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quinta-feira, março 11, 2010



HOME de Ursula Meyer


Guilherme,


Aqui tudo é muito diferente. O clima, principalmente o clima. Aí no Rio, quando a temperatura cai para vinte e cinco graus, vocês já separam o casaco. Aqui o inverno é rigoroso. Temperatura negativa. Neve para onde quer que você olhe. E a atmosfera é fria, mas aqui não falo somente da temperatura. Há uma frieza em cada ambiente que você freqüenta. Mercados, bares, lojas, academias e finalmente, a universidade, onde passo a maior parte do tempo. Onde me sinto vivo. Onde sinto realmente que toda essa loucura de sair do Brasil e suspender a nossa vida, faz algum sentido. Embora eu me repita de quando em quando que você me faz muita falta. E você, de fato, faz muita falta e volta e meia eu preciso respirar fundo e tentar algum equilíbrio porque sem você por perto, tudo fica muito mais difícil. Mas depois eu entro na universidade e as aulas são intensas, eu me envolvo e quase sempre gosto muito, deixando de lado qualquer nostalgia, qualquer idéia de ruptura e sorrio em frente.

Não fiz muitos amigos ainda. Falo com mais intimidade com três pessoas. Uma chilena e dois franceses e nos auxiliamos no que diz respeito aos trabalhos obrigatórios e em grupo. As pessoas não fazem muitas perguntas e me parece sobretudo porque elas não têm interesse em ninguém. É cada um na sua, batalhando seu espaço e que assim seja. Falta cordialidade, eu acho. Embora eu te confesse (e você sabe) que não sinto falta de maior contato, daquele tapinha nas costas do 'vamos tomar um chop e virar grandes amigos', tão típico do carioca. Ninguém parece querer contar suas histórias. E isso me faz pensar que ninguém veio aqui para fazer amigos. O que transforma as aulas porque sem esse vínculo da camaradagem, a gente toma ciência todos os dias de que não viemos para turismo. Pode ser viagem minha e pode ser que tudo mude e estranhos sejam apenas estranhos, buscando uma oportunidade de deixar de ser. Mas por enquanto há o interesse do coletivo no que nos trouxe até aqui, que também é muito silencioso.

O apartamento é bacana. Quase pequeno, mas atende totalmente ao que eu preciso. A sala é espaçosa e há estantes embutidas, o que me permite ter livros e filmes sem fazer pilhas e mais pilhas. Aquela cozinha americana básica. E o quarto, além do banheiro. Mando fotos em breve. Ainda estou tentando me ajeitar e dar a minha cara, mas tudo é prático e eu preciso de praticidade. Tô de olho em uma mesa para a sala, que se eu conseguir comprar, levo para o Brasil, quando voltar. A grana da bolsa é mais generosa do que imaginei e se economizar, consigo deixar o apartamento mais confortável. E eu sei que você sabe, que sem conforto eu não sou ninguém. Mas simples. Simples e prático.

Tentei te ligar no sábado, mas desisti. Cheguei a discar o número, mas segurei o impulso porque acho que ainda é muito cedo pra gente se ouvir. Você não acha? Eu ia começar a chorar no teu ‘alô’ e poderíamos nos provocar as birras, implicâncias, satisfações, cobranças. Questões. Perguntas sem resposta. Ainda. Achei que escrevendo uma carta, nos moldes de um antigamente que eu sequer me lembro (papel, caneta, envelope e correio), ela seguiria o destino com mais calma, com mais tempo para ser recebida. E seria uma surpresa que todo esse tempo – o da escrita, o do transporte e do destino cumprido – amorteceria o impacto. Entende? Também não sei se me entendo, mas um e-mail é um clique. E é fresco. É quase o momento do impulso. E um caminho traçado, objetivo, apesar de longo, não sei, isso pode querer dizer alguma coisa. Carinho, talvez. Cuidado. Essas coisas que o tempo define melhor a sensação.

Eu sei que não deveria falar em tempo. Afinal, eu me mudei em duas semanas. E eu já estou tentando me justificar, embora eu não queira. Sei que não conversamos sobre todos os assuntos que deveríamos ter conversado. E agora pensando calmamente, talvez as nossas vidas possam se ajeitar sem que tenhamos que nomear tudo o que acontece. Ou vai acontecer. Sei também que te conhecendo bem, você vai me mandar ir para o inferno porque no seu universo as coisas precisam ser nomeadas. Eu até concordo com você, mas é que eu também acho que dar significado todo o momento, é cansativo e apaga um pouco da aventura. E eu nunca tive coragem de te dizer isso porque eu tinha medo de te magoar. Magoar quem a gente ama nunca foi o meu forte. Ou não? Te escrevo essa carta cheio de cuidados porque consigo enxergar nela frases e passagens que você fatalmente, em algum momento de fúria, vai usar contra mim. O que posso dizer é que esse é um risco que eu preciso correr, afinal não se trata de vítimas e vilões. Depois de cinco anos, aprendi ao teu lado, que ser companheiro é proteger. E que nem sempre, a proteção é o melhor caminho. O confronto, muitas vezes, socorre. Não é?

