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sábado, abril 30, 2011



CONTRACORRENTE, de Javier Fuentes-Léon


“Talvez num novo outro, o outro antigo voltará”.

(Caio Fernando Abreu/ O Marinheiro)


Você não disse que ia comprar cigarros e sumiu no mundo, feito esses homens dos anos cinquenta. Você talvez tenha sinalizado algumas poucas vezes que poderia, em algum momento, caso eu tivesse compreendido, me dar alguma prova, alguma palavra, algum indício de que não, entre nós havia qualquer falha, qualquer sintoma, qualquer nuvem carregada, qualquer impossibilidade que resultaria nesse momento. Que não é exatamente o momento, mas o momento seguinte a tudo aquilo que me aconteceu e que também está acontecendo com você, depois de partir. Eu escrevo sob o ponto de vista de quem permaneceu, sem sequer ser consultado se deveria, poderia ou aguentaria ficar. Talvez porque permanecer seja das minhas virtudes, a que mais te interessou. De toda a investigação, saber dessa minha dificuldade em desatar, dessa minha necessidade de ancorar, talvez tenha te alimentado os sons do sonho de ir sem olhar para trás. Porque o que passou, ficou na estrada, sufocado pelo grito que eu não soube dar.

Aí, feito um filme no DVD, você volta – ou avança – algumas cenas.

Não me sopre frases em tom de confidência para justificar uma história. Eu já compreendi que você quer proclamar intimidade e não quero aceitar essa cena que você me propõe de forma vagabunda. Intimidade é quando um corpo explode dentro do outro. Toda vez que eu presenciei cada feição tua se transformar ao toque de um beijo. Não me conte o que eu vivi porque eu conheço bem cada esquina quando busquei teus olhos perdidos. De histórias íntimas, estamos lotados, ambos. Olhos virados, troca indecente de suor, saliva, bundas e paus duros, olhos dentro dos olhos, tua maneira de segurar meu cabelo, minha mania de luz acesa, choro preso, os sentidos soltos pela cama, palavras pequenas, sussurradas, ao ouvido, a língua quente, os dentes que mordem para saborear, companheirismo quando não se espera, abraços para comemorar a geladeira nova, mão na cabeça quando o placar decepciona, tua gente e minha gente se misturando, se descobrindo. E ainda não falei nas cartas, nas afinidades relativas, decisivas. Teus instrumentais, minhas comédias-românticas, nosso Chaplin. Teus documentários, minhas novelas, nossos comerciais. O vinho quente, a fumaça clandestina, filmes no devedê. Não me sopre intimidade para tentar desconcertar a minha tarde. Chega de músicas para te adormecer. Para tentar me amortecer.

Eu bati a porta e as janelas tremeram e nem sei se eu disse tudo isso. Uma frase sem destino pode desencadear outras com roteiro finalizado. Saí de casa sem casaco e fazia frio. Desliguei o celular e trabalhei sem perceber o tempo passar. O sangue fervendo, o corpo quente, a urgência de querer realizar alguma coisa, sem saber exatamente qual caminho seguir. Quais decisões tomar. Pode ser apenas um grito, mas sem saber, como é que fica? Aí você compreende a realidade quando o elevador chega ao térreo e alguém pede licença para passar. Seguir adiante. Caminhei pela Cinelândia sei lá por quanto tempo. Eu vou para casa. Não. Ao cinema. Não. Eu vou caminhar. Puxar assunto com estranhos, esbarrar em conhecidos. Quem sabe?

Entrei numa loja. Sex shop. Eu sabia que poderia mais uma vez, tentar resolver os problemas num lugar como esses. Ou amenizar. Tem gente que se droga. Paga análise. Bebe até cair. Não me julgue ou procure os gibis da turma da Mônica. Depois que você passa pela loja, encara um corredor interminável de cabines e homens transitando com as mesmas intenções. É frio e calculado, mas é também objetivo. Basta você ter cinco reais na carteira. E o anjo da guarda forte. Gabriel, Miguel, Rafael, eu sempre contei com eles. Inserido na atmosfera dionisíaca de um corredor escuro, observando e observado, sem saber as reações e sem agir. Encontro um rosto conhecido de tempos atrás. Terno, gravata e gel no cabelo.

- Você não é o...

- Sou. E você é o...

- Sim. Faz tempo. Eu nunca mais ouvi de você depois da formatura.

Ele me puxa pelo braço para um abraço. Desconcertado, mas agradável, o tempo de pensar em algo para dizer, talvez não usar as palavras do dicionário, isso já me salvou em outras ocasiões.

- Bom te ver.

Ele acena e a aliança brilha. Sem disfarçar, o olhar flecha exatamente o dedo e ao perceber, ele coloca no bolso a satisfação que ia começar a me dar.

- Você não precisa se justificar.

Eu ia seguir corredor adiante, dentro do espelho de Alice, quando ele segurou meu braço e arriscou:

- Você quer companhia?

- A sua companhia?

- Sim. Você quer?

- Sabe o que é?

- Você não vai desperdiçar esse encontro, vai?

- Sabe o que é?

- Qual é? O que você espera? Que toque 'Kissing You' e eu me coloque atrás daquele aquário procurando o seu olhar?

- É fácil demais aqui,não é? Gravata, terno, gel no cabelo, esses olhos.

- Tão fácil quanto deve ser para você.

- Eu só vim até aqui para tentar escapar um pouco da realidade.

- Quer ir pro meu...

- Quero.

E não há como dizer que a noite não tenha sido agradável. Um bater de pernas intenso e quase inesperado, se eu não esperasse por um encontro. Passei dois anos durante o ginásio alimentando uma paixão platônica por esse cara, que se transformou nessa fome gigantesca sob o colchão macio da minha cama ainda agora. Da minha cama sem você. Eu deveria escrever e colar em todos os cantos do apartamento. A cidade salva condenando. Entrega surpresas sacudindo o tapete. Agora eu quero a paz da madrugada e a serenidade dos seis graus de separação que me trouxeram alguém de muito tempo atrás – casado, mas quem há de preencher todas as boas lacunas? – com quem pude compartilhar intimidade. Um abraço apertado de despedida, os corações acelerados – será que vai ser sempre assim? – a pulsação na cadência da rima do outro e aquela cena clássica de pegar o paletó com a ponta dos dedos e jogar para as costas, caminhando malandro em direção ao até logo. Lá se vai mais um que não vai permanecer por uma série de fatos óbvios.

Depois, ao sair de casa, amanhecido de tanta procura, encontrar um bilhete molhado no sofá, confirmando o que eu pressentira. Ele não saiu para comprar cigarros. Adeus, eles me disseram. Adeus, ele me disse.