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terça-feira, março 08, 2011



A SOLIDÃO DOS NÚMEROS PRIMOS de Saverio Constanzo


A MESA DO BAR

- Você não deixa ninguém gostar de você. Ninguém que não seja o Leandro. E o Leandro não gosta de você. Porque o que ele faz e o que você permite que ele faça com você, isso tem vários nomes, mas nunca amor.

- Exagero seu.

- Eu te apresentei três pessoas em pouco mais de um mês. Quatro. Quatro caras bacanas, solteiros, disponíveis, com vontade de construir uma relação.

- Pois é. Mas você sabe que não é só a vontade que faz com que as relações aconteçam.

- Elas podem ao menos começar. Mas você não permite. Você inventa uma desculpa no primeiro encontro. Você não dá a oportunidade da pessoa chegar. Tá ancorado nesse cara que tá vivendo outra história.

- Sério que você vai me analisar hoje? Nesse calor? E os teus pretendentes eu não curti. Especialmente o último. Marcelo. É Marcelo?

- O cantor.

- Ele me chamou pra assistir a banda dele tocar. Eu fui lá. E eu não curti.

- Ele não canta bem, né?

-Não é isso. O que me bloqueou foi ele vender uma imagem de super cantor, de ser fera, incrível. Isso me criou expectativa. Eu fui ao show esperando uma voz que não existia.

- Mas você não curte rock.

- O problema não é o gênero musical. O problema é ele não se conhecer. É ele se achar tão bom, tão foda, sem ter alguma noção dele mesmo. Eu não quero namorar alguém que não tem noção de quem ele é.

- Você determina essas regras e isso também é uma forma de se punir. Ninguém nunca vai ser tão bom quanto o Leandro.

- Deixa o Leandro de lado. Ele não tem nada com essa história. Eu não dei certo com os seus amigos.

- Nenhum amigo.

- E vamos em frente. Você faz com que eu me sinta um solteiro desesperado.

- Ancorado.

- Conheço gente que sai de uma relação e entra em outra. Sem respirar. Acho bacana quem tem esse gene da vida a dois. Acho admirável. Eu não sou assim. Eu preciso de tempo para perceber. E quem hoje em dia está disposto a dar um pouco do seu tempo?

- Besteira. Você não quer admitir que ainda está preso ao...

- Você meteu essa idéia na cabeça. Corrente, âncora, cárcere. Que eu não superei o Leandro. O inalcançável Leandro. Qual é a tua? Me entregar um diagnóstico, como se eu fosse um paciente teu e você me decreta um presidiário de uma relação que terminou? Que eu não superei, que eu não suportei, que eu não segui em frente. Mas o que realmente aconteceu? O que está acontecendo? Eu não sofro mais ou menos com esse fim. Os dois foram afetados, certo? Os dois estão sozinhos. As coisas funcionam dessa maneira.

- Ele está morando com outra pessoa.

- Nós ficamos bons amigos. Somos bons amigos. A gente convive menos, é verdade, mas temos muito carinho um pelo outro. É saudável. Não é doentio, como você insiste em sugerir. De todos os meus relacionamentos, sempre restou uma relação bacana. De afeto. Amizade, respeito.

- Com exceção do Antonio.

- Um psicopata. Qual a questão aqui? A gente se dedica por tanto tempo a alguém. Ama tanto. Cuida, divide a vida, a alegria, os dias. Um dia termina. Por um milhão de motivos. Por que eu deveria ser inimigo do Leandro?

A PISTA DE DANÇA

Você coloca esse comprimido na ponta da minha língua e me diz para não engolir. Eu obedeço porque existe em mim a necessidade do mistério. Me joga na pista e vamos todos dançar já que a madrugada avança e os sonhos são agora. Eu estou fora do contexto, é assim que compreendo essa noite. Eu só estou aqui porque você me intimou, porque eu queria te ver e também porque queria revisitar essa sensação antiga de fazer parte desse cenário de pista cheia, música alta, essa gente animada e sem problemas, os garçons de bunda de fora e o banheiro pegando fogo. Faz muito tempo que eu não saio para dançar. As luzes acesas. O foco compartilhado. Por passar tanto tempo tão – ria - atado, tão protegido do que acontece aqui, que fiquei mais fragilizado, arrisco. Por não encontrar nada além da poeira e da confusão da vitrine de sempre que raramente muda a tendência. De maneira que essa é uma noite específica. Onde eu estou disponível para a madrugada e vice-versa. Retribuo o sorriso, o abraço. Você, que eu tanto quero bem, porque toda vez que me olhas nos olhos, me oferece tantas possibilidades. Então eu aceito a noite, a madrugada, todas essas pessoas pulando e aceito também nós dois, sabe-se lá os efeitos desse comprimido que demora tanto para dissolver. Enquanto isso, a gente canta aquela canção e tenta se enxergar, apesar da fumaça e tenta se reconhecer, apesar da escuridão. Enquanto isso a gente bebe e aqui a bebida é liberada, você tão bem me informou. Que mal existe em dançar e beber até que o dia amanheça, somos todos jovens e precisamos dessa sensação trampolim de que a vida é o percurso e também o salto e também o mergulho.

