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terça-feira, dezembro 30, 2008



OS SONHADORES de Bernardo Berolucci

- O que eu quero te dizer é que é um movimento muito particular. É um movimento íntimo, vamos partir desse princípio. Sendo íntimo, funciona de maneira específica para cada um, então não existe uma verdade absoluta em nada do que eu te disser. Porque eu falo por mim. Eu. Sendo assim, eu posso me arriscar e agir e reagir e mudar a opinião. Adotar um novo ponto-de-vista. Sabe que ontem eu fui rever Os Sonhadores, que é um filme do Bertolucci que eu tenho muito carinho e a sensação que eu tive foi completamente diferente de quando vi o filme pela primeira vez. A Eva Green continua maravilhosa. O pau do Michael Pitt continua lindo. A bunda do Louis Garrel também. Mas a percepção faz isso com a gente. Nos pega de surpresa e de repente, nos desperta uma série de miudezas que antes não estavam lá. Que antes não fomos capazes de observar. Que antes, de repente, nem existia, mas que só após o segundo olhar (ou terceiro, etc) aquele filme, aquele momento se abriu para você e potencializou uma série de sensações que você sequer tinha ciência. Você me entende?

- Um pouco. Mas não consigo entender o que você viu de tão especial em Os Sonhadores. É um filme tão raso.

- Que você tenha uma opinião, eu respeito. Mas não seja escroto porque você está falando de um filme muito especial para mim.

- Ainda tem bebida?

- Sério, cara. Você tem essa facilidade de bombardear tudo o que eu gosto. Você faz críticas muito severas e não tem o menor carinho pela minha opinião. Como se o teu desprezo, o teu vasto conhecimento e todos os livros que você já leu, te colocassem em uma situação superior. Então você joga água fria e que se foda o que eu penso.

- Você bebeu demais.

- Não, eu não bebi. E se quer saber, eu cansei dessa tua maneira primária de justificar toda tentativa de conversa com um ‘você bebeu demais’, ‘você fumou demais’ ou ‘você está muito cansado’.

- Acho melhor a gente ir embora.

- Se você quiser ir, boa noite. Eu fico.

- Certo, então ficamos.

- Eu te falei que encontrei com o Dedé. Dezesseis anos depois. Porra, o quanto isso mexeu comigo. O quanto me revirou a memória, as lembranças de uma época onde tudo era tão urgente, tão definitivo, tão mais jovem. Te contei o quanto esse encontro me lançou questões.

- Você deveria ter estudado filosofia.

- É sobre isso o que eu estou falando.

- Ou psicologia.

- Toda vez que eu me abro, toda vez que eu me aproximo de você e falo sobre qualquer assunto, você me ironiza. Eu mudei o meu olhar sobre você. Como aconteceu com o filme. Com a diferença de que essa mudança te esvazia, como se você se esvaísse de um outro você que era tão mais vivo. Tão mais atento. Atencioso.

- Ainda não entendi a pauta da conversa.

- Acho que seria saudável se a gente pudesse dar um tempo.

- Um tempo de?

- Disso, dessa relação estranha. Sádica, de balas perdidas.

- Você deve saber que nós não somos necessariamente um casal.

- Outro assunto que me incomoda, porque depois de todo esse tempo, eu não sei o que nós somos. Amigos que fazem sexo regularmente? Medrosos demais para assumir uma relação? Ou pior, companhia um para o outro, na esperança de que alguém melhor cruze o caminho?

- Por que você tem essa necessidade de tentar entender tudo?

- Porque eu tenho um cérebro que funciona perfeitamente!

- Nós somos o que somos. Mania de querer etiquetar o universo.

- Não existe sensação pior do que sentir que a gente perdeu o tempo. Desperdiçou.

- Essa é a sensação que você tem?

- Sincera e infelizmente, sim. A gente matou o tempo precioso se adequando a uma situação pouco sustentável. No início ainda tem o frescor de um mistério. A gente não dá nome aos bois, mas segue adiante. Com a esperança de que a névoa vai passar depois de um tempo.

