TOY STORY 3 de Lee Unkrich
“O exilado é aquele tipo de pessoa que tendo perdido o ser amado continua procurando o rosto querido em cada novo rosto que vê; está sempre enganando a si mesmo, achando que o encontrou.”
Reinaldo Arenas em Antes que Anoiteça
Reinaldo Arenas em Antes que Anoiteça
Alex,
Faz muito tempo que eu tenho essa vontade de sentar e te escrever. Não sei por que não fiz antes. Falta de inspiração muitas vezes porque tempo eu tenho e você melhor do que ninguém sabe que quando o impulso é muito forte, ele encontra sua chance. Por ter percebido que escrever é um ato contínuo de desdobrar as mesmas idéias. Por me sentir esgotado de tantas palavras entre nós. De tantas e tantas e tantas palavras. Que sempre me protegeram porque sublimaram uma série de incapacidades. Porque sempre foram silenciosas e me fizeram parecer alguém muito mais interessante. E isso não é depreciação. É um fato.
Estamos no início da fase decisiva da Copa do Mundo. Amanhã o país volta os olhos para o jogo do Brasil, que aqui passa às três e meia da tarde. Você sempre detestou futebol e prometo não dar mais detalhes. Mas há no ar aquela energia de dever de vitória. Como se estivéssemos diante de uma nova chance. Tempestade. Calmaria. Flores. Esperança que faz com que a gente resgate velhos sonhos. E aposte. Descubra novos desejos. Vez ou outra descubra coragem e mude tudo. A cor, o corte, o jeito. E queira surpreender o outro. O futebol faz isso com as pessoas. Eu acho.
Recebi sua carta. E mais do que ela, recebi acusações. Um tipo de culpa veio junto ao abrir o envelope. Deixei que ela surtisse o efeito. Depois reli. E algo me incomodou. Até que rasguei. Sobre ela e também sobre nós e é preciso que o tempo que existe entre nós, essa elipse enorme, seja levada em consideração. Não me envolva nas suas definições. Não me use para decifrar códigos que eu não inventei. Onde teus movimentos te levaram, só você pode saber. E se não sabe, descubra. Onde ecoa o teu sim. Onde reverbera o teu não. A gente sempre sabe dos defeitos do efeito que o outro nos causa. Então não consigo me encontrar nas tuas palavras. Eu não me sinto parte. O desdobramento do teu raciocínio só te inclui. Ele não nos envolve. E nem me parece uma questão de interpretação, mas de falta de percepção. Antes eu achava que minha irritação crescente, que a falta de tolerância cada vez mais presente, era fruto de alguma crença astral. Dessa astrologia que a gente bica de forma rasa, procurando explicações. Hoje, como um estalo, percebi que não. Que a minha irritação é causa e consequência de uma história não resolvida. E que um episódio sem desfecho acumula questões que se desdobram em nós que deságuam em tantas conversas que não existiram ou silêncios enlouquecedores que se transformaram em muros, em qualquer misterioso ‘não’, em qualquer falha grave na comunicação, que nos impediu a possibilidade de prosseguir em paz. Histórias não resolvidas fazem mal. Impedem. Aprisionam. Estacionam. Aniquilam. Feito um entrave.
Não consigo te escrever. Quero sair da cidade. Passar um tempo longe, sem ter que abrir a boca. Sem me justificar. Ter que enumerar explicações. Ou dizer que não é bem por aí. Que é proibido proibir e vocês não estão entendendo nada, feito o Caetano aos berros. Não consigo conversar sobre nós dois. Toda vez que leio você, entro em contato com farpas. Toda vez que você me escreve eu percebo que não é para mim que escreve, mas para você. Pedindo socorro pela idéia de amor quebrado que você descobriu e se apegou. Como se você me iluminasse as placas de contramão. E não só gostasse da imagem do trânsito caótico sem perspectiva, mas se viciasse nessas curvas que dão na mesma direção. Sem fim.
Por um momento, suspendo o fôlego e penso que talvez. Que hoje. Que a cidade. Que o passado. Que agora. O amor. O coração. Um clic. Um sim. Um gol. Não consigo escrever o que é fragmento. Parte minha. Parte tua. Pensei que talvez o teu, o nosso amor cego tenha criado uma história fictícia e não sejamos, não tenhamos, talvez, a importância imaginada. Não sejamos esses personagens. A grandeza que você teceu talvez seja fruto de um querer imediato que precisava urgentemente ser saciado. Consequência do desejo de ser menos só. Natural, mas armadilha fácil para ambos. Terapia progressiva de uma história que precisa avançar para que eu nos entregue uma nova oportunidade.
Escrever não é exatamente ter coragem. Não é necessariamente conseguir aliar a prática na teoria catalogada. Mas eu quero tentar. E tentar significa ter que encerrar. Nos encerrar. Eu preciso que essa tentativa não seja mais um texto sobre o adeus que eu nunca vou te dar. Preciso desarmar o que parece drama, descortinar peça por peça para que eu possa me revelar te enxergando. Preciso que os fragmentos da história façam sentido no final. Porque soltos no tempo e no espaço, eles me atormentam. Embaralham o que já é confuso. Então eu faço alarme e te escrevo em voz alta, letras maiúsculas em negrito porque eu sou assim. Preciso ouvir o que sinto para ter dimensão da (ausência) de gravidade. Uma antítese ambulante, talvez. Sentir é também não saber. Mudar de idéia. Sacar os acertos do bolso quando perceber que os erros precisam ser admitidos. Contornados. Superados.
Hoje eu estou bebendo água e não há fumaça no quarto. Sóbrio por necessidade. Para observar a vida de dentro. Me deixando levar por uma carta que eu não sei como vai terminar e que eu nunca soube começar, de tanto adiar. Sem nenhum efeito exterior, apenas o que você me exerce. Faz tempo que estar lúcido seja uma sensação recorrente quando penso em nós dois. Mas agora eu estou longe. E outro país talvez seja a distância definitiva que eu precisava para aceitar esse mínimo óbvio e necessário, eu penso, de que eu quero encerrar. Os nós. Nós dois. Gostaria de ter feito isso antes, olhos nos olhos. Mas nem sempre dá. Quase nunca e o bacana é encontrar o jeito.
Te escrever é também buscar energia. Para querer realizar.
Deve haver algum tipo de nobreza em terminar o que um dia teve início.
De maneira que os envolvidos tenham ciência.
Porque 'o mundo é um moinho, ouça-me bem amor, preste atenção'.
Esteja feliz sem mentir.
Guilherme