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segunda-feira, junho 28, 2010



TOY STORY 3 de Lee Unkrich


“O exilado é aquele tipo de pessoa que tendo perdido o ser amado continua procurando o rosto querido em cada novo rosto que vê; está sempre enganando a si mesmo, achando que o encontrou.”

Reinaldo Arenas em Antes que Anoiteça



Alex,


Faz muito tempo que eu tenho essa vontade de sentar e te escrever. Não sei por que não fiz antes. Falta de inspiração muitas vezes porque tempo eu tenho e você melhor do que ninguém sabe que quando o impulso é muito forte, ele encontra sua chance. Por ter percebido que escrever é um ato contínuo de desdobrar as mesmas idéias. Por me sentir esgotado de tantas palavras entre nós. De tantas e tantas e tantas palavras. Que sempre me protegeram porque sublimaram uma série de incapacidades. Porque sempre foram silenciosas e me fizeram parecer alguém muito mais interessante. E isso não é depreciação. É um fato.

Estamos no início da fase decisiva da Copa do Mundo. Amanhã o país volta os olhos para o jogo do Brasil, que aqui passa às três e meia da tarde. Você sempre detestou futebol e prometo não dar mais detalhes. Mas há no ar aquela energia de dever de vitória. Como se estivéssemos diante de uma nova chance. Tempestade. Calmaria. Flores. Esperança que faz com que a gente resgate velhos sonhos. E aposte. Descubra novos desejos. Vez ou outra descubra coragem e mude tudo. A cor, o corte, o jeito. E queira surpreender o outro. O futebol faz isso com as pessoas. Eu acho.

Recebi sua carta. E mais do que ela, recebi acusações. Um tipo de culpa veio junto ao abrir o envelope. Deixei que ela surtisse o efeito. Depois reli. E algo me incomodou. Até que rasguei. Sobre ela e também sobre nós e é preciso que o tempo que existe entre nós, essa elipse enorme, seja levada em consideração. Não me envolva nas suas definições. Não me use para decifrar códigos que eu não inventei. Onde teus movimentos te levaram, só você pode saber. E se não sabe, descubra. Onde ecoa o teu sim. Onde reverbera o teu não. A gente sempre sabe dos defeitos do efeito que o outro nos causa. Então não consigo me encontrar nas tuas palavras. Eu não me sinto parte. O desdobramento do teu raciocínio só te inclui. Ele não nos envolve. E nem me parece uma questão de interpretação, mas de falta de percepção. Antes eu achava que minha irritação crescente, que a falta de tolerância cada vez mais presente, era fruto de alguma crença astral. Dessa astrologia que a gente bica de forma rasa, procurando explicações. Hoje, como um estalo, percebi que não. Que a minha irritação é causa e consequência de uma história não resolvida. E que um episódio sem desfecho acumula questões que se desdobram em nós que deságuam em tantas conversas que não existiram ou silêncios enlouquecedores que se transformaram em muros, em qualquer misterioso ‘não’, em qualquer falha grave na comunicação, que nos impediu a possibilidade de prosseguir em paz. Histórias não resolvidas fazem mal. Impedem. Aprisionam. Estacionam. Aniquilam. Feito um entrave.

Não consigo te escrever. Quero sair da cidade. Passar um tempo longe, sem ter que abrir a boca. Sem me justificar. Ter que enumerar explicações. Ou dizer que não é bem por aí. Que é proibido proibir e vocês não estão entendendo nada, feito o Caetano aos berros. Não consigo conversar sobre nós dois. Toda vez que leio você, entro em contato com farpas. Toda vez que você me escreve eu percebo que não é para mim que escreve, mas para você. Pedindo socorro pela idéia de amor quebrado que você descobriu e se apegou. Como se você me iluminasse as placas de contramão. E não só gostasse da imagem do trânsito caótico sem perspectiva, mas se viciasse nessas curvas que dão na mesma direção. Sem fim.