- Você usa metáforas demais.

- E me faço entender.

- Quais os seus planos, então?

- Eu gosto de você. Gosto tanto. Você tem esse péssimo humor charmoso. Você odeia as crianças, eu acho isso tão autêntico. Eu nunca conheci ninguém que não gostasse de crianças. As mãos mais bonitas que eu já vi, você tem. A tua formação, tudo o que você já leu e escreveu sobre, eu acho tão admirável. A gente se entende de longe. Nós amamos bossa-nova. Ninguém canta Lígia melhor do que você, especialmente ‘e quando você me envolver nos seus braços serenos / eu vou me render mas seus olhos morenos / Me metem mais medo que um raio de sol’. Eu adoro a sua voz. Só que a gente se acostumou... A gente se... Vou tentar não usar metáfora. A gente se acostumou a uma não definição. Um quase namoro. Uma quase vida a dois. Um quase compromisso de dois quase amigos que quase se preocupam um com o outro e quase se cuidam e quase não discutem. Nós dois somos um quase. E quando eu penso em você, eu fico um tanto indignado porque a gente viveu todo esse tempo acomodados por essa sensação sem brisa. Esse sentimento sem nome estacionado, que não se define não pelo mistério, mas por falta de consistência. Por falta de gana.

- Eu não queria ter essa conversa hoje.

- Já estamos conversando. Eu sou essa montanha-russa de palavras e eu preciso desabafar. Preciso te olhar nos olhos e dizer tudo o que me incomoda, tudo o que me sufoca. Mesmo que não seja o melhor lugar, o melhor momento, mesmo que você se recuse a ouvir.

- Prometo que amanhã...

- Amanhã sou eu. Consciente e caminhando pelas ruas da cidade sem a idéia de que havia amor numa história sem amor. Amanhã é você seguindo com a tua vida, provavelmente aliviado porque a gente ousou romper a inércia cômoda da vida sem sentido que a gente sempre levou. Não existe nobreza em romper. Existe um tanto de coragem e uma feroz vontade de movimentar as questões. De se olhar no espelho e se estapear o rosto na tentativa de quebrar a hipnose da inaptidão.

- Você está falando sozinho. Eu não quero ouvir você discursar agora.

- Amanhã é ano novo. E embora eu recuse esse discurso do comércio de que a vida se renova e a esperança etc e tal, amanhã é vida nova. Para nós dois. E se você não quer mais me ouvir hoje, você não vai mais me ouvir nenhum outro dia. Porque a gente encerra o entrave aqui. Com o rosto apontado para o que há de vir. Há de vir. Há. Se a gente se acomoda, alguma parte apaga as luzes. Perde o movimento. Morre um pouco. Se a gente não se incomoda com a inércia, se a gente deixa de lado e sequer pensa nela, então a gente deixou de se amar. E isso é grave. E isso é urgente. E requer um esforço muito maior do que se imagina. É muito mais difícil romper a estagnação do que se deixar levar por ela.

- Eu já entendi o teu recado. Você não precisa se repetir.

- Você não precisa ser hostil. Eu não estou sendo agressivo. Eu tento compartilhar essa percepção. Ela é íntima e nos envolve e nos determina também.

- Eu sinto muito.

- Eu também.

- Você fica?

- Mais uma bebida.

- Eu vou indo.

- Certo. Fique bem.

- Escuta, Os Sonhadores não é tão raso assim.

- Eu sei. Me deu uma saudade de arriscar. De viver o momento, sabe? Sem equilibrar tanto os pratos, sem estar tão atento ao redor para que a gente não se atinja com os estilhaços alheios. Me deu saudade de ter dezoito anos. De não ter hora para acontecer. Não ter feridas tão latentes. Ser mais intenso. Entende?

- Entendo.

- Dirija com cuidado.

- Feliz Aniversário.

