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segunda-feira, novembro 02, 2009



SEDUÇÃO de Lone Scherfig

"Numa escala de um a dez, com dez sendo o parto,
isto será um três"
(Miranda July/ Sinal de nascença)

A cidade grande nos dá oportunidades. O desejo que trai. A ironia dos acontecimentos. O corpo segue os instintos feito um mapa. Você paga, entra e procura. A ironia. A natureza sempre encontra um meio, ele lembra de um filme onde a mulher dizia assim. O problema é que toda ação gera uma reação. Às vezes imediata. Outras vezes anos depois. Horas. É um rito. A gente observa, marca o alvo, se aproxima e ao estabelecer contato, exibe todo o nosso arsenal irresistível de sedução. Que pode resultar em cama. Em sexo bom, daqueles de lavar a alma, enxurrada de sem vergonhice despudorada. Um telefone trocado. Um talvez outra vez. Um talvez nunca mais. Quem é que pode prever? E quando o inesperado encontra o inesperado?

- Você não quer saber meu nome?
- Não me importo se você não quiser dizer.
- Curioso.
- Por que?
- Porque foi bacana.
- Bacana?
- Acima da média. E não é tão simples encontrar alguém que tenha o mesmo ritmo que você. Que te complete...
- Não exageremos.
- Certo. É que você esse tipo de encontro...
- Casual.
- Sempre resulta em um momento onde o outro estabelece suas regras. Acho até meio broxante esse papo de ‘não faço isso’, ‘não quero aquilo’.
- Concordo.
- E nós nos vimos.
- Sim, houve um flerte.
- E aconteceu naturalmente. A gente foi se percebendo, se conhecendo. Durante.
- E por essa razão você quer me dizer o seu nome, de onde você é, esses detalhes que nos situariam geograficamente com mais segurança. Para que eu te encontre outra vez. Para que a gente deixe de ser casual.
- Apenas para me apresentar, para que a gente possa...
- E se eu não quiser saber?
- Se conhecer, estabelecer algum tipo de relação.
- Não conta se eu não quiser saber?
- Me surpreende, certamente.
- E se eu não quiser futuro? Se o que houve entre nós, se do momento do encontro até o clímax, até agora. E se isso se bastar?
- Mas o meu discurso, todo esse papo é justamente para quebrar, para tentar quebrar essa situação, que eu sei que você deve conhecer bem, eu conheço. Chegar, flertar, aproveitar um tempo enquanto um estranho te toca, enquanto você toca um estranho até que os dois se satisfaçam e nunca mais se encontrem pela cidade. Não se encontrem nunca mais na vida. Você não sente vontade de prolongar? De saber como seria fora daqui? Você não pensa nisso?
- O que te faz pensar que eu tenho os mesmos desejos que você? Uma transa boa? Umas horas juntos, sem trocar nenhuma palavra? Só saliva. Gemidos. Porque foi tudo o que nós trocamos.
- São oito da noite.
- E?
- Nos encontramos antes das três da tarde. O tempo passou e a gente não percebeu.
- O tempo – interrompeu a fala como quem pensa melhor no que vai dizer.
- Escuta, eu não quero te encher o saco. Pensei que seria bom sair do lugar comum. De ver como é que fica lá fora. Tomando uma cerveja, jantando, indo ao cinema. Apenas te conhecer. Isso seria prolongar ou tentar aproveitar um pouco mais uma sensação que não fosse tão... Efêmera. Mas se você não quer, se você prefere o teu indestrutível anonimato, sem problemas. Normalmente eu também prefiro assim. Sem nomes, sem satisfação, sem detalhes. Sem identidade. Sem nada.

Houve um momento de hesitação de ambas as partes. Antes de balançarem suas cabeças em despedida, sem aperto de mão ou qualquer frase automática, os dois rapazes, talvez um mais do que o outro, não importa, pensaram que devido à insistência charmosa de um homem sem nome ou a necessidade de não se deixar dobrar, pensaram que talvez, vai saber, talvez arriscar, sem lances altos, sutilmente, surpreendidos pelo bom inesperado, esse camarada sacana, arriscar também é uma opção. Mas se embaralharam aos outros e voltaram ao que era mantes do acaso. A cidade os engoliu de volta, impiedosa. E por um bom tempo foram apenas a lembrança de um rosto sem nome, sem história, indefinido.