Por um momento, suspendo o fôlego e penso que talvez. Que hoje. Que a cidade. Que o passado. Que agora. O amor. O coração. Um clic. Um sim. Um gol. Não consigo escrever o que é fragmento. Parte minha. Parte tua. Pensei que talvez o teu, o nosso amor cego tenha criado uma história fictícia e não sejamos, não tenhamos, talvez, a importância imaginada. Não sejamos esses personagens. A grandeza que você teceu talvez seja fruto de um querer imediato que precisava urgentemente ser saciado. Consequência do desejo de ser menos só. Natural, mas armadilha fácil para ambos. Terapia progressiva de uma história que precisa avançar para que eu nos entregue uma nova oportunidade.

Escrever não é exatamente ter coragem. Não é necessariamente conseguir aliar a prática na teoria catalogada. Mas eu quero tentar. E tentar significa ter que encerrar. Nos encerrar. Eu preciso que essa tentativa não seja mais um texto sobre o adeus que eu nunca vou te dar. Preciso desarmar o que parece drama, descortinar peça por peça para que eu possa me revelar te enxergando. Preciso que os fragmentos da história façam sentido no final. Porque soltos no tempo e no espaço, eles me atormentam. Embaralham o que já é confuso. Então eu faço alarme e te escrevo em voz alta, letras maiúsculas em negrito porque eu sou assim. Preciso ouvir o que sinto para ter dimensão da (ausência) de gravidade. Uma antítese ambulante, talvez. Sentir é também não saber. Mudar de idéia. Sacar os acertos do bolso quando perceber que os erros precisam ser admitidos. Contornados. Superados.

Hoje eu estou bebendo água e não há fumaça no quarto. Sóbrio por necessidade. Para observar a vida de dentro. Me deixando levar por uma carta que eu não sei como vai terminar e que eu nunca soube começar, de tanto adiar. Sem nenhum efeito exterior, apenas o que você me exerce. Faz tempo que estar lúcido seja uma sensação recorrente quando penso em nós dois. Mas agora eu estou longe. E outro país talvez seja a distância definitiva que eu precisava para aceitar esse mínimo óbvio e necessário, eu penso, de que eu quero encerrar. Os nós. Nós dois. Gostaria de ter feito isso antes, olhos nos olhos. Mas nem sempre dá. Quase nunca e o bacana é encontrar o jeito.

Te escrever é também buscar energia. Para querer realizar.

Deve haver algum tipo de nobreza em terminar o que um dia teve início.

De maneira que os envolvidos tenham ciência.

Porque 'o mundo é um moinho, ouça-me bem amor, preste atenção'.

Esteja feliz sem mentir.

Guilherme

sábado, junho 19, 2010




SOUL KITCHEN de Fatih Akin

“I'd rather be lonely than happy with somebody else”
(Nina Simone em Love Me or Leave Me, de Gus Kahn e Walter Donaldson)

O celular tocou e era o primeiro dia da semana. Prático, concordo. Invasivo, admito. Quem quiser te encontrar, é só discar o encontro e você há de atender porque um celular tocando é irresistível. Em qualquer lugar, independente da geografia da cidade, ele invade. Reclama. ‘Me atende’, ele quase diz. E eu entendo. Sem identificar o número. Atendo sem saber. Era o meu sorriso mineiro. Meu amor do Arpoador. Minha ausência no acampamento. Minha luta de judô. Minha quase certeza em uma época de ausências. Ele diz uma certa saudade, diz que vai sair da cidade e volta quando o mês terminar. De longe, me chama daquele jeito de ‘menino’ e eu sorrio e respondo ‘me procura assim que voltar’.

Ele diz que quer me ver antes de viajar. E entre outras frases, a única em evidência e que me pesca fatalmente é a mais estranha de todas:

- Minha namorada está na cidade e quer muito te conhecer.