- Obrigado.

segunda-feira, dezembro 15, 2008



SEGURANDO AS PONTAS de David Gordon Green

Liquidificador ligado. Sem fim. Eu diria que sim. Ou não. Mas sou um homem que acredita no sim. Então pode até ser que não. Mesmo assim eu vou dizer que. Areia movediça. Eu abri a porta e lá estava você. Eu lembro do desenho do músculo das tuas costas. Do ponto exato da curva da tua pele. E nem é perversão. Mas o meu campo de visão encontrou justamente a tua imagem. Sem que eu quisesse. São três horas da manhã. Eu não consigo dormir. Eu não consigo sonhar. Eu não sei responder nenhuma pergunta. Até mesmo as mais simples. Se me perguntarem hoje se estou bem, não sei o que responder. Não sei definir o de dentro. Não consigo nomear as coisas. As coisas. As invisíveis. As que movimentam questões. As que me causam o frio vazio corredor sem fim preciso de quem, afinal? Eu quase te roubei um beijo. Não fosse o cadeado, eu teria cometido o impulso. Assaltante sem escrúpulos que só queria testar os lábios nos teus. Sem armas. Sem palavras. Meio moleque apaixonado. Mas havia o cadeado. Ata-me. Carne Trêmula. A porra da lei do desejo. Fazer sinal para que o ônibus pare. Mas ele já está parado. Eu fechei os olhos e o tempo passou. Mas não percebi, não perceberam. Só fui dar conta quando a lua, a luz da lua, me chamou a atenção e eu olhei para o céu. Nuvens acolchoando as estrelas e a luz tão forte, a lua tão cheia. Eu deveria ser um lobo. Eu deveria exercitar o uivo. Quando eu chegar onde os loucos estão agora, caçando as borboletas azuis do Caio F., eu vou uivar para a lua cheia. Orfeu meu. Eurídice sem culpa. Sem fim. Precisou boa parte da Baía de Guanabara para que eu percebesse. Eu percebi. E perceber nada significa se eu não souber conduzir o que há. E eu não sei. Talvez minhas referências sejam movediças. Talvez a vida faça sentido dessa maneira. Sem qualquer certeza. Como construir uma imagem e acreditar nela – porque é preciso acreditar, mesmo sem o certo, sem o errado, é preciso que seja de verdade. Só de verdade é que o sentido se perde e se reconstrói e é novamente demolido e a gente sorri e olha nos olhos e acredita na vida tão linda tão forte e tão solar e tão triste e desesperadora e sem sentido. A gente dá nome ao tudo. E depois esquece. Até que o tudo receba outro nome. Eu não sei.

