OS SONHADORES de Bernardo Berolucci
- O que eu quero te dizer é que é um movimento muito particular. É um movimento íntimo, vamos partir desse princípio. Sendo íntimo, funciona de maneira específica para cada um, então não existe uma verdade absoluta em nada do que eu te disser. Porque eu falo por mim. Eu. Sendo assim, eu posso me arriscar e agir e reagir e mudar a opinião. Adotar um novo ponto-de-vista. Sabe que ontem eu fui rever Os Sonhadores, que é um filme do Bertolucci que eu tenho muito carinho e a sensação que eu tive foi completamente diferente de quando vi o filme pela primeira vez. A Eva Green continua maravilhosa. O pau do Michael Pitt continua lindo. A bunda do Louis Garrel também. Mas a percepção faz isso com a gente. Nos pega de surpresa e de repente, nos desperta uma série de miudezas que antes não estavam lá. Que antes não fomos capazes de observar. Que antes, de repente, nem existia, mas que só após o segundo olhar (ou terceiro, etc) aquele filme, aquele momento se abriu para você e potencializou uma série de sensações que você sequer tinha ciência. Você me entende?
- Um pouco. Mas não consigo entender o que você viu de tão especial em Os Sonhadores. É um filme tão raso.
- Que você tenha uma opinião, eu respeito. Mas não seja escroto porque você está falando de um filme muito especial para mim.
- Ainda tem bebida?
- Sério, cara. Você tem essa facilidade de bombardear tudo o que eu gosto. Você faz críticas muito severas e não tem o menor carinho pela minha opinião. Como se o teu desprezo, o teu vasto conhecimento e todos os livros que você já leu, te colocassem em uma situação superior. Então você joga água fria e que se foda o que eu penso.
- Você bebeu demais.
- Não, eu não bebi. E se quer saber, eu cansei dessa tua maneira primária de justificar toda tentativa de conversa com um ‘você bebeu demais’, ‘você fumou demais’ ou ‘você está muito cansado’.
- Acho melhor a gente ir embora.
- Se você quiser ir, boa noite. Eu fico.
- Certo, então ficamos.
- Eu te falei que encontrei com o Dedé. Dezesseis anos depois. Porra, o quanto isso mexeu comigo. O quanto me revirou a memória, as lembranças de uma época onde tudo era tão urgente, tão definitivo, tão mais jovem. Te contei o quanto esse encontro me lançou questões.
- Você deveria ter estudado filosofia.
- É sobre isso o que eu estou falando.
- Ou psicologia.
- Toda vez que eu me abro, toda vez que eu me aproximo de você e falo sobre qualquer assunto, você me ironiza. Eu mudei o meu olhar sobre você. Como aconteceu com o filme. Com a diferença de que essa mudança te esvazia, como se você se esvaísse de um outro você que era tão mais vivo. Tão mais atento. Atencioso.
- Ainda não entendi a pauta da conversa.
- Acho que seria saudável se a gente pudesse dar um tempo.
- Um tempo de?
- Disso, dessa relação estranha. Sádica, de balas perdidas.
- Você deve saber que nós não somos necessariamente um casal.
- Outro assunto que me incomoda, porque depois de todo esse tempo, eu não sei o que nós somos. Amigos que fazem sexo regularmente? Medrosos demais para assumir uma relação? Ou pior, companhia um para o outro, na esperança de que alguém melhor cruze o caminho?
- Por que você tem essa necessidade de tentar entender tudo?
- Porque eu tenho um cérebro que funciona perfeitamente!
- Nós somos o que somos. Mania de querer etiquetar o universo.
- Não existe sensação pior do que sentir que a gente perdeu o tempo. Desperdiçou.
- Essa é a sensação que você tem?
- Sincera e infelizmente, sim. A gente matou o tempo precioso se adequando a uma situação pouco sustentável. No início ainda tem o frescor de um mistério. A gente não dá nome aos bois, mas segue adiante. Com a esperança de que a névoa vai passar depois de um tempo.
- Você usa metáforas demais.
- E me faço entender.
- Quais os seus planos, então?
- Eu gosto de você. Gosto tanto. Você tem esse péssimo humor charmoso. Você odeia as crianças, eu acho isso tão autêntico. Eu nunca conheci ninguém que não gostasse de crianças. As mãos mais bonitas que eu já vi, você tem. A tua formação, tudo o que você já leu e escreveu sobre, eu acho tão admirável. A gente se entende de longe. Nós amamos bossa-nova. Ninguém canta Lígia melhor do que você, especialmente ‘e quando você me envolver nos seus braços serenos / eu vou me render mas seus olhos morenos / Me metem mais medo que um raio de sol’. Eu adoro a sua voz. Só que a gente se acostumou... A gente se... Vou tentar não usar metáfora. A gente se acostumou a uma não definição. Um quase namoro. Uma quase vida a dois. Um quase compromisso de dois quase amigos que quase se preocupam um com o outro e quase se cuidam e quase não discutem. Nós dois somos um quase. E quando eu penso em você, eu fico um tanto indignado porque a gente viveu todo esse tempo acomodados por essa sensação sem brisa. Esse sentimento sem nome estacionado, que não se define não pelo mistério, mas por falta de consistência. Por falta de gana.
