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quinta-feira, março 26, 2009



ZACK AND MIRI MAKE A PORNO de Kevin Smith


O telefone insiste depois de seis ou sete tentativas. Eu estava relendo uma carta, estava dentro das palavras que um dia alguém resolveu me escrever e sendo esse um fato raro, quase isolado – alguém me escrever – percebi que a tarde livre havia passado. O tempo havia passado, como se escorresse inevitavelmente, pelos dedos. Um sopro breve. Ao redor, lençóis de algodão brancos, bem finos, um copo e uma garrafa, aquela caixa de bombom aberta que deixaram para mim na locadora e meu pai me entregou sem cartão e sem mistérios, a cama desarrumada, vestígios de uma noite de sono, uma manhã, quem sabe? As almofadas desorganizadas e toda a geografia de um espaço que eu conheço de olhos fechados, pernas atadas, em qualquer outro canto do mundo.

O telefone, mais uma vez, chama por mim e é quase um choque brando interromper as palavras íntimas de uma carta para, sem aviso, no repente, usá-las em um automático ‘alô’, um susto ao atravessar a rua, entre a folha de papel e o fone. Rasgo o silêncio e antes do óbvio da comunicação, ‘alô’, apenas alô, ouço o meu nome e o volume da voz do outro lado, o tom, a intenção, tudo isso se antecipa e me tira um sorriso. Eu conheço essa voz safada que sopra meu nome com uma propriedade e também intimidade que bastam três segundos para que me arrepie o corpo, a nuca, o secreto. A voz, o dono da voz, carrega muito mais que o efêmero efeito de me provocar a química ou arrepios. Carrega uma história de cumplicidade e silêncios e também de palavras e também de movimentos e também de encaixes e de inteligência e também de molecagem seguida de cavalheirismo e de tantos detalhes de toda uma história com início, meio, fim e os de vez em quando. Hoje é dia de de vez em quando, eu sei. Agora eu sei.

O teu apartamento mudou. Ganho um beijo molhado. Está mais branco. A língua quente dentro da boca quente. Vermelha. O que houve, ela não te suportou mais, deu no saco? O cabelo puxado levemente, nos aproximando, quase fogos de artifício. E teu gato fedido, que fim levou? O corpo em estado de tensão, intenções em riste, que o mundo termine. Penso muito em você, nada dramático, desencana, penso muito em querer saber de você. Desabotoa a minha camisa sem que eu perceba com a segurança de quem conhece bem o mapa. Essas afinidades que resistiram, sabe? Outro dia me deu vontade de saber para quem você estava torcendo no American Idol. Dois corpos prontos para ocupar o mesmo lugar no espaço. Vermelho, amarelo, verde e o trânsito nunca esteve tão livre. O macio do tapete, estamos cinematográficos, rapaz, mas tenha cuidado ou volto para casa com uma peça de roupa sua. Então as mãos na suavidade da pele e há o despertar de alguma coisa que eu não sei verbalizar. O melhor dos toques é o toque pretendido. Sim, papai, mamãe, titia e a criançada, menos o cachorro, o cachorro acabou, foi embora, já não acho que ele morreu, às vezes eu penso que ele ainda está em casa, abanando o rabo quando ouvir as chaves. Rasga o pacote e atira longe, mas o que houve com as preliminares tão clássicas, cenas tão aguardadas? Quer saber, meu jovem, que se foda o clássico. Solteiro pela cidade, feito um livro de auto-ajuda. Existe muito mais do que o movimento dentro do movimento de invadir e ser invadido por você. Informações secretas, íntimas, ultrajantes de como compartilhar a invasão sem que ela seja uma ilustração boba de como somos todos animais no cio.

Como é que eu explico você na minha vida?

Encaixe, eu poderia dizer. Hoje as palavras fogem, feito coelhos perseguidos. Não é canastra isso – coelhos perseguidos? E aquela voz interior, depois de um gordo e sonoro puta que o pariu: esqueça as palavras, vá ao cinema, vá caminhar, já que os coelhos fogem, as palavras desaparecem e o sentido, putz, o sentido não há, abra a lata de uma cerveja e faça festa com aquele barulhinho do gás escapando, do líquido na felicidade da saída da lata. O fim do encarceramento. Tschhhhhhhhhhhh.