Existe o som de um violoncelo, veja que já sei diferenciar o som e é tão absurdamente movediça a percepção desse som. Te empurra e te salva na intensidade de um vai e vem do arco em contato com as cordas. Nada é mais bonito que a música. Nenhuma palavra. Nenhuma imagem. Nenhum desastre da natureza. Eu falo por mim. Umbigo maiúsculo sem o compromisso de ter que concordar com a multidão. Sim e não quando identifico o sim. E o não. Sou um homem de dizer sim. Mesmo que. Não é para agradar. Para concordar. Para parecer. É porque me faz mais sentido. Me causa a sensação de que afirmando a gente segue o milagre do movimento. Liquidificador ligado. Sem som. Estar em movimento. Interno. Externo. Não importa. É fundamental. Meu caule que me prende às raízes e às folhas. O que há embaixo. O que há acima. Dos elementos. A terra e eu sempre fui muito mais ar. Dependente de todos os outros. Os cinco ao mesmo tempo. Na mesma temporada. Não se aproxime para me perguntar como eu estou. Eu não vou saber responder. Não me atravesse o caminho para saber se tudo está bem. Eu não vou saber responder. Eu dispenso a etiqueta sapiens. Eu estou. É dessa maneira que posso te responder. Eu estou e quero permanecer. E quero também poder te observar sem dor. Sem furtos. Sem delitos. Sem a sensação migalha de cadeado sem chave. Eu refiz todo o caminho. Descobri que todo herói é imaginário. E que precisamos deles. Para poder crescer. Crescer é toda hora. Precisamos deles para descontruí-los. Para encarar os fatos. Para compreender a natureza. A natureza do querer. Do não ter. Do precisar. Do me passa o açúcar. E no sábado de manhã, acordar tão cedo para ver o dia chegar. Enrolado no cobertor, gorro nas orelhas para proteger do frio e esperando Godot que não vai chegar, santo Beckett, mas que não tem a menor importância porque vai amanhecer. E é nesse momento o que me interessa. A beleza da virada. A grandeza do óbvio. Tudo o que parece banal. Tudo o que é. Sem me importar com o que significa o que parece não ter significado. Ou o ser. Estar. É sobre isso o que eu estou falando. Eu estou. E se já fiz o caminho de volta, por qual razão as malas ainda não foram feitas? Se existe ainda o inexplicável silêncio lotado de palavras e de opiniões? Eu passo. Eu não sei. Eu não sei, olhando direto nos teus olhos. Eu não saberia dizer. Seria como montar uma tenda no deserto para vender água. Atirar no escuro lotado de gente que não tem nada com o meu agora. Com o meu umbigo. Tire a sua capa repleta de poderes, abandone a sua máscara que te protege a identidade e me convide para um café, me chame para um cinema. Eu vou.

(Publicado na coluna Depois do Filme, da Revista Paradoxo)

domingo, dezembro 07, 2008



ELLING de Petter Nass


De frente para o espelho do imenso quarto de um apartamento em Ipanema, Ana e Tereza enfrentam a natural insatisfação feminina, diante do armário aberto, a cama lotada de roupas e inúmeras possibilidades. Tereza, vestida de bailarina clássica, uma cópia fiel de qualquer aluna de balé que volta e meia nos atropela a visão. Ana, de branco: o vestido, a sandália e os detalhes. Muito mais confortável.

- Não gosto. Me sinto boba – Tereza dispara.
- Você ficou tão bem – dona de uma calma, Ana tenta animar a amiga.
- O que caracteriza uma bailarina?
- A postura.
- Esquece o físico. Pensa nos acessórios.
- O seu cabelo está preso, você está com a malha, as meias, a sapatilha. Está tudo aí.
- Eu vou dançar, suar. Meias fora, definitivamente. Tá nervosa?
- Nós vamos dar uma festa, Tetê! Festas são para relaxar.
- Não é uma festa comum. É uma festa para nós cinco.
- Os meninos estão curiosos.
- Os meninos são curiosos. Vivem em busca de qualquer justificativa que sacie a grande dúvida do mundo. Por que preciso justificar uma festa no meu apartamento?
- Talvez porque, de fato, exista uma justificativa. Ou porque festas comuns, sem motivos, sejam para mais de cinco pessoas. E se você nos reuniu, um bom motivo deve haver. Mas não te pergunto mais. Gosto da idéia de reunir o quinteto. Estou bem?
- Linda! Ana, já são dez horas e eu ainda não estou pronta – fingindo um desespero para ser paparicada.
- Você vai dar um jeito que eu sei. Nervosa?
- Ansiosa. Faz tanto tempo que não ficamos só os cinco juntos.
- A última lembrança que eu tenho dos cinco reunidos é no enterro da Paulinha. Depois nós viemos para cá, bebemos, choramos, cantamos. O André tentou cozinhar. O Ricardo não conseguia parar de chorar. Nunca vi o Ricardo daquela maneira. O Pedro quis te beijar, lembra?
- O Pedro quando bebe quer beijar todo mundo.