Quando se encontraram novamente, três, quatro meses depois, a situação era radicalmente diferente. O apartamento de Botafogo recebia um pequeno grupo de amigos para comemorar o aniversário de Amanda, amiga antiga de um dos rapazes. Atual namorada do outro.

- Fred, esse é o Vini, meu amigo de infância, que eu tanto te falei. Vinicius, esse é o Fred, meu namorado, responsável pelo meu sorriso aberto e minha pele macia.
- Você é dermatologista? – irônico.
- Sou professor.
- O Fred é coordenador do curso de psicologia da UERJ, Vini. Só leciona porque não consegue largar os alunos.
- Psicologia? Interessante.
- Vou deixar vocês à vontade – ela se dirigiu para receber um grupo de amigos. Animados.

A cruel ou fantástica ironia dos fatos. Ou ambas as alternativas.

- Fred, então?
- Frederico.
- Sabe que eu cheguei a fantasiar seu nome? Francisco, Jorge, Ricardo, Henrique. Depois eu pensei na sua profissão. Cheguei a pensar que você poderia ser estudante. Um rosto tão jovem. Depois imaginei você trabalhando em uma loja de cd’s, uma livraria, uma locadora. A barba te fez bem. Ficou muito bem. O seu rosto ficou forte. Delicado. Os seus traços são delicados, mas a barba te fortaleceu. Lindo. Ainda mais.
- Eu não pensei mais no nosso... Eu tenho uma característica que eu gosto muito: eu não sou curioso. Então não fantasiei. Outra característica minha: eu adoro a realidade.
- Eu falei de você para a Amanda. Nosso encontro exclusivamente sexual. Seu mistério quase encantador, quase grosseiro. Meu encantamento.
- Por favor, não comente nada.
- Não sejamos ridículos. Sabe que eu pensei em ficar em casa? Esse frio, essa chuva fina. E eu ando cansado, o corpo exausto. Tenho uma insônia que qualquer dia me devora. Mas eu pensei na Amanda e o quanto ela ficaria feliz de me ter aqui hoje. Nem nas minhas melhores, nem nas minhas piores fantasias, eu imaginei te encontrar nessas circunstâncias.
- Você não falou de você.
- Pensei que não houvesse curiosidade.
- Não há. Quer dizer, nenhuma específica. Mas você já sabe tanto. Seria justo eu saber um pouco sobre você.
- Eu sei o seu nome. A sua profissão. Sei que você namora a minha amiga. Não é tanto.
- É o suficiente. Não acha? Ou resolveu fazer mistério?

Silêncio entre o olhar sem vacilo dos dois.

