verde e o vermelho. E eles respeitavam. Dançaram boa parte da madrugada. E foi bom.

No final de tudo, eles abandonaram a pista de dança. Com fome, eles conversavam animados na padaria movimentada, em uma esquina de Ipanema. Ela, um queijo quente. Ele, pão de queijo. Ambos, suco de laranja. Até que ela, puro impulso destemido, ajeitou o cabelo dele, o prendendo atrás da orelha. Estendeu o carinho e abriu as mãos, sentindo a sua barba macia. Ele retribuiu com o olhar também macio. A conversa continuou, o carinho também. Ela percorria os dedos pelos cabelos dele. Um quase cafuné. Ele acariciava com o polegar o seu pulso branco, brincando de contar os batimentos, médico de araque.

Pela primeira vez, eles perceberam.

- Eu preciso te dizer um monte de coisas antes ...
- Antes de?
- É que eu preciso te contar...
- Por que é que a gente sempre faz dessa maneira? Nós não precisamos nos informar nada. Os amores de antes, as dores de ontem, as grandes decepções, as angústias. Eu não preciso saber. Você não precisa me contar. Eu não devo te contar. Você não precisa saber. Por que é que o amor precisa ser sempre essa obrigação? Históricos, currículos, uma série de fatos que a gente precisa tomar ciência. E para onde vai tudo isso? Fica tudo mais legítimo quando a gente sabe exatamente de cada detalhe, de cada informação minúscula? Você só precisa me contar quais os seus planos para essa manhã. Só.
- Não tenho compromisso.
- Ótimo. Nós vamos ver o sol nascer no Arpoador.

Quando o sol nasceu, algum afeto novo também nasceu junto. O céu ganhou um azul muito claro, quase branco. O movimento das ruas começou a despertar a cidade. As pessoas, os carros, o barulho de mais um dia começando e duas vidas abraçadas, se protegendo do vento, sobre as pedras do Arpoador. Dois indivíduos repletos de passado, de pessoas, de grandes momentos, abraçados, se protegendo de tudo o que houve. Aguardando e apostando no que virá. Quando o sol nasceu, o Obama já era presidente dos Estados Unidos. O mundo também faz grandes apostas. E ela se sentia mais mulher e mais intensa. E ele se sentia mais bonito e mais adulto. Essa beleza não tinha motivos unicamente estéticos. Era uma beleza além. De poder suspirar e acreditar que existe alguém ao redor para abraçar. E isso é mais do que bonito.

segunda-feira, novembro 03, 2008



A CULPA É DO FIDEL de Julie Gavras

“ A vida é simplesmente desse jeito, aos cacos,
e sou louca de esperar por outra coisa”.
(Miranda July/ Majestade)


Eu me lembro de você pelos menores momentos. E isso é curioso porque a gente sempre enfatiza os grandes acontecimentos. A gente sempre tece com os melhores fios o que a gente julga importante. Besteira. Porque depois a gente entende que basta alguém te tocar o braço com as mãos fechadas, que lá vem você. Ou a gente repara a etiqueta de uma camisa qualquer e lembra da sua irritação constante. E você vem. Ou o cheiro do sabonete. Ou as mãos daquele ator tal. E você há de vir.

Eu penso em todas as histórias que eu te ouvi contar e no meu patético desejo de querer fazer parte de cada uma delas. Eu virei ouvinte. Testemunha auditiva da tua existência. Um voyeur. Se eu não me movimentar, se permanecermos assim, eu corro um grande risco de te odiar um tanto mais. E te odiando, tudo o que é humano em mim vai no mesmo ritmo, mofar. Eu me transformo em alguém mais triste do que o esperado. Alguém mais óbvio do que o aguardado. Um clichê.

Eu acredito que solidão é um bicho que se cria. A gente alimenta tanto que depois não faz sentido se lamentar. Ou tentar justificar com aquele papo de preciso de um momento íntimo-meu-intransferível-me-deixa-em-paz. Então o próximo passo é o silêncio. E se no silêncio, se na ausência física ou verbal, a gente se compreende menos, se a gente se desgosta mais, então o prazo de validade se perdeu e a gente nem sentiu. Como é que a gente deixa de querer saber o que a gente sempre soube? Como é que se aprende um novo jeito?

Você não é mais a minha pessoa favorita. Eu nunca fui a sua. Você sempre me disse tudo o que eu poderia saber. Eu investi atenção demais nas suas mentiras. Também nas suas verdades. Você nunca me deixou mentir. Eu acreditei. Eu sempre quis acreditar que eu era alguém para quem você corria nos melhores e nos piores momentos. Eu não sei se eu fui. Porque eu sempre me mantive atento para poder estar presente durante esses momentos. Eu não sei mais. Eu não sou mais. Tudo o que eu preciso é conseguir dormir. Sem você.

Eu sempre me assusto muito mais com o teu silêncio. Ele sintetiza com muita propriedade tudo o que a gente não gostaria de saber. E a gente sabe. Eu sou do tipo italiano que fala trinta frases, bate a porta, grita palavrões e depois pede desculpas. Eu não sei reagir a reticências. Eu não sei revidar quietude. Eu não consigo encarar indiferença. Algo em mim perde a força quando há ausência. De som, de palavras, de qualquer afeto, de qualquer natureza viva. O teu silêncio é uma reunião de alfinetes que me doem fisicamente. Eu sinto dor e isso é foda.

Eu não vou te pedir para que volte. Eu não quero retornar também. Isso não é descaso. Eu preservo todo o antigamente. Isso são só os fatos e alguma coisa que eu não sei o que é, mas que é necessário, nesse momento, para que eu descubra como conseguir. Isso não é abandono. Eu já abandonei. Já fui abandonado. E o mundo não terminou. Não vai terminar porque a gente deixou de se querer. De se entender. De se comprometer. De se salvar. A gente se deixou. É isso. A gente se deixou partir.

Eu procuro motivos, esvazio armários, listo justificativas. O irônico é que eu consigo encontrar. Todos eles. Cada um. E não me dói. Não estou anestesiado, saiba. Eu não me acostumei. E também não houve tantas experiências ao longo dos anos. Tudo o que existe é essa natureza morta. Tudo o que há é alguma coisa em mim que deixou de pulsar. Que deixou de querer. Que deixou de urgir. Essas palavras talvez sejam um último sopro. Um suspiro elegante de um adeus sempre anunciado, nunca pretendido. A gente nunca começa querendo terminar. A gente só quer aproveitar o tempo. E fazer valer.

No fundo, a gente não passa de dois moleques que não perceberam a barba crescer. E isso é lindo. E isso é feio demais.

(Publicado na coluna Depois do Filme da Revista Paradoxo)