A campainha interrompe a conversa. As duas se olham e sem qualquer pedido ou palavra, Ana sorri, ajeita o cabelo e compreende que é dela a tarefa de receber os convidados. De branco, dentro do seu vestido e do vento, ela deixa Tereza com sua indecisão sem fim e parece flutuar ao se dirigir à porta. O sorriso aberto perde um pouco a naturalidade quando, do outro lado, Ricardo entra no apartamento com um olhar seco, no seu melhor estilo e uma ironia certeira, muitas vezes desagradável.

- Axé para você também – ele entrega uma garrafa de vinho.
- Para todos nós.
- Fantasiada de baiana, Ana? Que falta de criatividade.
- Branco, Ric. Paz, esperança, serenidade.
- Pior do que imaginei, então.
- E você? Cadê a fantasia? A Tereza vai ficar chateada, ela exigiu que viéssemos fantasiados – sem perder a delicadeza.
- Sem paciência para alegorias. E eu tô sem carro, imagina pegar um táxi vestido de palhaço. Isso é coisa para o Pedro. Aliás, posso apostar como ele vai chegar com um nariz vermelho.
- Vamos deixar a implicância lá fora?
- Vamos fingir que eu estou fantasiado de... Ricardo. Pode ser?
- Pode!
- E a Tereza?
- Terminando de se arrumar.
- Ela te disse o motivo desse encontro?
- Ela está nos oferecendo uma festa, meu amigo. Só isso!
- Vou fingir que acredito só porque você está linda de branco! Dá cá um beijo que eu tô morto de saudade.

Se abraçaram em festa e alegria. O Ricardo, às vezes, deixa a encenação de lado e ainda é capaz de cometer um carinho voluntário. Mais uma vez, a campainha toca e interrompe o abraço. Ricardo vai para o seu lugar preferido do apartamento: o grande, velho e aconchegante sofá vermelho. Ana sempre sorrindo, abre a porta.

- Meus dois amores – encantadora.
- Ana banana – Pedro corresponde com uma rosa. O bigode, a cartola, a bengala.
- Quero muitas fotos agarrada nesse Chaplin lindo!
- Quantas você quiser - e entra na direção do sofá.
- Eu não tenho rosas, mas tenho um beijo – André e a sua voz macia. No rosto, uma máscara do Zorro.
- André, que saudade.

No abraço de Ana e André existe um passado desgovernado de intenções e tempestades. Eles descobriram juntos, na urgência da adolescência, o querer e o não querer. Não que não houvesse amor. Sempre houve. Não que André quisesse machucar ou magoar Ana. Mas ele é daquele tipo de homem que seduz naturalmente e se deixa levar. E Ana talvez seja a última das românticas. E você deve saber que quando alguém que a gente ama, ama todo o mundo, alguém chora no chuveiro.

- Zorro, então. Bem apropriado - provocativa.
- Explique-se – no mesmo tom.
- Galanteador. Sedutor. Disponível.
- Galinha, em resumo.
- Essencialmente.
- Eu mudei, viu?
- Sabe quantas vezes eu já ouvi você repetir essa frase, André?
- Se você me desse uma chance...
- Eu estaria louca – sorriso aberto.
- Eu mudaria por você, Ana – ele tentou falar sério e a encarou seus olhos profundamente azuis. Ela, com leveza, percebeu.
- Você mudaria por amor. Por mim, talvez alguns meses. Até que uma outra aparecesse. Aí você ia repensar, se culpar um pouco e ia... Ia... porque é da sua natureza ir.
- Eu mudaria por você - desconstruído.
- Muda não... Adoro você do jeito que você é.

Enquanto Ana e André se provocavam na entrada do apartamento, ao mesmo tempo, Pedro e Ricardo também estabeleciam o contato, com toda a fragilidade e com toda a dificuldade que esse fato exige. Diante do grande, velho e aconchegante sofá vermelho. Se eu usasse alguma figura para ilustrar cada um dos rapazes, poderia dizer que Pedro era um grande sorriso permanente e Ricardo, um grande ponto-de-interrogação constante.

