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terça-feira, julho 27, 2010



O PROFETA de Jacques Audiard

“Eu digo que não te quero
E de noite sonho contigo”.

Amália Rodrigues/ Carlos Gonçalves em Lágrima


A gente soltou os fios. A gente deixou desatar os nós. Eu sempre achei que fosse acontecer. Eu sempre tive o maior dos medos de enfrentar essa sensação. Mas hoje, agora, tudo me parece secretamente no lugar. Embora eu saiba, eu perceba, sinta, que eu nunca estive tão ponto de interrogação. Deslocado no espaço. Sem tempo. Sem cadência. Um borrão no meio da página. Eu nunca fui tão sincero com você. Eu nunca fui tão sincero como você. São cinco da tarde. São momentos de certeza. São lembranças de ainda agora. São palavras ouvidas. São teus olhos brilhando. Tua atenção e o teu carinho. E eu não sei como vai ser dessa linha para baixo. Sem precisão, eu preciso. Dizer ou tentar desfazer essa enorme confusão que por enquanto é só minha. Que sempre foi minha. A gente inventa o nosso amor, eu sei. Mas não inventamos sozinhos.

No meio do deserto, a sobrinha ligou e ela é jovem, a energia me contagia e eu sempre digo sim. Coisa de tio que também já foi jovem e não teve alguém para me fazer entrar nos lugares onde um adulto era necessário. Ela nem faz muito esforço dessa vez, eu disse sim, eu digo sim, onde, quando e quantas além de você eu vou ter que tomar conta?

Depois de toda a confusão natural da entrada. Depois de toda a confusão emergencial de encontrar um lugar para as meninas. Depois das luzes se apagarem e o show finalmente começar, eu saí da multidão em direção ao bar, ciente de que depois do bis, ao lugar marcado, encontraria as quatro para voltar para casa. Enchi o copo de cerveja e driblando a equipe médica, que passava com meninas desmaiadas e tontas, consegui um lugar, onde era possível ver,ouvir e não ser massacrado pela multidão. De longe e de olho na direção da sobrinha. Que naturalmente eu não sabia mais identificar, mas fingia saber, para manter o controle e a seriedade, afinal hoje estou fantasiado de tio. De longe e de olho na equipe médica, tentando de alguma forma, ser útil. Ou apenas me assegurar de que nenhuma das meninas recolhidas na pista, está sob a minha responsabilidade.

- Você trouxe quantas?

- Três. Quatro. Isso. Quatro.

- Filhas? Não, você não tem cara de pai. Irmãs?

- Uma sobrinha e três amigas dela. E você?

- Fotógrafo.

- Não vai fotografar o show?

- Tirei as fotos que eu precisava na primeira música. Meu assistente está lá em cima. Ele cuida das outras.

- Deve ser bom ter um assistente.

- Sim, mas já mandei as fotos para o jornal.

- Já?

- Sim.

- Será que aqui tem alguma coisa para comer?

- Tem um cachorro-quente lá em cima. Caro, mas você pode se servir. Quer companhia?

- Quero.

Embora o show, as meninas, a histeria, os instrumentos, o excesso de juventude contribuíssem para que não pudéssemos nos compreender, todas as palavras e frases foram registradas com calma, facilidade e alguma exatidão.

- O que você faz?

- Eu... Eu faço as vontades da minha sobrinha.

- Deve ser bacana sair com o tio e conseguir ficar sozinha com as amigas no meio da multidão.

- Adolescentes. Precisam dessa sensação de liberdade. Já saí com elas outras vezes. Elas conhecem bem as minhas regras. E fotografar?

- Paga as contas. Algumas. E ser tio?

- Uma despesa sem fim.