- Então o jogo é virar o jogo?
- Não. O jogo é não me aprofundar. De que adianta eu te contar, te informar, te situar, se não dá mais para ir adiante?
- Como?
- Não dá mais. Agora não dá. Você é namorado da minha amiga.
- Desde quando uma conversa vai mudar essa situação? Você é sempre assim? Começa a partida antes de estabelecer as regras?
- Sabe o que é? Eu ando sem paciência para essas alegorias. Eu te conto o que você quiser saber. Pergunte. A gente transforma essa situação ridícula em uma conversa, uma boa conversa, eu espero. O que eu não quero e eu pretendo me manter terrivelmente fiel ao meu pensamento, é falar sobre todas as coisas, te informar sobre os meus dias, tão banais, olhando dentro dos seus olhos, lindos, azuis.
- Verdes.
- Vermelhos, imaginando que por trás de todo o meu texto existe qualquer sombra de esperança de sair daqui e repetir o que houve antes, meses antes, entre nós dois. Você é sedutor. Mas eu resisto. Eu tenho idade para saber como resistir ao teu charme ensaiado.
- O que houve antes entre nós...
- Foi bom. Mexeu comigo de uma maneira que eu não vou saber te explicar. O toque, a maneira como a gente... Era como se eu tivesse, enfim, encontrado um jeito de... Eu gostei. Tanto e tão mais do que eu deveria. E depois você foi embora sem pistas e eu nunca mais voltei.
- Eu passei lá duas ou três semanas depois.
- Eu nunca mais voltei lá. Com medo de te encontrar e não saber o que dizer ou agir. Com medo de te ver com outro cara e perceber que eu fui o que eu fui: um escape de uma tarde de tesão.
- Fomos os dois.
- Certamente, eu não estaria ali por outro motivo. Ninguém procura uma relação em um ambiente onde as pessoas mal se olham. Conversa é luxo. Eu sou funcionário público, sabe? Eu detesto o que eu faço, mas procuro fazer da melhor maneira possível. Tenho outras atividades paralelas, como todo bom brasileiro. Eu sempre quis descobrir algum ofício em que eu pudesse afirmar que eu realmente sou bom. Mas ainda não encontrei. Eu tenho trinta e um anos e eu não sou bom em nada. Pior do que não ser bom é ser razoável em quase tudo. Eu tenho amigos, bons amigos, mas ando cada vez mais afastado da vida social. Eu não apareço nas festas, não telefono nos aniversários, não escrevo mais cartas. Eles sempre cobram a minha presença, antes brigavam comigo. Agora acho que já acostumaram. Desistiram. Insistir cansa, eu compreendo. Faz muito tempo que eu não saio de casa para dançar. Para um encontro. Alguma possibilidade de amor, sabe? Essa cidade e toda essa tecnologia facilitam muito esse afastamento. Amenizam uma vida solitária. Eu detesto esse papo de solidão, sempre me remete a uma autopiedade que eu desprezo. Mas o que eu percebo é que eu ando cada vez mais recluso, longe de tanta gente bacana, que me manda notícias pela internet, que me alimenta de todas as notícias inúteis que todos os dias todas as pessoas que estão lá, socializando, têm acesso. Então quando eu tenho tesão, eu saio de casa. Eu chego lá, eu observo por alguns minutos, eu escolho alguém que me atrai, chego perto e tudo acontece da forma mais simples. Menos complicada. São duas pessoas com o mesmo desejo. Embriagadas pela escuridão e pela ausência absoluta de satisfação. Não precisamos nem dizer os nossos nomes. Não é? Ali a gente se encontra. Ali a gente se sacia, lobos famintos que lambem os beiços até que a fome se manifeste. Depois eu chego em casa, vejo os filmes, leio os livros, ouço as canções. Me entupo de informações que são tão rápidas que não duram. Feito um desses encontros casuais. O telefone toca cada vez menos. As cartas cada vez mais raras. Como seu tivesse me transformado em um homem invisível. Cada vez mais invisível até que um dia, eu desapareça e dois ou três vão perguntar por mim, sem a certeza de que eu realmente existi um dia. 'Talvez ele seja só uma lembrança de algum filme ou livro que a gente leu por aí', vão dizer. E não vou estar aqui para desmentir, para me fazer existir, para bater no ombro e reivindicar meu espaço, minha não invisibilidade. Onde é que eu ando? Namoro eu não sei mais, eu perdi o pouco jeito que eu tinha para ser cuidado. Porque cuidar eu sei, eu gosto, eu me sinto bem, feliz em cuidar do outro. Mas eu não suporto ser cuidado. Nunca suportei. Me sinto inferior. Incapaz. Atado. Todos os meus grandes amores foram platônicos. Um durou mais tempo do que deveria, foi difícil dizer deus. Ainda é. Então as minhas relações reais, meus homens reais, quase não duraram. Porque eu não sei como deixar que cuidem de mim. Não sei desligar o alerta. Eu sou viciado nessa sensação de estar atento ao que está por trás da intenção. Coisa de ator. Que mesmo sentindo a cena está atento às marcas de luz, cochia, platéia. Eu não sei desligar. Me entregar. Minha madrinha faleceu recentemente. No enterro dela, a minha maior preocupação era com as irmãs delas, se estavam bem, se tinham água por perto, se havia alguém em cima fazendo perguntas inoportunas. Eu não tive tempo de sentir. Eu queria cuidar delas. Estar ao lado. Ontem, quase um mês depois, eu senti uma saudade da minha madrinha. Saudade. De como ela era carinhosa e importante para mim. Duas da manhã e eu finalmente fui chorar a morte dela. Eu não sei me entregar. E isso é tudo o que você precisa saber sobre mim.

Os olhos molhados.

- Eu ainda tô em dúvida se você é realmente um cara fascinante e eu um babaca. Ou se você é só um cara que fala demais.