- Com licença, senhor. O senhor poderia tirar essa máscara de Ricardo e me dar um abraço?
- Só você compreenderia a minha fantasia!
- Você jamais se fantasiaria, Ric!
- Eu envelheci aos catorze, Pedrinho. Ao contrário de você, que continua cada vez mais jovem. Mais bonito.
- Nem tão jovem.
- E o consultório, teus pais, a Amanda?
- Uma hora pra te responder cada uma dessas questões.
- Faça um resumo.
- O consultório vai bem. Uma das coisas boas de ser dentista é que a maior parte da população têm dentes, então eu vou ter sempre o meu emprego. Papai tá lá, controlando a bebida da mamãe, que controla os doces dele, que controla o bingo dela.
- Mas não fecharam os bingos?
- E isso impede que o jogo continue? A Amanda me deixou. Pensei que você soubesse – levemente desconcertado.
- Eu não sabia, me desculpe. Você ficou bem, você está bem?

Em silêncio, antes da resposta, um nó na garganta. Os olhos na tentativa de segurar o óbvio. O Chaplin mais triste de toda a história.

- Eu tô bem.

Dispersando sem saber um momento delicado, André e Ana se juntaram ao sofá vermelho. Ricardo cumprimentou André com uma balançada de cabeça e um sorriso de canto de boca. Não se conteve:

- E então, André? Defensor dos fracos e oprimidos?
- Só para participar da brincadeira, Ric. Você ignorou o pedido da Tereza ou não recebeu o convite?
- Ignorei - seco.
- Ana banana, você some da minha vida – Pedro, atento às farpas.
- Nós fomos ao cinema semana passada, Pedrinho.
- Então, você sumiu da minha vida por oito dias!
- Alguém sabe o motivo da reunião - Zorro pergunta.
- Festa! É uma festa – a ironia de Ricardo.
- Acho que ninguém sabe. Mas de repente, é só para nos reunir. Faz tanto tempo - e rodou a bengala.
- Desde o enterro da Paulinha.
- Ela seria a primeira a chegar e com a fantasia mais extravagante – os olhos azuis brilhando de Ana.
- A Paulinha só precisava de mais uma pessoa para fazer uma festa – Pedro sorriu.

Tereza finalmente. O cabelo solto, caindo pelos ombros. O perfume mais gostoso. Especialmente linda. De tudo o que experimentou, só restou a saia rosa de malha. Os outros acessórios de menina foram substituídos pela impiedosa beleza da mulher. E todos perceberam. Finalmente Tereza.

- Prontos para a festa?

Estavam todos prontos. Para o que quer que acontecesse. Entre os cinco havia a sensação potente de invencibilidade. Feito super-heróis, que juntos se ajudam e se compreendem, rindo do perigo, dando de ombros para o medo. A soma dos cinco resultava em uma unidade tão forte, que só quem tem um amigo, pode compreender. A madrugada avançou e dentro do apartamento em Ipanema eles foram felizes. Eles dançaram. Cantaram. Sem medo algum. Sem culpas ou temores ou qualquer outra sensação impiedosa. Conversas rápidas, música para animar, bebida gelada. Uma festa, cumprindo o combinado por Tereza. Uma festa pretendida, anunciada, real.

Os vestígios pelo chão do apartamento eram variados. Adereços das fantasias ao chão, entre as garrafas e os tênis e os copos e os cinco deitados no tapete, entre as almofadas. Eram quase cinco horas da manhã e ainda havia muita conversa. Pedro deitado na perna de André, que corria os dedos pelos cabelos macios de Ana. Tereza animada, tão animada:

