Protected by Copyscape Originality Checker

domingo, janeiro 09, 2011



NEVER LET ME GO, de Mark Romanek


“Perder toda coragem
Atrás de um belo escudo
Da cinza paisagem
Um dia se fez mudo”

(Um dia se fez mudo / Gugu Peixoto e Diego Vivas)

Eu ia começar com uma frase na terceira do singular. Ele atendeu a ligação. Ou ele não atendeu e pediu uma cerveja. Mas a quem eu estaria enganando? Sentiria o fôlego se preparar para uma cena, onde eu não diria as minhas palavras, mas as dele. E no fim, com algumas exceções de cenário e melhorando um tanto a realidade, seria eu perdido sem artifícios que escreveria fingindo ser alguém que eu não sou e que sente as coisas que eu sinto.

- Eu não quero falar com você agora. Pare de ligar, por favor. Uma cerveja.

O Rio tem isso. Depois da histeria coletiva em torno do ano novo, dos turistas e da cidade cheia, começa a histeria pelo verão, as praias cheias, o carnaval e as mulatas globelezas. Os bares abarrotados. As ruas buzinando irritação. A movimentação externa é útil porque te movimenta um pouco do atolamento. Eu ando empacado. Não é exatamente uma confissão. É mais uma sensação. Mensagem de texto.

- O pessoal tá em Botafogo, passa lá que é despedida da Simone. Se você não aparecer dessa vez, ela vai ficar magoada.

Dentro do metrô a sensação de estar sendo observado. E é difícil me equilibrar. O espaço me parece menor. Eu percebo os olhares de estranhamento. Suor frio. Viro o rosto. Encaro o chão. As portas do vagão. Eu desvio o olhar. O espaço entre as estações parece maior. A voz do maquinista parece em câmera lenta e os olhares queimam a nuca. Passo a mão na testa, secando a impaciência. O Flamengo nunca pareceu tão distante de Botafogo.

- Por que você não quis falar comigo? Eu te fiz alguma coisa?

Abraços. Os amigos de sempre no bar de sempre. Ancorado em alguns papos rápidos, até que outro chegue e te roube a atenção. Os olhos brilhando nos olhos que brilham. Brindes. Por que tanto tempo sem aparecer? Porque sim. Até que. Crash Boom Bang. O cenário é familiar e os olhos identificam um rosto novo. Que se aproxima, se apresenta porque sabe quem eu sou e entra na conversa com as pessoas que ele já conhece e tece intimidade. Eu também sei quem ele é.

- E quando o amor da sua vida te apresenta o amor da vida dele?

Então tudo fica uma merda. A cerveja fica quente. O tempo esquenta também. E você percebe os detalhes que aniquilam qualquer oponente. O sorriso é encantador. O corpo atende aos padrões atuais de academia e alimentação saudável. A saúde marcando o ponto. Você se sente mais careca ainda. Mais barrigudo. Um borrão. Os amigos dando toda a atenção. Falando de assuntos e festas e noites onde eu não estive. Essa intimidade, de onde virá?

- Essa música não sai da minha cabeça. Um dia se fez mudo. Eu sou, era, sou amigo de um dos compositores. A gente se perdeu. Isso me deixa puto. Faz todo o sentido a sensibilidade da letra da canção. Encaixa com a idéia que ficou da pessoa que eu conheci.

Depois ele se aproximou da mesa onde eu estava e sentou, soberano, ao meu lado. Então me diga, me conte, me informe. Porque eu sou, eu tenho, eu fiz, eu fui. E você? Um brinde. Posso quebrar o copo e derrubar essa mesa? Depois sair correndo pela Voluntários da Pátria gritando que não, que merda, que não dá, que eu não quero, que eu não posso e não consigo? Me largar para trás, na esperança de que alguém não me deixe cair ao cair da madrugada.

- Saí do cinema chorando e pensando em te ligar.

E pegou a minha mão, um carinho antigo, delicado, gentil. Os olhares se cruzaram, feito um acidente anunciado. Porrada feia de carro no cruzamento das vias. Primeiros socorros, perguntas fáceis para que o acidentado tente se situar no espaço. Depois, ao perceber que a vítima está ciente, vítima não que parece que é polícia versus bandido. Depois, ao perceber que o envolvido está ciente das suas funções primárias, um exame mais detalhado para detectar a profundidade de qualquer lesão mais grave.

- Vou chamar um táxi. Você paga a minha conta? Eu achei que tivesse grana na carteira, mas ela só vai dar pro táxi.

Fica mais um pouco. Eu te dou meia-carona. Fechei os olhos em busca de outro cenário, outra situação, outra história. Ao abrir, tudo está onde a realidade impôs. E as histórias muitas vezes continuam de onde elas estacionaram. Vaga para dois, três. Vem cá e me dá um abraço. Tim tim, eu vou sentir tanto a sua falta. Eu já sinto tanto a sua falta. Eu sinto falta de muita gente, mas equilibrar a ausência é um baita exercício para manter a sanidade. Melhor que muita tarja preta. E mais saudável também. Você não acha?

- Fiquei curioso para ler você.

Leia, porra. Mate a curiosidade. Aniquile. Eu não encho o saco de ninguém com as minhas interrogações. Vou lá e resolvo. E quando não dá, se eu não insisto, elas se diluem em novas questões. Ou morrem ali. Escuta, eu não vou responder essa. Vou apenas sorrir de canto de boca e balançar a cabeça. Me afundar nessa cadeira porque você é exatamente quem eu imaginei. Não houve surpresa alguma. Você se encaixa, feito um molde. Você cabe milimetricamente. Sem uma falha qualquer, sem qualquer esperança de surpresa.