Pelas minhas contas, você deve inaugurar a loja essa semana. Ou errei o cálculo? Você sempre foi melhor que eu com os números. Mas se ainda não abriu as portas, fica o meu desejo de que tudo corra na mais perfeita sintonia. E que seja da maneira que você sonhou. E tanto trabalhou para fazer valer. Que a decoração que você desenhou tenha ficado pronta a tempo. E se me permitir fazer uma sugestão, leve a samambaia da nossa sala e a deixe viver por lá. De repente, algum funcionário se apaixona e cuida dela da forma como eu cuidava. Você se livraria de uma planta que você nunca teve paciência e seria uma forma de estar presente na loja. O que acha?

Ontem, pela primeira vez, saí sozinho. E fui a um clube aberto ao público gay. Não é muito distante do apartamento, mas precisei pegar o metrô. Fui para conhecer, por curiosidade estrangeira. Quando entrei, vi duas conhecidas da faculdade, que me acenaram um brinde. Eu sabia que elas namoravam porque aqui os casais homossexuais andam de mãos dadas e trocam carinho em lugares públicos. Sem olhares violentos ou represália. Ainda não me habituei, te confesso. Quando vejo dois homens se beijando no campus, por exemplo, por um lado acho o máximo e penso em nós. Mas por outro, acho estranho e meu dark side preconceituoso alarma qualquer sirene de insatisfação. Mas sinto que é apenas uma questão de tempo (mais uma vez ele) para que eu me habitue. Porque é só carinho. Eu não deveria me assustar com amor, veja você. As meninas do bar me pagaram uns drinks e me apresentaram praticamente a todos os homens e casais, como se me rifassem. Quando fiquei bêbado, sumi no meio da pista e cheguei em casa com tranqüilidade. O que é ótimo sinal. Se já sei como voltar para casa bêbado, isso significa que já estou seguro com a cidade.

Te conto do bar só para que você saiba o que ando fazendo. Não penso em outro homem que não seja você. Meu amor. Todos os flertes, os sorrisos, os brindes, tudo isso é só gente animada e urgente. Eu não penso agora em nada afetivo (ou sexual) que não seja com você. E sei que em algum momento, afinal fico aqui mais quatro anos, tanto a sua vida como a minha, vai nos exigir posições e decisões. Mas por enquanto eu sou casado e meu companheiro mora em outro país, onde ele cuida da nossa casa e das nossas coisas. Cuida da loja que ele sempre quis abrir enquanto o companheiro batalha uma especialização.

Eu sinto tanto a nossa falta. A sua. Do sono, da cama, das mãos, do perfume. Do cabelo. Do tempero. Da facilidade. Da segurança. Do sonho diário. Da cueca verde. Do entusiasmo. Do brilho. Da voz. Do timbre. De acordar com a sua voz cantando. Da feira de sábado. Do cinema juntos. Da liberdade de ser teu. Das roupas misturadas. Da torta de chocolate. Da sua nuca arrepiada. Do tempo compartilhado. Do teto rachado eu sinto falta. Sinto falta da presença. Da casa preenchida de vida. Das plantas que você aprendeu cuidar. Das outras plantas que você matou. Das opiniões divergentes. Do óbvio. Do mínimo que você sempre soube enxergar. E reverenciar. Do primeiro dia no nosso apartamento. Das conquistas. Todas e cada uma delas. De te ver adormecer. Do som do seu sorriso. Do silêncio do nosso amor que a gente não inventou.

Eu gostaria muito que você me respondesse. E que estivesse menos magoado. Eu te disse antes e repito para que você acredite. Eu não te deixei. Eu deixei o país. E eu vou voltar, assim que fizer o que vim fazer aqui. Não sei se você vai ter amor para me receber. Não sei se quatro anos matam cinco anos. Eu não sei. Não sei se você quer recomeçar com outra pessoa. Sequer sei se você quer me esperar. Eu nunca te fiz essa pergunta. Acho também que é cedo demais para que a gente tente desvendar toda interrogação. São muitas. Vamos ver como o tempo vai resolver as coisas, te adiantando que eu te amo. E que nesse momento e eu espero que por muito tempo, eu preserve esse desejo de continuar seu companheiro. Como você me mostrou que eu poderia ser. De um jeito que eu jamais imaginei que pudesse ser porque ninguém antes havia me mostrado tanta generosidade.

Porque ninguém nunca me pediu antes esperando um ‘sim’ em retorno.

Com amor,

Alex