Eu queria te dizer que existe mais, muito mais entre o caminho da minha cama para a tua do que o simples percurso. Uma espécie de trajetória de intimidade que avança os sinais, nos avacalha nos enaltecendo e vice-versa e acende a cidade na mais silenciosa das noites, do mais solitário dos dias.

domingo, março 22, 2009



TRANSAMÉRICA de Duncan Tucker


Assim ela me disse antes que eu pudesse abrir a boca para me desculpar. Então ficou no olhar o meu pedido. No olhar antes perdido o meu pedido. Levantou a mão esquerda e fez um carinho no cabelo, a ponta das unhas entrando entre os meus fios molhados, uma sensação entre o aconchego e o susto, como quem diz sem dizer, eu aceito as tuas desculpas, garoto, relaxa que não foi nada demais. Pediu uma dose de tequila e foi rapidamente atendida, o barman sorriu e eu percebi que já se conheciam. Quem sabe ela não aparece todas as noites por aqui? Quem sabe?

- Me acompanha?
- Não, obrigado. Tequila me derruba.
- Duvido.
- Como?
- Duvido que tequila te derrube.
- Acredite. Minha relação com o álcool é fálica. Raramente nos entendemos.
- Ok, mas uma bebida eu vou te pagar, então escolha uma que não te derrube.
- Vou continuar no coquetel. Mas não precisa...
- Capricha no coquetel, Luizinho.
- Você fuma?
- Não. Não gosto do cheiro. Da fumaça. Do cheiro da fumaça, fica na roupa, na pela, na boca.
- Não fumante? Não estou dando uma dentro, hein? Mas um baseadinho...
- Um baseadinho é um baseadinho...
- E seu... sua... enfim, sua namoradinha, onde está?
- Namoradinha? A última namoradinha que eu tive 'Os Goonies' ainda estava passando no cinema.
- Aquelas crianças sujas? Nossa, um viva para a sua memória. Não tinha um monstro do chocolate?
- O Sloth.
- Lembro vagamente. Mas lembro da trilha da Cyndi Lauper. Um arraso. Outra noite passando o canal peguei um episódio de Os Assumidos, ela fez uma participação. Estava fazendo um show na boate, Babylon, linda como sempre. Não é que os putos explodiram com tudo? Explodiram a boate, explodiram a Cyndi Lauper, explodiram os gays.
- Deixei de acompanhar essa série. Mas eu tinha lido da explosão.
- Depois ela reaparece cheia de poeira, ajudando no resgate. Sacanagem chamar a mulher para explodirem o show dela e ainda sujarem ela toda depois. Você não acha?
- Não sei. Eu tinha que ver. Para poder ter uma opinião.
- Verdade. Parece justo. Bom, se não tem uma namoradinha, onde está o...
- Também não há um namorado. Estou sozinho. E antes de pisar no teu pé, eu estava ali naquele canto, achando que estava paquerando aquele rapaz de camisa vermelha que está se beijando, aliás, está quase estuprando aquele outro ali.
- Mentira que ele preferiu aquele troglodita?
- Vai entender? Eu estava ali desde que saí do banheiro. Achei que estivesse rolando uma paquera. De verdade. O garçom passou, eu pedi esse coquetel, foi o tempo de virar e os dois já estavam de conversa.
- Meu bem, iniciativa faz a diferença. Por que não se aproximou?
- Não sei. Timidez, eu acho.
- Falta de iniciativa eu posso até compreender. Mas timidez é desculpa para os adolescentes. E essa barba linda, te exclui da condição de menor de idade. Às vezes no meio de uma paquera, a gente acha que encontrou a pessoa certa. Quando digo certa, digo pelas próximas horas, pelo resto da noite, pelo menos. Que você sente que ao ser correspondido no flerte, vai deixar a caça de lado e vai relaxar ao lado de alguém. Tudo parece se encaixar, tudo parece combinar. Mas se você não age, se fica esperando o outro agir, você corre o risco de ficar sozinho. De voltar ao ponto zero. Ainda mais aqui, meu bem, que é tão...
- Descartável. Atravessei a pista para chegar até aqui e tropecei nas pessoas dançando.
- Sim, e pisou no meu pé, me deu uma cotovelada e quase tira a minha peruca do lugar.