O coração acelerado e resquícios de uma época onde era mais interessante fugir, finjo uma desculpa, adio o telefonema para o dia seguinte e me deixo cair sem fundo e sem chão, sem travesseiros para amortecer, sem tempo para saber como agir porque o dia seguinte é logo ali. Ao tocar do telefone. Ele. Novamente. Estou em casa, dentro do quarto, amarrado a todos os fio possíveis de desculpas inimagináveis. Diversas. Daria um capítulo. Um livro. Antes de atender, eu não entendo porque devo conhecer a mulher da sua vida, se eu me vejo e me coloco como o homem da sua vida. O único. Aquele que chegou, provocou e aceitou o desafio de ser em alguns poucos anos, uma lembrança de uma época. Caretíssima.

Eu não sei enfrentar essa mulher. Ao lado desse rapaz. Nessa cidade.

Vou driblar esse cara, eu penso. Mas ele não é um cara, cara. E pensar e dizer alô e tudo que veio após o alô são matemáticas distintas. Que sequer se complementam. Do outro lado da linha, ele me instiga. Embora eu seja óbvio. Eu sei que eu sou. Fato que devo aceitar e me passa o sal, por favor? Saudade, ele reitera. Viagem longa, ele me desespera. Eu peço mais um dia, alego trabalho, prazos, minto. Adiar não vai me fazer mais forte, mais sarado, mais articulado. Meu pau não vai aumentar de hoje para amanhã. Amanhã, então, minha última noite por aqui, ele ameaça docemente.

Até que ele telefona e o celular sentencia o encontro.

- Então encontro você às nove e quinze no Bob’s de Copacabana. Aquele de frente para a praia.

- Porra, no Bob’s. O que você quer? Um ovomaltine?

Disco para o amigo e conto do meu medo bobo de encarar uma situação que me parece definitivamente constrangedora. Porque a namorada sabe da nossa... do nosso. Dessa coisa não planejada. Desse furto. Ela sabe, ele contou. E eu não sei a reação dela, mas me parece que ela quer me conhecer. E eu não sei se eu quero. Eu não quero ir, isso eu sei. Porque eu tenho medo que ela me esfaqueie ou me leia um feitiço em voz alta e eu não sei reagir à agressividade. Eu não sei brigar. Tenho muita dificuldade com esse tipo de disputa porque eu quero sempre ganhar. E nesse caso, eu já entro em desvantagem de pontos, de colocação, de sexo, porra. Se eu fosse esperto, eu enchia a cara e já chegava amortecido. Mas eu não tenho tempo, eu vou me meter num táxi. Você vem comigo, pelo amor do santo? Eu te pego, eu te pago, seja exatamente o que você é. O amigo que vai me levar pra emergência. Ou para casa, enfim? Você topa?

- Tenho escolha?

- Obrigado.

Cheguei na hora marcada. Eu devo ser o último dos cariocas que chegam na hora marcada, mas eu tenho essa crença de que o que me dizem, é, de fato, o que me querem dizer. E para quebrar minha tensão, entrei na fila para comprar um ovomaltine.

- Cara, sai dessa novela. Isso é só um encontro. Vai fazer algum trabalho comunitário.

- Um ovomaltine. Pequeno. Não. Gigante. O maior que você tiver. Onde eu estacionei? Eu liguei o alarme? Que horas são? Você não acha melhor ir embora?

- Nós viemos de táxi. Menos abstração. Pés no chão. Não há platéia.

O barulho das ondas quebrando no mar de Copacabana. O sangue quente. Por nenhum motivo. Por todos os motivos. O corpo numa única pulsação. Feito dirigir numa estrada escura. No meio da chuva. Sem visão nítida. Acelerado. A dez por hora. Acelerado. A cinco por hora. Aquela louca deliciosa que a Marilia Pera fez no especial do Roberto Carlos.

‘Vivo fugindo sem destino algum’ – ela gritava, cantava, urgia, alertava, berrava que o tempo, porra, o tempo, a 130, as imagens se confundem, meu mundo assombrado, voando pela vida, a 180, porra Roberto, porra.