A gente nunca sabe quem vai aparecer depois que o amor fecha as portas. Eu adoro essas metáforas clássicas. Sério. São imagens tão poderosas. A gente nunca sabe quem é o próximo. Ou se haverá o próximo para quem o coração vai voltar a atenção. Quando eu te vi pela primeira vez, eu soube, eu senti, eu percebi. Eis a minha nova poesia, meu ballon rouge, minha novidade para desvendar. Só depois é que houve o passado. Que nos trouxe aqui. Agora. O som tão alto e você me diz algumas palavras. Eu não compreendo. É tão difícil tentar compreender o que você me diz. Vamos sair daqui e procurar um lugar mais calmo. Eu quero saber o que você precisa me dizer.

Então eu ouvi o barulho. Que ninguém ouviu porque não reagiram. Até que ele me disse que nós dois juntos era uma ideia que no plano de tecer os sonhos parecia tão exata e promissora. Eu já nos imaginei juntos, ele me dizia com os olhos brilhando. Tanta fumaça, tantas intenções ao redor. Na prática, na vida real, tudo muda porque somos claramente tão diferentes e é tão simples perceber o que nos afasta e o que nos determina. Você me conhece tão bem. Intimidade que conquistamos depois de sei lá quanto tempo. Mas...

- Cale a boca, por favor. Eu falo de sonhos e a gente já não sonha mais. Eu falo de desejos. Dos menores. De ter alguém para amar. De ser amado por alguém. Fazer planos. Trocar. Preparar um jantar, comprar um cachorro, dividir a vida, pagar as contas. Eu sonho pessoas, cara. Faço parte desse grupo que ainda acredita na delicadeza e no amor. Que não precisa se justificar com a prática ou a teoria porque no fim das contas, tudo é prática. Você é esse campo minado que eu me obriguei atravessar. Determinado. Tudo é tão veloz e esse lugar e essas pessoas que dançam perdidas em busca de suas razões, em busca de suas aventuras, sejam elas quais forem, todos eles compreendem o desejo do acerto. Talvez um dia eu enlouqueça e me transforme sem volta em algum personagem que fala insistentemente sobre um assunto que ninguém mais compreende. Talvez a minha loucura seja sonhar quando não sonham mais. A minha linha torta, bêbada, de camisa molhada de suor, esse comprimido que ninguém sabe e ninguém viu.

A PADARIA

Próximo a mim, um casal de estrangeiros. Não sei bem se um casal, talvez americanos, ele e ela. Pessoas bonitas de olhar. Eles me observam e parecem não se preocupar em disfarçar que me olham. Eu finjo não perceber. Sede, fome, a garganta seca, eu comeria um boi.

- Um café, um pão com manteiga na chapa. Dois.

Ela se aproxima. Pergunta se pode sentar. Os olhos verdes inconfundíveis. Ela fala inglês lentamente. Talvez para que eu a compreenda porque vai amanhecer e todos estamos virados, ainda agora era pista de dança. Ela fala e fala e sorri. A comida chega e às seis da manhã, não há cerimônias qualquer. Eu falo menos, mas correspondo a conversa, o entusiasmo, essa animação que não termina.

- That guy over there is my brother.

Então ele também se aproxima e eu peço mais comida e eles também. A gente fala um inglês divertido, sem muita concordância, sem muito sentido. Eu me entusiasmo e às vezes eu esqueço essa facilidade de poder me comunicar abrindo a boca e usando as palavras. Também as palavras. Trocamos e-mails, sorrisos, promessas de amanhã, opiniões. Os filmes, os atores, as predileções e objeções.

Descemos juntos as escadas do metrô. Nos separamos na estação, trens em direções opostas. Pouco antes da porta abrir e sumir na estação lotada de gente desmontando a fantasia, fui surpreendido por um abraço dela. Por outro abraço dele. Voltei para casa pensando que chegar e partir é uma das grandes belezas de tudo o que há. E que às vezes a gente não dá valor, a gente faz que não percebe, desperdiçando oportunidades de ser um pouco mais feliz. Bonitinho, né?