Brindamos como ilustres desconhecidos. Ele sorriu e eu fiquei encantado. Pensei que o Rio de Janeiro tem desses homens simpáticos e charmosos que puxam conversa sem querer nada em troca. Apenas a atenção. Asa partida, cardiologista onde anda você, não me passou pela cabeça qualquer intenção, qualquer sensação além de corresponder a simpatia com simpatia, algum trocado de gentileza com gentileza e esse companheirismo malandro de provavelmente nunca mais encontrá-lo na vida. Outro brinde. Sentados no banco confortável. Falando sobre a lua, as fotos, as músicas, os fatos, a violência, aquele filme, cara, aquele, você não viu? Um caso engraçado, uma história de um amigo, o tempo que é pouco, sempre. Da facilidade, da dificuldade, do trânsito, da chuva, do metrô, do restaurante, da peça de teatro, do show na praia, de amar Copacabana, de odiar Copacabana, dos livros, de outros filmes.

- Tudo virou essa grande vitrine sem graça. Passa lá, leia meu texto, veja as minhas fotos, ouça a minha música, olha o que eu fiz, olha o que eu sei fazer. É exaustivo. Informação demais.

- Mas ficou mais simples de filtrar.

- Você tem alguém?

- A gente acaba elegendo o que nos causa mais identificação.

- Uma namorada, um namorado, esposa, noivo, um compromisso?

- E o que não parece bacana, a gente deixa de lado.

- Alguém? Ninguém? Muitos?

- Até que um dia a gente muda a opinião.

- Ei.

- Tudo o que eu não gostaria de fazer, ainda por cima mais embriagado do que eu deveria, era falar sobre esse assunto.

- Abandonou?

Um olhar direto e o balançar de cabeça que sinaliza uma quase exaustão, não fosse o tom gracioso da pergunta. Respiro.

- Te abandonaram? Como podem abandonar um cara tão... tão...tão...

Veja bem, foram três ‘tãos’.

- Curiosíssimo.

- Porra, você é um cara gente boa. Você é, não é?

- E desde quando coisas ruins deixaram de acontecer com pessoas tão...? Todo mundo no mesmo barco. E você não me conhece.

- Eu sei que eu bebi um pouco demais, mas eu sou fotógrafo, cara. Eu vejo o quadro pronto. E você...

- Olha, você tá me deixando muito curioso com as suas reticências. A carência de um adjetivo tá cada vez maior.

- Você não tem curiosidade?

- Sobre?

- Saber se eu tenho alguém.

- É particular.

- Nem para saber? Só saber. Deixar registrado.

- Faz diferença? Quero dizer, e daí? E eu acho esse verbo – ter – muito perigoso. Mentira, vai, me conta.

- A gente tá se paquerando?

- Não. Estamos reunindo informações. Colhendo material para o prontuário. Por que? Parece que a gente está se paquerando?

- Às vezes.

- Mas nós estamos?

- Eu estou aqui a trabalho. Fotografei o show. Profissional.

- Empatamos. Eu tô de babá.

- Posso tirar uma foto sua?

- Prefiro que você peça o meu telefone.

- Posso fazer os dois?

- Só se você me pagar mais uma cerveja.

- Aproveitador.

- Edu?

- Diga.

- Eu... é que eu não... eu estou sozinho. É recente, quase agora. Eu acho, quer dizer, eu tenho certeza, a gente nunca aceita essa idéia, mesmo quando as duas partes decidem que... Então eu não... Me desculpa, cara. Eu topei trazer a minha sobrinha para sair um pouco de casa. Ver gente. Ficar um pouco bêbado. Eu ainda não sei falar sobre isso porque tá tudo muito vivo. Precisa estancar. Preciso. Deixar de lembrar. Eu tô um clichê ambulante.

- Você não queria falar sobre isso, lembra?

- Mas eu preciso. Eu gostaria. Tá tudo fora de lugar. Fora demais do lugar.

E depois, a gente pluga os fios. Mesmo que por algumas horas. Uma noite inteira. Dois, três meses depois.

- Você é sedutor e o teu cabelo é lindo, mas agora... Você tinha que aparecer em dezembro, março, não hoje. Nunca hoje.

- Eu também estou machucado. E seria um prazer sair desse show com um novo amigo.

- Seria. Você me entende?

- Muito pouco, mas você aceitaria um convite?