Até que eles chegaram. O menino me abraçou por trás. Pouco antes que eu pegasse o milkshake e disse que sentia a minha falta. Tanto, ele sentia ‘tanto’ a minha falta. Disse que andou lendo um material antigo que ele tinha pego na última visita. Que ele estava lendo o que eu escrevo quase todos os dias. Um arrepio. Até que os olhos dela encontraram os meus. E não houve medo. Ou enfrentamento. Ou fadiga. Injustiça. Nada. Ela olhou nos meus olhos da mesma maneira que o menino olhou quando, ambos, percebemos. Não era só a beleza. Ou o abraço. Ou o perfume. Era a cumplicidade que se estabeleceu antes de qualquer formalidade. Entendi que a velocidade do que a gente sente é muito diferente da velocidade das coisas que se movimentam. Que muitas vezes o mínimo, fagulha, coloca no lugar um monte de dúvidas velhas e joga pro alto mistérios, soluções, interrogações, um monte de blábláblá.

Depois sentamos na areia. Vinho. Vento. Sorrisos. Um monte de histórias que não contavam ou justificavam as nossas histórias. Como um belo brinde à beira do mar. Quatro pessoas e a imensa vontade de estar juntos, por motivos distintos e variados. O amor de um pelo outro e pela outra e entre nós e entre eles, sem que isso se medisse ou se comparasse ou se discutisse. Não doeu. Não incomodou. Ao contrário, me fez mais feliz. Me encheu de esperança. De vontade de fazer um monte de coisas que eu deixei de lado. Tive vontade de retomar textos, aproveitar idéias. Continuar conversas. Um desejo veloz. Urgente. Intenso. Sensação que eu tive antes, muito tempo atrás, quando ouvi aquele solo de piano da Nina Simone. Um momento que me marcou, que me encheu de inspiração, eu acho. Ou energia. Ou vontade de amar e ser amado, naquela cadência, com aquela paixão, na excelência daquela cantora e daquele piano.

Depois, mais tarde, no carro deles, antes de nos separarmos, paramos para abastecer. No posto de gasolina, lugar de perigo ao fogo, ele risca pela primeira vez um ‘te amo’. E a resposta imediata, sem medo e com muita calma, eu respondi meu ‘eu te amo’. Abraço daqueles de proteger o mundo. Nos despedimos com vontade de permanecer. O mais bonito de tudo.




Acima o vídeo da Marilia Pera cantando “120, 150, 200 km por hora", do Erasmo e do Roberto e o piano da Nina Simone em “Love Me or Leave Me”.


terça-feira, junho 01, 2010



PARTIR de Catherine Corsini


“You may never be or have a husband
You may never have or hold a child
You will learn to loose everything
We are temporary arrangements”

No Pressure Over Cappucino / Alanis Morrissette


O diálogo a seguir é repleto de pausas entre algumas frases e especificamente, entre algumas palavras, onde a respiração se faz necessária ou conveniente. O tempo das respostas pode e deve variar de acordo com a leitura. No tempo da escrita, foi pensado para ser disritmado, quase descoordenado e com vazios. Silêncios. Pausas. Abismos que se complementam. E dialogam entre si, de alguma maneira. O cenário são dois apartamentos em prédios altos. O tempo é fresco. Os relógios informam que já se passam das dez horas da noite. As luzes da cidade piscam. Não há lua no céu. E o telefone toca. Quatro vezes.

- Te acordei?

- Não.

- Te atrapalho?

- Não. Saí do banho ainda agora. Peguei um livro pra ver se me dá sono.

- Faz tempo que eu quero te ligar.

- Você sabe os meus números. Sabe o horário que eu costumo estar em casa. Quando quiser. Se quiser, sabe como me encontrar.

- Nem sempre eu consigo. Normalmente fica só a intenção. Nunca imaginei que uma criança pudesse dar tanto trabalho. Tão pequenos. Exigem tanta atenção, tanta energia.

- Posso imaginar. E hoje, como conseguiu me ligar? Viajando?

- Não, eu fiquei. A Patrícia viajou com o Guilherme.

- Guilherme é o seu filho?

- Sim, você não sabe o nome do meu filho?

- Por que eu deveria saber?