- Mas cheguei inteiro. Eu não me apresentei, me desculpe. Eu me chamo...
- Não, nada de nomes. Não quero nomes.
- Por mim tudo bem, mas posso perguntar a razão?
- Nomes são muito pessoais. Desdobram conversas irreversíveis. E eu só estou te pagando um drink. E conversando, veja que raro. Conversando. Sabe que hoje eu nem ia aparecer? Faço show aqui toda quinta e domingo. Sábado eles me pagam para ficar por aí, animando a pista. O dinheiro é bom, tenho contas.
- As contas...
- Então eu venho e fico por aí observando. Danço se tiver vontade. Solto a franga montada. Bebo um tanto. Mas hoje eu não estava no clima. Acordei decidida. Um cinema, uma comidinha especial, um bom papo. Mas eu lembrei dessa bota, não é um escândalo essa bota? Aí fiz as combinações, a maquiagem, esse penteado não é um luxo? Quando eu vi, estava pronta, maquiada, perfumada. Chamei o táxi e não quebrei a rotina. Eu me olhei no espelho do quarto e me achei deslumbrante. Então eu pensei que já que estava me sentindo tão maravilhosa, por que um filme, um jantar, um amor?
- Porque nós precisamos de alguém. De atenção, do olhar de alguém, do carinho, do toque. A gente precisa dessa sensação de potência que o desejo desperta. E por mais deslumbrante que você esteja, se não há vida, se não tem recheio, humanidade, é de plástico, é vazio.
- Vazio uma porra, meu bem. Olha bem para mim. O que você vê? Vai, me diz a verdade, sem rodeios, precisa ter vergonha não. Me olha nos olhos e me diz, assim sem pensar, o que você vê?
- Eu vejo uma mulher sozinha sedenta de atenção e carinho. Exatamente como eu.
- Um cavalheiro. Que lindo. Sabe que eu acho que você só entrou aqui hoje para me encontrar? Foda-se o gatinho de camisa vermelha atracado com o gostosão de calça apertadinha. É isso, você só entrou aqui para me provar que ainda é possível. Que ainda é tempo de desejar. Não o querer pelo querer, desse querer de ir ali no banheiro e se resolver. Mas o querer de planejar. O querer de quem se reconhece. Que se vê porque ousou olhar nos olhos. E viu a fantasia, a magia. O amor. E suas farpas.
- Eu adorei a conversa. Mas preciso ir embora.
- Obrigada.
- Não agradeça. Não fiz nada.
- Obrigada por me olhar e ver uma mulher. Sozinha. Mas uma mulher. E também pela atenção. A maior parte das pessoas que entram aqui não falam comigo. Alguns engravatados procurando um pau. Outros procurando um pai. Tem as novinhas atrás de comprimidos. Fotos. Diversão. Mas o que é que essa louca quer, você deve estar pensando? Alguém que entre na boate para conversar amenidades? Tecer o sonho do amor perfeito, da casa própria, dos carnês do baú em dia? Obrigada lindinho. A gente se esbarra outra vez. Venha ver o meu show. Vou dublar a Cyndi Lauper. Outra dose, Luizinho meu rei.
- Muito prazer. Eu sou o Junior.
- Felicity Huffman.
- Muito prazer, Felicity.

(Texto é antigo, mas absolutamente atual e não havia entrado ainda aqui no blog).

quinta-feira, março 19, 2009



SIMPLESMENTE FELIZ de Mike Leigh

“I'm somethin'
I hope you think that you're somethin' too”
(Q. Jones/ R. Temperton/ L. Richie em Miss Celie’s Blues)

No centro movimentado de Copacabana, as duas se encontraram no início da madrugada. Amigas desde não sei quando. Amigas de muitas histórias. De muitos fatos cruzados que as reunia ainda mais. Amigas de infinitos porres, centenas de shows, um punhado de romance, duas ou três brigas feias e o tal do amor, que nos mantém fiéis, como um cão. Amigas de alguns segredos íntimos, algumas mentiras necessárias e uma boa cumplicidade acompanhada de um querer bem que volta e meia causava um conforto mãe só de pensar que uma existia na vida da outra e era bom demais saber de alguém tão atento, testemunha viva dos teus dias.