- Vai ter sexo?

- Cinema e depois visitar meu estúdio.

- Quando?

- Em dezembro, março, lá no futuro.

- Sábado está mais perto.

- Sexta está mais perto ainda.

No meio do deserto, encontrei uma sombra.

E embora eu saiba todos os minutos, eu também me esqueço todos os minutos. Dessa troca sem fim, entre o que houve e o que há, um sorriso, duas lágrimas, um adeus difícil, ensaiado, previsto, temido, dolorido, frio, mas que mexeu com a estrutura, com a forma de todas as coisas, de todos os dias, de todas as madrugadas e por enquanto, insuperável, insuportável, feito uma foto velha sem foco, sem quadro, sem vida, coberta de memória, infalível prova decisiva de um julgamento que nunca existiu.

Ao mesmo tempo, outra despedida promissora. De alguém que inaugura o que parecia mofado. Que brinca com leveza com as caixas pesadas. E oferece com sede de troca.

Respiro e perco a cadência.

Respiro a cadência sem ritmo.

Digo sim porque o acaso me acautelou uma surpresa.

E eu gosto de curvas.

sexta-feira, julho 09, 2010



COVERBOY de Carmine Amoroso


Apaguei as luzes da casa. Acendi um cigarro. Eu não fumo desde janeiro, mas hoje eu acendi um cigarro e pela primeira vez, eu compreendo toda personagem de cinema angustiada a desfilar com a sua fumaça portátil. São três e vinte e cinco da manhã e toda a certeza que eu consigo tragar é a de que nesse momento o que me rege é uma grande incerteza fumaça que não se revela e também não se esconde. Em claras palavras, não fode e não sai de cima.

Eu enfrento, eu sei. Eu existo no material que você me provoca. E você me coloca em movimento mesmo quando está ausente. Você não é só o momento. Não. Você é tudo o que houve antes. Todas as conversas e diálogos e noites viradas. Você é e vem sendo desde o primeiro momento essa soma de sucessivas sensações que se desdobram, me atormentam e um dia, vão me enlouquecer se eu permitir. Seria tão mais simples desistir de você. Mas você instaurou um vício complicadíssimo de superar. Sonhos que se transformam em pesadelos até que os olhos se abrem.

O relógio não despertou. Foi no susto, no pior susto que eu acordei às oito e quarenta, ciente de que às nove horas da manhã eu precisava estar no Centro da cidade para um compromisso de trabalho. Não lembro da ordem, mas entrar e sair do banho não me tomou nem dois minutos e me enfiar na roupa foi tão automático e afobado, que quando dei por mim, estava dentro do táxi. Com o all star verde no pé direito e o branco no pé esquerdo. Eu poderia descrever cada acontecimento com riqueza de detalhes e enfatizar que os pequenos deuses da impossibilidade despertaram gigantes ao meu lado, mas seria reviver a manhã.

- Escuta moço, e esse trânsito?
- Vai andar não. Acidente na Avenida Brasil.
- Eu desço aqui. O metrô é aqui perto. É aqui perto?

Não era. Mas caminhei, corri, urgente, afobado, aquele maldito coelho branco que só me diz o que eu já sei.

- Maracanã não está aberto. Guerra entre a polícia e os bandidos. Paralisação da linha do metrô. Sem previsão de retorno.

Caí. De tombar. E também pisar em falso e a dor no pé do all star verde me tira um grito. Eu não vou reclamar, eu não vou reclamar, como um mantra tentando controlar enlouquecidamente qualquer sinal de ‘eu vou matar um’. Essa camisa está furada? Essa camisa está furada. Atendo o celular e minto que já estou no Centro e me alivio ouvindo que o compromisso será adiado porque os bandidos, o velho oeste, o trem, cowboy.

- Sem problemas, eu me organizo.