- Simone, meu amor.

Eu vim te ver. Te abraçar e desejar que essa viagem seja incrível. Que você conheça pessoas que te ajudem e faça a melhor farra de todos os tempos. Eu tô bem, mas não faça essa pergunta de novo. Eu não gosto desse drama frágil e patético, mas a situação é assim. Como tirar proveito do caos, eu que adoro o caos? Mas eu vim mesmo para te ver. Te olhar e me despedir morrendo de vontade de te ver e te ouvir contar com entusiasmo cada história. A buzina do táxi interrompe o abraço abreviando o ‘até logo’, quase como uma fuga. Orquestrada na pressa de quem não sabe se despedir.

- Espera – ele me segura o braço.

Aqui há uma mistura de carta escrita no conforto e distância que protege, do diálogo real de quem exige explicações pegando pelo braço, silêncio sem respostas ou sem justificativas, fragmentos de uma conversa ou até ela mesma na íntegra, o dito pelo dito, essa confusão toda misturada.

Eu sou fraco. Ia começar te dizendo que eu sou frágil, mas eu não concordo e não acredito que aos trinta anos, a gente ainda se deixa bombardear com a mesma intensidade de outros tempos. Há de ter algum benefício à medida que a idade avança. Há de ter. Então eu sou fraco. Eu preferi escrever um texto onde eu pudesse exorcizar tudo o que eu não tenho, tive e provavelmente não terei coragem para te dizer. Eu preferi optar pela palavra escrita, que é onde eu encontro segurança e sentido. Onde eu consigo finalmente fazer algum sentido. Eu me faço compreender escrevendo. Ao vivo, eu não me revelo tanto. Talvez por ter um medo enorme do mundo. Talvez porque esse medo me aterrorize a ponto de me deixar no raso, onde não corro riscos e onde eu posso me integrar ao todo. No raso, eu posso tentar resgatar quem afunda. Posso tentar alertar dos perigos do mergulho, das rochas, dos animais selvagens. Daquilo que o meu campo de visão me permite enxergar, porque no raso nenhum perigo é iminente. Eu chamo de fraqueza e não me incomoda saber que sou assim. Porque eu sou. Por isso, então, eu te escrevi. Porque eu saberia coordenar os meus fantasmas de maneira inteligível. Eu não conseguiria jamais te telefonar para te dizer do que eu sinto, do que eu penso que nos transformamos. Do que eu acho em relação a nós dois. Eu ia te dizer meia frase e engolir o resto. Ia fugir no meio da noite, como você já me viu fazer diversas vezes. Ou talvez eu transformasse em piada, como eu também já fiz, qualquer iniciativa de tentar dialogar. Não é nada agradável não se saber capaz. Não é nada fácil ser fraco. Implodir o pensamento, engavetar sensações, relevar e simplesmente relevar qualquer interferência, qualquer falha na comunicação. Por isso te escrevi. Por isso te escrevo. Por isso talvez seja esse o meu ofício, sem dor ou orgulho: escrever cartas, prolongar ou encurtar cenas, criar um universo paralelo, onde eu possa existir e ser e estar legítimo.

Eu não acho que você é um monstro. E também cada vez mais percebo que esses adjetivos só servem para nos encarcerar. Você sabe disso, eu tenho certeza. Você não me fez nada que pudesse me provocar te querer mal. Não existe um motivo específico. Existem anos de convivência. Anos de percepções, atitudes, gestos e tanto mais, que somados me trazem até aqui. Vale tanto para mim quanto para você, você certamente tem sua opinião. Estou aqui para te dar a minha. A diferença é que a minha soma não me agrada. Ela me deixa triste. Ela não te transforma em monstro. Ela não me coloca na posição de vítima. Ela só me faz perceber que às vezes insistir em alguém ou alguma idéia, pode não resultar em futuro. Pode se transformar num ato mecânico, onde ambas as partes se acomodam, estacionam e se acostumam, sem que não haja nem mais atrito. Como se encaixassem as suas peças e o quadro permanecesse. Imóvel, bonito, mas sem movimento. Imparcial. Quadros assim só costumam funcionar na horizontal. Se colocados na parede, podem despencar com qualquer sopro. Isso é fragilidade. Você sempre soube onde me encontrar. Se me justifico tanto, é para tentar te iluminar questões levantadas na nossa rápida conversa. Eu não vou enumerar as minhas razões. Ou te entregar três ou quatro motivos. Isso seria covardia. Eu só sou fraco.

Nós poderíamos ter nos perdido tão mais cedo. Anos antes. Mas sempre um puxou e o outro foi no impulso. Às vezes um cedia, o outro pressionava. Sempre um precisou e o outro socorreu. A gente foi deixando ser assim e se passou tanto tempo que eu desaprendi o sabor de saber como tudo era antes disso. Eu não perdi a identidade, saiba. Mas eu me perdi dentro de nós dois. É desse resgate que tudo se trata. Não é como das outras vezes que eu pedi atenção, que eu reclamei um carinho, que eu te alertei de uma dor. Eu estou assustado. Porque agora, mais do que necessidade, me parece o mais sensato: seguir adiante sem nós dois. Eu estou assustado.

Eu tinha a sensação romântica de que a gente se entendia cada vez mais e cada vez melhor.

De fato, a gente se entendeu e se festejou por muito tempo.

Então eu preciso transformar o nós em eu, tu e ele.

Me colocar no singular.

- Esse texto é antigo.

- Esse texto traduz a beleza da bagunça.

- All is fair in love.

- Nem sempre.