- Porque é meu filho. Diz respeito ao meu universo.

- Exato. Ao seu universo.

- Te peguei de mau humor?

- De maneira alguma. É que você está tão habituado a ser celebrado, cortejado, que qualquer reação menos simpática soa como falta de... humor.

- Sozinho?

- Muitas perguntas, Daniel. O que você quer saber exatamente?

- Só perguntei se você está...

- Sozinho, sim eu ouvi. O problema é que eu conheço os seus truques. Alguns deles, aliás. Sim, eu estou sozinho. Hoje eu estou sozinho.

- Eu também.

- Sim, eu ouvi.

- Você jantou?

- Mais uma pergunta. Sim, jantei. Pedi comida em casa. Quer saber o menu?

- Difícil conversar com você.

- É fácil conversar comigo. Sou bom de conversa. Não sou bom com perguntas que exigem respostas para outras perguntas que você não tem coragem de fazer. Por exemplo, eu te pergunto: ‘por que você me ligou’? É uma pergunta objetiva, certo? Seria mais objetivo ainda – e prático – se você me respondesse: ‘liguei para saber se você quer me ver, já que milagrosamente eu estou sozinho’. Ou então: ‘liguei para jogar conversa fora’, ‘para matar a solidão’, ‘pra pegar no sono’, ‘por impulso’. Qualquer coisa assim, entende?

- Te liguei... Eu liguei pra saber se você tá bem.

- Sério? Depois de... A última vez que nos falamos foi no meu aniversário. Uma ligação rápida que durou menos de cinco minutos. As ligações que você me faz atender e não diz nada, eu não vou nem colocar na conta porque esse sadismo não é exatamente um diálogo. Aliás, que espécie de mensagem subliminar há em ligar para alguém e não dizer nenhuma palavra, mesmo eu sabendo que do outro lado da linha é você? Eu tô bem. E você?

- Eu... Você me desc... Eu deixei de te ligar exatamente por causa disso. Eu acabo virando alvo da sua irritação.

- Você não me liga mais porque a Patrícia engravidou e vocês se casaram logo depois. Você não liga mais porque você engravidou sua ex quando nós ainda estávamos juntos. Quatro anos. Paro por aqui? Ou posso continuar o meu discurso de abandono e rejeição?

- Só ia te chamar pra tomar alguma coisa. Conversar. Eu sinto falta.

- Eu... Também sinto falta. Mas depois de quatro, cinco anos, a gente aprende uma maneira melhor de conviver com a... não presença.

- Ausência.

- Ausência parece que você morreu. Parece definitivo.

- Talvez seja.

- Certamente.

- Eu tinha a sensação de que depois do nascimento do meu filho, eu ia... mudar. Radicalmente. A vida. A maneira. Os vícios. Tudo. Mas... Ele transformou alguns hábitos, a minha rotina, a minha noção rasa de amor e generosidade. Mas eu... Eu vivo me culpando por não ter mudado.

- O que você pretendia? Acordar diferente? Levantar da cama e afogar tudo o que você viveu antes com uma camiseta escrito ‘papai, te amo’? A gente altera a ordem das coisas, Daniel. Mas não altera o fluxo. O desejo. Os instintos. O que nos coloca em contato com... A gente mascara, camufla, transforma, se adapta. A gente faz concessões, tenta agradar, enfrenta alguns lances porque vida a dois é assim, mas mudar...

- Você tem alguém?

- Faz diferença se eu tiver?

- Você não cansa?

- De tentar? De não acertar? Não desistir? Não, não canso. Acho que é assim mesmo. Tentar, dar uma chance, experimentar se a vida fica bacana com a presença do outro. Normalmente dura menos do que eu espero. Outras, é só sexo casual, sem qualquer envolvimento emocional. É até mais simples, sabe? Fazer sentido não faz, mas no fundo, acredito que o que faz qualquer relação durar, é o bem que se faz ao outro. E o que o outro faz de bom pra gente. Mesmo que esse conceito de ‘bem’ esteja muito longe dos romances.