O fato, meu caro, é que enquanto a minha vida brincava de não, você pegava o avião. Eu ainda pensei em te ligar porque eu conheço essa sensação de ser óbvio e dizer ‘eu te amo, aproveite a aventura e cuidado’, mas me pareceu um discurso demasiado paternal e me senti ridículo. De qualquer forma, não me despedir de você não foi exatamente planejado, assim como estar sentado dentro da Uerj também não foi. Mas quando uma guerra acontece lá fora, a gente encontra maneiras de não deixá-la interferir. Talvez viver nessa cidade seja exatamente isso. Driblar a guerra até que seja possível e agradecer loucamente por conseguir. Ou acreditar que é possível conseguir.

- Tio, o seu tênis.
- Sim, eu sei.

Então escrevendo com calma entendo que não me despedir de você é totalmente a nossa cara. O descuido cuidadoso. Não se importar se importando. Mas no real, além de ter evitado esse momento, o que fica, o que sinaliza, o que eu sinto, é que não se importar é não se importar mesmo. Sem reflexo ou desdobramentos. Sem camuflar. Sem guerra, embates, discussões chatas sobre umbigos excessivamente falantes. Ando intolerante com essa idéia fálica de achar que nos compreendemos tanto e tão bem e somos tão especiais porque nos reconhecemos e sono. É o que me dá quando fico nos enfeitando mentiras.

Não sei se consigo terminar de te escrever porque a tinta da caneta está falhando. E me parece justo que seja assim. Estar no final. Combina com a bagunça justa entre os nossos espaços. Parece se ajustar com o que o que sentimos, no singular, com o que sinto. Daqui por diante, mesmo que tentemos dar nomes, classificar etapas, rotular os fatos, mesmo que a gente tente ser super racional e achar que os fatos se justificam porque acontecem numa sequência... olha, é mentira. Mentira mesmo. A gente tem essa ilusão de que a vida é essa matemática. Que há uma lógica para que a gente goste ou não. Ame ou não. A gente fica nessa sede desértica de achar que para tudo há uma explicação e que sim, somos tão adultos que vamos saber nomear as coisas. E tão inteligentes, saber fazer dar certo e estar sob o manto da segurança que coloca os livros todos em ordem alfabética, classificados por autor, tamanho e cor. Balela. Tem livro meu embaixo da cama. Livro teu pelos corredores. Abertos. Marcados. Rasgados. Anotados. Aos montes.

Eu não sei mais dizer que não está doendo quando dói. Que não me incomoda quando incomoda. Que não, que tudo bem, sem problemas, eu me viro, eu me arranjo, não se preocupe. Não! Se preocupe sim. Divida, perceba, jogue pra valer. Mesmo que para isso você tenha que desconstruir a imagem de mocinho. E eu a imagem de super bem resolvido, inatingível, quase implodindo diante dos teus olhos que não me percebem.

São quase três da manhã agora. De novo. E eu encontrei esse rascunho no bolso da calça para ser passado para o computador. Eu volto a ter insônia. E a vontade de fumar me assalta, mas eu resisto. Eu não preciso de mais um vício definitivo. Eu só queria que você soubesse que eu não sei de nada. Porra nenhuma. E não me incomoda não saber. Te confesso que me sinto muito melhor não sabendo de nada. Houve uma época que era bacana esbanjar que eu sabia de alguma coisa, mas era pose. Era para parecer alguém melhor. A gente mente por muito pouco. E acredita nas mentiras por menos ainda.

Minha companheira da madrugada? A incerteza. Uma senhora elegante, sábia, cabelos brancos, mas a pele muito bonita, branca. Agitada, caminha de lá para cá. E faz perguntas, muitas. Elabora teorias. Certifica as decisões. Depois muda tudo. A cor, o tom, a maneira de dizer. Embaralha, aparece mulata, saia curta, bunda linda. Depois desaparece e eu sei menos ainda.

Será que eu nunca mais vou conseguir dormir?

Será que eu nunca mais vou conseguir dormir sem você?

Um milhão de coisas. Será?

A minha felicidade nesse momento está em cima da escrivaninha sob a forma retangular de um enorme chocolate amargo. E você não está aqui para dividir comigo. A barra.