- Eu não queria ter essa conversa hoje.
- Já estamos conversando. Eu sou essa montanha-russa de palavras e eu preciso desabafar. Preciso te olhar nos olhos e dizer tudo o que me incomoda, tudo o que me sufoca. Mesmo que não seja o melhor lugar, o melhor momento, mesmo que você se recuse a ouvir.
- Prometo que amanhã...
- Amanhã sou eu. Consciente e caminhando pelas ruas da cidade sem a idéia de que havia amor numa história sem amor. Amanhã é você seguindo com a tua vida, provavelmente aliviado porque a gente ousou romper a inércia cômoda da vida sem sentido que a gente sempre levou. Não existe nobreza em romper. Existe um tanto de coragem e uma feroz vontade de movimentar as questões. De se olhar no espelho e se estapear o rosto na tentativa de quebrar a hipnose da inaptidão.
- Você está falando sozinho. Eu não quero ouvir você discursar agora.
- Amanhã é ano novo. E embora eu recuse esse discurso do comércio de que a vida se renova e a esperança etc e tal, amanhã é vida nova. Para nós dois. E se você não quer mais me ouvir hoje, você não vai mais me ouvir nenhum outro dia. Porque a gente encerra o entrave aqui. Com o rosto apontado para o que há de vir. Há de vir. Há. Se a gente se acomoda, alguma parte apaga as luzes. Perde o movimento. Morre um pouco. Se a gente não se incomoda com a inércia, se a gente deixa de lado e sequer pensa nela, então a gente deixou de se amar. E isso é grave. E isso é urgente. E requer um esforço muito maior do que se imagina. É muito mais difícil romper a estagnação do que se deixar levar por ela.
- Eu já entendi o teu recado. Você não precisa se repetir.
- Você não precisa ser hostil. Eu não estou sendo agressivo. Eu tento compartilhar essa percepção. Ela é íntima e nos envolve e nos determina também.
- Eu sinto muito.
- Eu também.
- Você fica?
- Mais uma bebida.
- Eu vou indo.
- Certo. Fique bem.
- Escuta, Os Sonhadores não é tão raso assim.
- Eu sei. Me deu uma saudade de arriscar. De viver o momento, sabe? Sem equilibrar tanto os pratos, sem estar tão atento ao redor para que a gente não se atinja com os estilhaços alheios. Me deu saudade de ter dezoito anos. De não ter hora para acontecer. Não ter feridas tão latentes. Ser mais intenso. Entende?
- Entendo.
- Dirija com cuidado.
- Feliz Aniversário.
- Obrigado.
- Um pouco. Mas não consigo entender o que você viu de tão especial em Os Sonhadores. É um filme tão raso.
- Que você tenha uma opinião, eu respeito. Mas não seja escroto porque você está falando de um filme muito especial para mim.
- Ainda tem bebida?
- Sério, cara. Você tem essa facilidade de bombardear tudo o que eu gosto. Você faz críticas muito severas e não tem o menor carinho pela minha opinião. Como se o teu desprezo, o teu vasto conhecimento e todos os livros que você já leu, te colocassem em uma situação superior. Então você joga água fria e que se foda o que eu penso.
- Você bebeu demais.
- Não, eu não bebi. E se quer saber, eu cansei dessa tua maneira primária de justificar toda tentativa de conversa com um ‘você bebeu demais’, ‘você fumou demais’ ou ‘você está muito cansado’.
- Acho melhor a gente ir embora.
- Se você quiser ir, boa noite. Eu fico.
- Certo, então ficamos.
- Eu te falei que encontrei com o Dedé. Dezesseis anos depois. Porra, o quanto isso mexeu comigo. O quanto me revirou a memória, as lembranças de uma época onde tudo era tão urgente, tão definitivo, tão mais jovem. Te contei o quanto esse encontro me lançou questões.
- Você deveria ter estudado filosofia.
- É sobre isso o que eu estou falando.
- Ou psicologia.
- Toda vez que eu me abro, toda vez que eu me aproximo de você e falo sobre qualquer assunto, você me ironiza. Eu mudei o meu olhar sobre você. Como aconteceu com o filme. Com a diferença de que essa mudança te esvazia, como se você se esvaísse de um outro você que era tão mais vivo. Tão mais atento. Atencioso.
- Ainda não entendi a pauta da conversa.
- Acho que seria saudável se a gente pudesse dar um tempo.
- Um tempo de?