A cerveja na mesa:

- Depois ele pegou a mochila e saiu do apartamento.

- Mas ele te disse o motivo?

- Não vai rir?

- Não sei.

- Ele diz que a minha vagina não tem profundidade.

- Como?

- Que o sexo precisa ser controlado demais porque ele não consegue relaxar. Ele tem medo de me machucar.

- Essa é a desculpa mais surreal que eu já ouvi na vida. Quem é que diz para uma mulher que a vagina dela não tem profundidade? O que ele precisa? De um túnel onde ele possa transitar livre e selvagem?

- O que me irrita mais é o discurso dele. Ele diz que entende a situação, que entende que é bem dotado. Sabe que essa história de pau grande me irrita tanto. Ele pensa que o pau dele é o maior dessa cidade. Que não pode se adaptar a uma situação nova porque o dono dele é tão especial e superior, que é mais simples trocar de namorada do que tentar uma solução.

- Mas ele é grande mesmo?

- Ele é comum, normal. E você sabe que eu tenho bons parâmetros.

- Eu sabia que ele era um idiota. Mas eu não sabia que ele era um canalha também.

- E certamente para promover a fama de bem dotado, ele vai contar para todo mundo o motivo aparente da nossa separação.

- Ele não faria isso.

- Ela vai fazer, pode ter certeza. Não me incomoda que as pessoas saibam, eu não ligo nem um pouco para o que os outros pensam. Dane-se se eles querem desperdiçar o tempo deles formulando opiniões e idéias sobre a minha vida. Só não acho justo porque é mentira. A verdade é que a gente não estava bem. Sabe quando você empurra uma relação sem expectativa, sem esperança, sem desejo? Você não sabe muito bem porque faz isso, mas você faz porque os amigos são os mesmos, porque romper vai criar outra série de situações que a gente vai ter que enfrentar. Então por preguiça, por comodidade, por falta de coragem, a gente deixa acontecer.

- Até que alguém invente uma justificativa grosseira e resolva ir embora.

- Exato. Sabe que eu contei para a minha irmã e a gente teve uma crise de riso de desligar o telefone sem conseguir concluir a conversa? É tão calhorda. Tão absurdamente calhorda.

- Intimamente calhorda.

- Imagina se os nossos órgãos sexuais começarem a virar desculpa para qualquer discussão relevante? Qualquer fim de relação.

- Vou embora porque seu pau é torto demais.

- Seus mamilos me incomodam e por essa razão plausível, nós terminamos por aqui.

- Olha, eu te amo, mas o seu saco é enorme e me causa uma aflição medonha.

- Os homens são tão absurdos.

- As pessoas são absurdas.

- A gente deixa de lado meses de convivência. Dias e mais dias de cuidado, daquele cuidado de renovar os votos de confiança, de carinho, de tesão e estar atenta para não descuidar, para não deixar desandar. Tudo isso para depois lembrar desse tempo, desse tempo precioso e mais uma vez, sorrir para dentro um sorriso de decepção. De decepção pelo descaso. Um brinde?

- Ao descaso? Jamais. Um brinde ao acaso! Sempre ao acaso. Que lava qualquer nó não resolvido. Qualquer senão atravessado.

- Ao acaso, então.

- Não desanime! Não é da nossa natureza o desânimo!

- Não é, eu sei. É que essa sensação é tão aflitiva. Por mais que eu saiba que é uma questão da soma dos dias, entende? Precisa respirar fundo. Não é mais me trancar no quarto e chorar até esgotar o sofrimento. É acordar cedo para o trabalho e pedir secretamente para ter forças para suportar o dia. Sabe que ultimamente eu tenho rezado ao acordar? Eu sempre tive minha conversa com meu Deus particular, quando eu ia dormir.

- Deus particular?