- Nós nos dávamos bem.

- Sim. Não. A gente se entendia. E a Patricia? Como é a relação de vocês?

- Tem bons momentos. A gente... Um dia você acorda e percebe que a tua vida mudou. Que você tem esposa, um filho, cachorro, aluguel, uma lista infinita de novas responsabilidades. Às vezes eu acordo e acho que eu to vivendo um sonho...

- Ou um pesadelo.

- E que eu vou despertar. Vou abrir os olhos novamente e encontrar um outro ambiente, onde eu não me sinta tão deslocado, tão a ponto de naufragar. Ou sair correndo. Ou explodir. Só que eu não desperto. Eu levanto e vou fazer todas as coisas de sempre. Puto da vida, contrariado.

- Não sabia que um bebê ia te fazer tão infeliz.

- Não é isso. Mesmo. Ele é uma delícia. Sempre. Mesmo nas noites doente. O problema não é o Guilherme. Mas essa vida que ele me obriga a ter para que eu possa...

- Desempenhar o papel de pai.

- Isso!

- Olha, eu não sou o cara ideal pra você ter essa conversa. Eu sou o ressentido. O deixado para trás. Então não espere de mim conforto.

- Por que toda história de amor quando termina precisa de um carrasco filho da puta e uma vítima virgem e triste?

- Gosto muito dessa imagem.

- E se não houvesse mais amor? Se fosse só um amando mais que o outro, desesperado para preencher os espaços cada vez mais vazios entre os dois? Se eu tivesse medo de ir embora e te machucar? Se eu só pensasse em te deixar mesmo não querendo te magoar? Se eu não amasse mais você?

- Eu te acharia um covarde.

- Você sempre detestou a idéia de ficar sozinho e sempre deixou isso tão claro, que eu comecei a ter medo de me abrir com você. De expor os meus lances, minha insegurança. Eu tinha medo de me abrir com você. A sua fragilidade excessiva. O seu temperamento impulsivo. Coisas banais te atingiam e te criavam questões enormes. A gente ficou meio fake. Um casal de fachada, sem vida real entre os dois. Eu com medo de tentar te fazer perceber. Você com medo de ser deixado. Muito medo pra duas pessoas jovens, cara.

- A gente não pode ser amigo. A gente não pode se falar vez ou outra. Ou ir ao cinema, a uma festa juntos. A gente não pode se contar segredos. Ou falar sobre o tempo. A gente não deve se misturar mais. Porque sempre um vai ser vítima e o outro o carrasco. Mesmo que a gente altere as posições. A gente não pode se relacionar como se não houvesse passado entre nós. Como se as novas pessoas e os novos amores pudessem entrar no nosso convívio como confidência de velhos amigos. Não dá. É como se agredir educadamente. A gente faz parte de um grupo de pessoas que só existiram durante o tempo em que viveram juntas. E que se encerram depois do fim. Sem a menor possibilidade de futuro. Ou convivência. Ou companheirismo em uma conversa de telefone. A gente não pode ser nada além do que fomos durante o tempo em que ficamos juntos. Amigos. Amores. Cúmplices. Íntimos. Essa balança desigual de querer, que nunca se equilibrou, mas nos mantinha unidos, atados porque um se alimentava do outro. Depois que você foi embora, eu sempre mantive a ilusão de que poderíamos ser amigos. Bons amigos. Que tinham um passado. Uma história. E que eu te contaria sobre os meus amores. E você me falaria sobre a sua vida. E isso não me atingiria. Não me machucaria. Não me causaria inveja. Dor. Só que não dá. É uma merda, uma grande merda perceber isso – esse fim sem sombra. A gente não pode mais se misturar. Porque eu não posso ter o que eu quero. E eu não quero o que você tem. Ir contra isso é insistir sem fim e permanecer agarrado a uma esperança que não é real. Empacado. Sem coragem para encarar a possibilidade de outra pessoa, pensando em você. Que talvez. Que de repente. Quem sabe? Fica assim: você nunca pensou em mim e foi. Agora é a minha vez.