- Eu só lembro da Paulinha correndo como uma louca, ela entrou no carro desesperada gritando com o Ricardo para arrancar dali.
- Eu tinha tomado um antialérgico. Não conseguia reagir aos gritos dela.
- O Pedro perguntando o que havia acontecido e a Paulinha só gritava, fudeu, fudeu, quebrei a janela dela.
- Ela ficou uns dois minutos gritando fudeu, fudeu.
- A Paulinha era um exagero. Um lindo exagero. Os mínimos dela tinham uma importância tão grande. Ela era tão especial – Tereza, apesar do álcool, muito sincera.
- Era uma grande sedutora também - Ricardo lança o anzol.
- A Paulinha beijou quase todo mundo que tá aqui nessa sala. Menos a Ana – André se certificando.
- Será? – Ricardo puxa a linha.
- Ela beijou todo mundo que está aqui – Ana admite, big fish.
- Me conta tudo agora – Tereza era a mais surpresa.
- Todo mundo aqui tem segredos uns com os outros – Ana se defende.
- Concordo – Ricardo com satisfação.
- Ela me pediu. A Paulinha me pediu um beijo.
- Só isso? – Tereza decepcionada.
- Quando a gente recebe um pedido, ou a gente recusa ou a gente realiza. Ela dormiu lá em casa e me pediu um beijo antes de dormir – Ana quase corada.
- Ela teve que me deixar bêbada – Tereza confessa.
- Ela me pediu e eu disse sim – Ana docemente.
- Eu pedi para ela – André sem a máscara.
- A Paulinha sempre teve uma queda por você – a bailarina com uma ponta de ciúme.
- Muito mais do que uma queda – Pedro completou.
- Química, ué. A gente não podia ficar perto um do outro – André e a expressão mais safada da temporada.
- Acho que foi a Paulinha quem te ensinou a ser galinha – Ricardo em posição de ataque.
- Não sou galinha, Ricardo. Não sou. Que porra de mania chata. O que é que você sabe sobre mim? – se ainda estivesse com a máscara, André poderia lutar como um herói.
- Você nunca namorou, André. Cada semana com uma mulher diferente. Sem se envolver, sem saber como é – o tom de voz de Ricardo era mais grave que o habitual.
- O que não significa que eu não queira, Ric. De que adianta fazer planos, programar os próximos meses, se a gente não sabe o dia de amanhã?
- As pessoas fazem planos, moço. Isso é se comprometer. Esse teu discurso é furado! – em tom de briga.

É o primeiro momento real de tensão entre eles. Dissipado pelo bom senso de Pedro que se aproxima de Ricardo e apenas olha nos seus olhos. Pedro beija a testa do amigo, como quem faz um pedido de calma, sem fazer. Ele movimenta o espaço:

- Alguma coisa para comer? Tô indo para a cozinha. Alguém?

Ana levanta as mãos. Pedro passa entre os amigos e ao passar por André, faz um sinal para que ele se acalme. Ele acata e o tom é bem mais amigável:

- Toda vez que eu me apaixono, por uma noite, por uns dias, logo termina o interesse. Eu não consigo prolongar o sentimento inicial.
- Paixão é assim. Algumas duram, outras não – Ana é a única que responde.
- Eu queria um amor. Um grande amor.
- Você sabe que amor não é algo que se pretende.
- Às vezes eu esqueço.

Ana se aproxima e beija as mãos de André, como quem faz com uma dama.

- Eu fui louca por você, André – Tereza dispara.
- Eu fui louco pela Ana – André compreende o jogo.
- Eu fui louco pela Ana. Fui louco pela Tereza. Eu fui louco pelo Pedro. Louco – Ricardo entra na roda.
- Ainda bem que me livrei dessa Quadrilha – André suspende a rodada.
- Eu nunca gostei muito de você, André – Ricardo recomeça.
- O Pedro sempre foi apaixonado pela Ana – André prossegue encarando Ricardo.
- A Ana nunca se apaixonou por nenhum de nós - Tereza encerra acendendo o cigarro.
- Eu já fui apaixonada por um de vocês sim. Mas não conto quem.

Pedro entra na roda com alguns sacos de biscoito e uma garrafa na mão.