- Um Deus que não é esse da estampa das capas das igrejas, mas um Deus que olha por todos nós e está o tempo todo em todos os lugares. Toda noite, antes de dormir, eu rezava, conversava, agradecia, pedia. Agora eu rezo ao acordar. Eu peço para o dia. Eu agradeço pelo dia. Pelas próximas horas. E a gente caminha lado a lado. Pode parecer besteira...

- Não parece.

- Ou algum tipo de esquizofrenia, mas eu me sinto fortalecida.

- Acho lindo você dialogar com algum tipo de fé. Nós sempre fomos tão alienadas.

- Outro dia eu assisti uma missa. Eu passei pela igreja, entrei e sentei no banco mais próximo da porta, achando que poderia escapar rapidamente. Eu assisti a missa inteira. E saí de lá tão serena. Tão mais fortalecida.

- Eu espero que a gente não se transforme em duas beatas.

- Não é para tanto. Mas faz um bem imenso a gente acreditar em algo que a gente não compreende bem. É uma fé elástica. Tem momentos de mais intensidade. Outros momentos de acreditar e simplesmente acreditar. O mais importante é que é uma fé que não nos desaponta.

- Vamos pedir a conta?

- Vamos ver as pedras do Arpoador?

- Se eu subir as pedras tonta assim, é capaz de não retornar.

- Como você é dramática.

- Esse corte de cabelo te fez tão bem.

- A gente muda para refletir. Para a mudança reverberar pelo corpo, por dentro, um belo eco. Obrigada.

- Linda.

Um pouco mais tarde, um pouco mais bêbadas, na segurança de seus apartamentos, já preparadas para deitar, telefonaram-se. E conversaram mais algumas horas, como se a madrugada inteira não fosse suficiente. Sorriram, trocaram frases sem o menor sentido, as delícias do álcool. Trocaram frases diretas, com sentido absoluto e irrepreensível, armadilhas do álcool. Até que uma sugeriu a brincadeira: vamos listar desculpas absurdas para o fim de um romance? A gargalhada gerou outras muitas gargalhadas. As desculpas surgiram aos montes e poderiam catalogar por tema, se houvesse interesse. Depois de tanto sorrirem do seu particular teatro do absurdo e tocar vez ou outra na realidade tão absurda quanto, Milena encerrou a ligação com a desculpa mais absurda e também mais fantástica que alguém poderia entregar a alguém para o fim de qualquer fim:

- Eu te amo, é isso. Por isso eu vou embora. Porque eu não suporto o amor.

E desligaram para o dia nascer.

segunda-feira, março 02, 2009



O VISITANTE de Thomas McCarthy

"Eu também tenho algo a dizer
Mas me foge a lembrança
Por favor, telefone, eu preciso
Beber alguma coisa, rapidamente"

(Sinal Fechado / Paulinho da Viola)


O encontro aconteceu dois dias depois do anúncio de que o Salgueiro era o campeão do Carnaval carioca. Jorge tinha chegado de viagem no final da tarde. Deixou a bagagem no apartamento, tomou um banho e telefonou para o amigo. A cerveja, as risadas, a saudade e a franqueza habitual de gente que se conhece tanto, que vez ou outra, esquece do cuidado, mínimo óbvio.

O termômetro marca trinta e nove graus.

- Faz muito tempo que eu não aproveito tanto o Carnaval – Jorge brindando.

- O meu foi tranqüilo. Eu saí duas tardes. Descansei, vi filmes, dormi.

- Sexo?

- Como?

- Ninguém? Carnaval, essa cidade quente, cheia de turistas, me parece óbvio.

- Sexo no carnaval é óbvio. E você?

- Eu aproveitei bem Recife.

- Não duvido.

- Encontrou o pessoal?

- Ninguém.

- Você cada vez mais distante.

- A quilometragem entre os espaços é a mesma. Não é distância. Outra cidade, outro pais, isso é distância. Quando você não vê o outro porque é impossível geograficamente. Aqui no Rio de Janeiro, não existe essa conversa de ‘vou me afastar’ porque todos os caminhos e todas as pessoas se cruzam o tempo todo.

- Você se afastou.