- Disso, dessa relação estranha. Sádica, de balas perdidas.
- Você deve saber que nós não somos necessariamente um casal.
- Outro assunto que me incomoda, porque depois de todo esse tempo, eu não sei o que nós somos. Amigos que fazem sexo regularmente? Medrosos demais para assumir uma relação? Ou pior, companhia um para o outro, na esperança de que alguém melhor cruze o caminho?
- Por que você tem essa necessidade de tentar entender tudo?
- Porque eu tenho um cérebro que funciona perfeitamente!
- Nós somos o que somos. Mania de querer etiquetar o universo.
- Não existe sensação pior do que sentir que a gente perdeu o tempo. Desperdiçou.
- Essa é a sensação que você tem?
- Sincera e infelizmente, sim. A gente matou o tempo precioso se adequando a uma situação pouco sustentável. No início ainda tem o frescor de um mistério. A gente não dá nome aos bois, mas segue adiante. Com a esperança de que a névoa vai passar depois de um tempo.
- Você usa metáforas demais.
- E me faço entender.
- Quais os seus planos, então?
- Eu gosto de você. Gosto tanto. Você tem esse péssimo humor charmoso. Você odeia as crianças, eu acho isso tão autêntico. Eu nunca conheci ninguém que não gostasse de crianças. As mãos mais bonitas que eu já vi, você tem. A tua formação, tudo o que você já leu e escreveu sobre, eu acho tão admirável. A gente se entende de longe. Nós amamos bossa-nova. Ninguém canta Lígia melhor do que você, especialmente ‘e quando você me envolver nos seus braços serenos / eu vou me render mas seus olhos morenos / Me metem mais medo que um raio de sol’. Eu adoro a sua voz. Só que a gente se acostumou... A gente se... Vou tentar não usar metáfora. A gente se acostumou a uma não definição. Um quase namoro. Uma quase vida a dois. Um quase compromisso de dois quase amigos que quase se preocupam um com o outro e quase se cuidam e quase não discutem. Nós dois somos um quase. E quando eu penso em você, eu fico um tanto indignado porque a gente viveu todo esse tempo acomodados por essa sensação sem brisa. Esse sentimento sem nome estacionado, que não se define não pelo mistério, mas por falta de consistência. Por falta de gana.
- Eu não queria ter essa conversa hoje.
- Já estamos conversando. Eu sou essa montanha-russa de palavras e eu preciso desabafar. Preciso te olhar nos olhos e dizer tudo o que me incomoda, tudo o que me sufoca. Mesmo que não seja o melhor lugar, o melhor momento, mesmo que você se recuse a ouvir.
- Prometo que amanhã...
- Amanhã sou eu. Consciente e caminhando pelas ruas da cidade sem a idéia de que havia amor numa história sem amor. Amanhã é você seguindo com a tua vida, provavelmente aliviado porque a gente ousou romper a inércia cômoda da vida sem sentido que a gente sempre levou. Não existe nobreza em romper. Existe um tanto de coragem e uma feroz vontade de movimentar as questões. De se olhar no espelho e se estapear o rosto na tentativa de quebrar a hipnose da inaptidão.
- Você está falando sozinho. Eu não quero ouvir você discursar agora.
- Amanhã é ano novo. E embora eu recuse esse discurso do comércio de que a vida se renova e a esperança etc e tal, amanhã é vida nova. Para nós dois. E se você não quer mais me ouvir hoje, você não vai mais me ouvir nenhum outro dia. Porque a gente encerra o entrave aqui. Com o rosto apontado para o que há de vir. Há de vir. Há. Se a gente se acomoda, alguma parte apaga as luzes. Perde o movimento. Morre um pouco. Se a gente não se incomoda com a inércia, se a gente deixa de lado e sequer pensa nela, então a gente deixou de se amar. E isso é grave. E isso é urgente. E requer um esforço muito maior do que se imagina. É muito mais difícil romper a estagnação do que se deixar levar por ela.
- Eu já entendi o teu recado. Você não precisa se repetir.
- Você não precisa ser hostil. Eu não estou sendo agressivo. Eu tento compartilhar essa percepção. Ela é íntima e nos envolve e nos determina também.
- Eu sinto muito.
- Eu também.
- Você fica?
- Mais uma bebida.
- Eu vou indo.
- Certo. Fique bem.
- Escuta, Os Sonhadores não é tão raso assim.
- Eu sei. Me deu uma saudade de arriscar. De viver o momento, sabe? Sem equilibrar tanto os pratos, sem estar tão atento ao redor para que a gente não se atinja com os estilhaços alheios. Me deu saudade de ter dezoito anos. De não ter hora para acontecer. Não ter feridas tão latentes. Ser mais intenso. Entende?
- Entendo.
- Dirija com cuidado.
- Feliz Aniversário.
- Obrigado.