- Não tem nada pra comer. Só esses biscoitos!
- Pedro, a Ana acabou de dizer que já foi apaixonada por um de nós – André curioso.
- Mas não digo quem.
- Eu já fui louco pela Ana – Pedro sem saber do que já tinha sido confessado.
- Quem não foi louco pela Ana? – Tereza em sorriso doce.
- Ana banana arrasando os corações!
- E sempre sozinha. Há alguns anos atrás, eu achava que era uma questão de tempo, sabe? Que essa história de encontrar alguém, esse desejo adolescente agonizante, com o tempo ia encontrar o seu lugar. Ou eu ia encontrar alguém que... Ou ia priorizar a profissão. Aqui estou eu, perto dos vinte e sete, não estabelecida profissionalmente, solteira, cansada de homem chato que só quer trepar. Adoro sexo, adoro, mas tem uma hora que só sexo...
- Perde o sentido – André completa.
- Ana, você não é a única que não tem a vida que desejou – Ricardo mais carinhoso.
- Mas vocês todos sabem o querem. Tem uma profissão, ganham algum dinheiro.
- Nós somos o grupo dos corações partidos. Tirando o Pedro e a Amanda, somos todos solteiros machucados – Tereza fazendo um brinde.
- A Amanda me deixou. E quer saber? Que se foda! Quem disse que a gente precisa estar casado para estar feliz?
- A gente cresceu viciado nesse conceito de cinema de que todo amor é em tela grande. De que precisamos do amor perfeito para fazer sentido – Ricardo no mesmo tom carinhoso.
- Eu ainda acredito – Ana sem qualquer receio.
- Eu também – cada um, no seu tempo, respondeu. Só Ricardo se manteve em silêncio.
- Você não diz nada, Ric? – Ana questiona.
- Não.
- É muito duro deixar de acreditar. Me diz no que você acredita.
- Na troca. Eu acredito na amizade que existe entre nós. Eu menti quando te disse que não gostava de você, André. Eu sou louco por vocês. Me revolta ver a Ana em busca, sem saber o que procura. Ou ver o Pedrinho sofrendo porque foi abandonado. Eu jamais te abandonaria. André, depois que você descobrir o quanto é viciante se comprometer, meu caro, você vai morrer casado. Tereza, eu sei a falta que a Paulinha nos faz e eu sei que você pensa nela todos os dias e se questiona sobre a noite do acidente, mas eu quero que você saiba que todos nós somos responsáveis por tudo o que houve. Todos nós. E quanto ao meu jeito estúpido de ser, eu perdi quase toda a paciência que uma pessoa pode ter e embruteci de tal maneira que eu acho que não tem mais volta. Eu me deixei embrutecer e detesto que seja assim, mas não há mais como lutar contra.
- A Amanda me escreveu uma carta que eu não consegui ler. Eu tenho a sensação tola de estar fora do contexto, de não fazer sentido, de ter que fazer graça para que doa menos – Pedro aceita o carinho de Ricardo e deita no seu colo.
- E você Tereza. Vai nos dizer por que nos chamou aqui? – André arrisca.
- Tetê começou a noite vestida de bailarina e vejam o que restou – Ana sorri.
- O que restou da bailarina, além da saia rosa, meus amores, foi a certeza de que vocês são a minha melhor família. Vamos para o terraço? Vai amanhecer!

Lá de cima, a cidade em silêncio trocava a noite pelo dia e os cinco observavam o momento, entre pequenos carinhos e sorrisos. O sol. Lá de cima, todos sentiram uma falta enorme da Paulinha, mas ninguém comentou para espantar o baixo astral. Lá de cima, Tereza disse a todos, sem creditar tanta importância, que ela esperava uma menina para dezembro próximo. Disse também, lá de cima, que todos serão padrinhos da menina Paula, que ela espera que seja capricórnio e Fluminense.

Amanheceu no Rio de Janeiro e não houve dia mais feliz para aquelas cinco pessoas.


Para Diogo Monteiro, que me encomendou.


Existem dois titulos para esse texto:
O que restou da bailarina ou Sem paciência para alegorias