Obrigado pelo tempo de leitura.
Deixe seu contato para saber de futuros trabalhos.
Um beijo
Quando eu conheci o Marcelo, de todos os detalhes que eu não me lembro, um deles há de sempre ser aquele pelo qual eu vou me recordar não do nome ou da pessoa, mas também da atmosfera: fazia sol. Muito sol. E se você é carioca ou se já esteve no Rio de Janeiro em um dia de muito sol, vai saber que o céu costuma acompanhar o sol em um azul muito forte, quase de pintura e todas as cores da natureza ganham intensidade naturalmente. As folhas das árvores ficam mais vivas. Os carros nas ruas acendem suas formas e cores. Os traços das pessoas se evidenciam. A arquitetura da cidade ganha novos sentidos. Tudo fica mais nítido. Mais natural, eu arriscaria. Quando eu conheci o Marcelo, era um dia azul e quente, embora um tanto distante do verão. Início da primavera com resquício forte da baixa temperatura do inverno, que para nós é algo em torno dos dezoito, vinte graus. Um amigo me soprou que seria realmente interessante para mim conhecer o Marcelo. E contrariando toda a minha facção anti-social, saí curioso. Instigado pela propaganda gratuita.
Ele chegou usando jeans e uma camiseta preta. E antes do perfume, havia o sorriso e um pouco antes do sorriso havia um rosto muito bonito, com traços fortes, a barba clara e rala, os olhos azuis como o céu e o cabelo liso, muito liso que lhe cobria o rosto e em alguns momentos boa parte dos olhos. Não era exatamente alto, mas havia algo nele que causava essa sensação de altura, não exatamente imponência, mas altivez. E parecia caber e não só caber, mas dominar seu corpo e suas atitudes em perfeita harmonia. Era calmo, silencioso e olhava diretamente nos olhos. Seu interesse inicial era pela pessoa e embora sua beleza despertasse o interesse de homens e mulheres, ele parecia disposto a fazer compreender, logo em um primeiro momento, que o motivo principal não era, de fato, o motivo principal para qualquer aproximação.
- Eu te imaginava mais sério – ele me disse.
- Mas a gente nem conversou.
- Pelo que eu já ouvi de você, pelo que eu já li, eu imaginava um homem com cigarro na mão, umas vodkas ao redor, um olhar mais triste e você...
- Eu?
- Você tem essa cara de menino e seu olhar é tão diferente do que imaginei.
- Diferente?
- Vivo.
- E isso deveria ser ruim? Um olhar vivo eu encaro como um elogio.
- Não sei se foi bacana te conhecer. Eu gosto mais da imagem que eu tinha.
- Sua imagem é um clichê que eu fico aliviado de não corresponder. Viu como rimou?
- E eu?
- Você?
- Eu correspondo à imagem que você criou?
- Posso ser chato? Velho? Irritante? Direto?
- Deve.
- Eu não criei imagem alguma. Me disseram apenas que eu deveria te conhecer. E me disseram também que você era um cara bonito, muito bonito, que as pessoas caíam em cima. Não entendi ainda a associação que fizeram entre nós dois. Não sei qual foi o santo que de repente, achou que nós poderíamos nos dar bem, mas eu estou aqui. Eu vim para te conhecer. Não há como negar ou deixar de perceber o homem bonito que você é. Essa na verdade era a imagem que eu tinha de você. Um homem bonito, mas não tive curiosidade ou desejo de te imaginar porque eu não tenho mais dezoito anos. Então não posso te dizer que você não corresponde minhas expectativas, porque não houve expectativa. E um homem bonito é um homem bonito, não há muito que elaborar.
- Mas beleza é um conceito subjetivo.
- Papo de gente feia. É só um fato. Você é. Ponto. Próximo assunto?
- Nós temos amigos em comum.
- Essa cidade é minúscula.
- Um dia um conto seu caiu nas minhas mãos. Fiquei com vontade de te conhecer.
- Opa, que bacana. E você trabalha, namora, estuda, têm filhos?
- Trabalho, estudo, namoro, não tenho filhos.
- Gosta de cinema?
- Mais do que o filho que eu ainda não tive.
Nos encontramos mais três tardes em um período curto de dois meses. O contato inicial era sempre muito difícil, muito desencontrado, mas a conversa realmente ganhava intensidade, velocidade e paixão quando o assunto era cinema. Os atores, as cenas prediletas, os filmes, festivais, diretores, decepções, grandes obras, curiosidades.
No último encontro, ele pediu o número do meu telefone. Eu não dei. Disse que era melhor a gente não alimentar o poço dos desejos. Ele perguntou qual desejo. Eu sorri em silêncio e me despedi acenando.
Até que uma madrugada, o computador ligado e o programa de conversa piscou o meu nome:
- Olá você.
- Marcelo?
- Te atrapalho?
- Não. Que surpresa.
- Te encontrei.
- Não me escondi de você.
- Posso ligar a câmera? Assim você me vê, fica mais fácil a conversa.
- Sem problemas.
Ele usava um casaco preto. Quando a imagem tomou forma na tela do computador, ele estava com o gorro e o casaco fechados. A barba feita. Os olhos atentos. O rosto lindo. Passei a mão na tela do computador para saber a sensação. Como se eu pudesse tocá-lo.
- O que você faz em casa? – eu resolvi arriscar qualquer conversa.
- Qual o mistério de ficar em casa?
- Nenhum. Eu adoro a minha casa. Mas achei que você fosse da madrugada. Festas, bares, noitada.
- Todos somos, não é?
- Alguns menos.
- Posso tirar o casaco?
- Você quer minha permissão? Pode, claro que pode.
Quando ele abriu o casaco e abaixou o gorro eu tive a sensação. Era como se eu fosse um artista de circo. Era como se eu resolvesse me equilibrar no arame. Ou saltasse de um trapézio para o outro à espera de uma mão que me agarrasse e me salvasse da queda. Era não saber. E estar absolutamente envolvido pelo mistério sem nome de uma interrogação irresistível e sedutora, com os cabelos bagunçados e uma camiseta branca que revelava os músculos dos braços, a linha dos traços do pescoço. Uma geografia que eu não conhecia e se mostrava, com a minha permissão, dentro de uma cadência que se estabeleceu sem que eu percebesse.
- Eu comprei um brinquedo hoje – ele me confessa.
- Um brinquedo?
- Um brinquedo sexual. Quer ver?
Havia o desejo de dizer boa noite e desligar o computador.
Havia em mim a curiosidade de saber onde o desejo ia me levar.
Ele abriu o sorriso.
Ele abriu.
Eu não soube dizer não.
Eu não.
Ele brincou com os meus sentidos.
Ele fez.
Eu aceitei a ousadia.
Eu não fujo.
Ele soube seduzir.
Eu disse sim.
Ele conduziu a situação com muita dignidade.
Eu consenti.
Ele mostrou intimidade e soube compartilhar.
Eu me arrepiei.
Ele abriu o zíper.
Ele abriu.
Ele soube jogar.
Eu sei.
Ele fez o jogo limpo com as luzes acesas e a intenção sem máscara apontando para mim.
Eu não corei.
Ele abriu o cofre da intimidade.
Eu decorei a combinação.
Ele me mostrou o início, o meio, o fim e o depois.
Eu não me perdi.
Ele fez brincadeiras.
Eu me diverti.
Ele abriu um sorriso.
Eu abri.
Quando eu conheci o Marcelo, eu não sabia exatamente o que ia mudar, mas eu sabia. Como uma certeza camuflada que se mostra lentamente, eu sabia. Eu soube.
Só não contei a ninguém.
Eu sei.