BEIJANDO JESSICA STEIN de Charles Herman-Wurmfeld
I
- Há quanto tempo?
- Não sei precisar o tempo. Meses, semanas, não sei. O que eu sei é que quase todos os dias eu desço a rua e a gente se encontra na mesma esquina meio afobados, na correria dos minutos. A gente se encontra e desce a rua juntos, no mesmo horário. A gente caminha próximo um do outro até chegar à estação do metrô. E uma vez na plataforma, nós entramos no mesmo vagão. Quase sempre. Até que depois de vinte minutos, trinta, eu não sei do tempo, o Centro da cidade nos separa mais uma vez e nos perdemos pelo dia.
- Nunca houve contato? Você nunca se apresentou?
- Não.
- ele nunca disse nada?
- Nada.
- No mesmo vagão do metrô, uma vez, nós ficamos tão próximos. Tão cheio, tantas pessoas. Nós tão próximos, se eu me concentrasse um pouco eu poderia perceber o movimento da respiração dele. O perfume da barba por fazer. O Cheiro da pele e o ritmo do corpo ao se movimentar dentro do movimento do trem. Tão próximos. Eu percebia ele me encarar sem que eu o encarasse. E quando me enchia de coragem e o encarava, algo fazia com que nosso olhar não se encontrasse. Como as linhas do trem que não podem se cruzar. Como as linhas do trem que fagulham ao maior atrito. Existe algo de impossível entre nós.
- Elabore.
- O nosso olhar não se encontra diretamente, eu falo de olhos nos olhos, o reconhecimento. A retina identificando o outro como uma possibilidade real. Alguém para ancorar. Se a gente se olha, além do atrito, da fagulha, há também o anúncio de um acidente. De um provável acidente de percurso. Então nós nos percebemos e também nos acostumamos a descer a rua todos os dias, confortavelmente interessados um na presença do outro, flertando com a possibilidade, mas não passamos disso.
- De?
- De um desejo.
- Todas as suas relações são platônicas.
- Falar, me apresentar, entrar na vida, tudo isso seria desfazer o novelo.
- Realidade.
- O que eu quero dizer é que eu gosto da sensação que o mistério me causa.
- Você precisa de realidade.
II
Nós caminhamos juntos por quase trinta minutos e não trocamos muitas palavras. O teu telefone em urgência e eu entendo do querer, não compreenda essa observação como um irritado puxão de orelha. Em absoluto. Precisava caminhar, esse inverno carioca de céu azul que a gente se adapta e luta com as armas disponíveis. Mas eu precisava sair do teatro e enfrentar o asfalto, o início da noite, o vento gelado no rosto, as ruas pela frente. Eu precisava caminhar. Traçar um ponto de partida e algum destino e me deixar conduzir. Já sentiu vontade de ir em frente? Sem a preocupação com o horário, com os compromissos ou o universo ao redor? Ir adiante. Caminhar, sentir os músculos em ação, o corpo em movimento, quebrando a inércia. As ruas pela frente.
Eu não sei se você espera de mim alguma palavra. Justamente pelo fato de sempre te deixar muito claro o que penso. Ou quase sempre sinto. Histórias que se repetem me cansam. Cansam tanto a ponto de não querer mais. Porque já conheço os vícios, já decorei as reações, já estou treinado para reagir e nesse momento, tudo o que parece mecânico não me interessa. Sim, eu compreendo. A pessoa é outra, então tudo é diferente porque é outro amontoado de histórias que encontram tuas histórias e nesse encontro, nesse xis da caminhada, o enredo muda, os detalhes tecem novos cursos, a cadência é outra. A cadência sempre será outra porque o dia também é outro. Estou parecendo a Elisa Lucinda com o parem de falar mal da rotina, o que não me incomoda porque o discurso é o mesmo. A rotina não é um problema porque cada minuto é uma novidade, eu sei que estou sendo óbvio, mas ser óbvio justifica os meios, os fins e todo o começo.
Histórias se repetem, meu caro. Os dias, nunca. Além do coração, o que me chamou a atenção antes de chegar até aqui foi o tamanho das tuas asas e o teu amor pela liberdade. A tua relação de intimidade com o momento, o instante de ser quem você é, sem espelhos, farsas ou complicadas tramas. Você, um homem de quase trinta anos, fã da cantora cor de rosa e carvão, tão interessado pela vida – dos grãos e da colheita – e pelas pessoas que se aproximam de mansinho. Tão atento, especialmente cuidadoso. Tão simples no embate entre o teu saber, tua mochila de verbos e o outro. Foi na clareza da simplicidade que pude observar tua liberdade nua, inteira, tão próxima, ao meu alcance. Então quando falo em repetições que me cansam, o mecânico e seus reflexos imediatos, eu quero te dizer para que não se perca de mim. Não se perca, enfim. A gente nunca sabe o que virá.
Não se perca, enfim. Para que se cumpram os retalhos da colcha que delicadamente e muitas vezes de maneira arrebatadora, começamos a tecer. Sem perceber.
III
Perdoe senhor, se teus olhos não me impressionam mais. É que o teu jogo repetiu os vícios. Deu game over e recomeçou sucessivas vezes. Eu busco a segurança da confiança. O abismo da certeza. Preciso ficar bem e estar ao lado de quem me faça bem. Quem me queira bem. Ao teu lado, as paredes afunilam. Ao teu lado, é preciso alimentar lobos a cada minuto. Despistá-los. Não quero ser trampolim. Ou impulso. Quero apenas ser o amigo ou o amor. Ou os dois. Tão inexato assim. Compreendi tuas sugestões mesmo sem as palavras exatas.
É hora do vôo solo.
Game Over.
Fatality.