- Eu estou no mesmo lugar onde eu sempre estive, da mesma forma que todos estão nos mesmos lugares. Eu deixei de estar. É tão mais fácil me acusar de sumido e não mover nenhuma atitude para a aproximação.

- Esse papo me cansa.

- A mim também. Não tenho que dar explicações. Reafirmo: estou no mesmo lugar.

- Se você saiu duas tardes, deve ter encontrado alguém.

- Sim.

- E?

- Qual o seu interesse?

- Saber.

- Para satisfazer a curiosidade? Para poder me dizer que seus casos em Recife foram mais interessantes e cinematográficos?

- Para saber de você.

- E você?

- Um de cada vez ou você vai transformar essa conversa em uma competição?

- Conheci um cara. Na Avenida Rio Branco. Segunda de carnaval.

- Deixa eu adivinhar: dezoito anos, sarado, sem saber falar português muito bem.

- O contrário: quarenta e dois anos, calvo, corpo no lugar, uma conversa boa.

- Um tiozinho não combina com você.

- A gente se atropelou literalmente. E as intenções ficaram claras desde o primeiro momento. Não houve enrolação, perda de tempo. A gente se entendeu.

- Você não gosta de relações simples.

- O que não significa que eu não possa arriscar.

- Arriscar não é muito a sua praia.

- Você quer provar que me conhece bem?

- Que você é fã do improvável, eu entendo. Mas o que te motiva é justamente o grau de dificuldade. Quando é fácil, quando é simples, você sai fora.

- Blá blá blá.

- Fale mais sobre ele.

- Empresário, mora em Miami, pelo menos diz que mora, não quis entrar em dúvida. Ele disse, eu acreditei. Veio para o Rio para visitar a família, desfilou ontem na Vila Isabel. Nos conhecemos quase no final do segundo-tempo. Nos esbarramos no início da tarde e ele tinha um vôo para São Paulo às 19 horas. Ou seja, não tínhamos muito tempo.

- Um bom motivo para apressar os passos, não? Dizer que precisa pegar um avião.

- Eu vi a passagem, ele realmente precisava. Mas acho que você tem um pouco de razão. Quanto mais o tempo passava para nós dentro daquele quarto de motel, mais a impossibilidade se fazia presente. Quero dizer que de simples, não tinha muito. Eu conheci um cara com prazo de validade, entende?

- Entendo.

- Quanto mais se aproximava a hora dele me deixar, mas encantado eu ficava. Mais entregue eu me permitia ficar. Talvez por pressentir o ‘nunca mais’ tão presente. Talvez porque eu quisesse ouvir ele me dizer ‘que pena que só te conheci agora’. E ele me disse. E eu concordei. E a gente ficou um tempo se fazendo carinho. Ele me deu um cartão, com e-mail, telefone, nome, sobrenome. ‘A gente ainda se esbarra’, ele disse.

- Me pareceu especial.

- Foi gostoso. Eu penso que essa questão da impossibilidade irreversível, redimensiona os fatos. Foi gostoso, eu não vou negar. Foi de fato, um encontro sexual bacana que envolveu não só o desejo de saciar a fome dos corpos, mas também uma fome de atenção. De carinho. De dar e receber carinho. Eu só não sei se teria sido tão especial se, por exemplo, eu soubesse que ia esbarrar com ele amanhã.

- Você só confirmou tudo o que eu disse.

- Eu, o mais previsível dos caras.

- Eu não conheci ninguém. Passei o carnaval com amigos. Foi muito divertido, uma galera animada, cerveja e muito calor. Mas não conheci ninguém.

- Não quis?

- Não aconteceu. Às vezes a gente desliga esse interruptor. A gente não olha ao redor. Não deixa o olhar de fora, penetrar.

- Eu sei como é.

- E nós dois?

- Amigos?

- E nós dois?

- Amigos.

Os olhos nos olhos brilhando. A possibilidade de retomar um assunto não resolvido. Travado. Não discutido. Pouco iluminado. A noite brilhando, o verão faz com que a gente atravesse questões, como quem não percebe detalhes. A temperatura é alta e no brinde de outra garrafa de cerveja, preferiram não tocar no assunto protagonista, que os desperta e os maltrata.