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sábado, junho 18, 2011



INCÊNDIOS de Denis Villeneuve

Há aquele momento que te engole, sem te dar o tempo da percepção. Quando você compreende qualquer sinal de lucidez, você já está dentro da situação. Você já foi tragado pelo sei lá. Alguns desses episódios prevêem sempre alguma urgência: ou da situação que te pega de surpresa no exato momento da ocorrência (um assalto, um pedido de socorro, alguém que precisa de ajuda, o auxílio improvável) ou aquelas mais brandas, que silenciosamente vão nos aproximando lentamente, feito um ímã, muitas vezes sempre sinalizando que é melhor você evitar, sair fora, é furada, você não vê? Sim, você sabe, mas a curiosidade, danada, nos furta o bom senso e mesmo depois de todos os alarmes, todas as pessoas que te advertiram, todos os mapas com aquele símbolo enorme de não prossiga, a tal da curiosidade, te posiciona emblematicamente com um alvo desenhado no meio da sua testa. E você precisa resolver essa questão.

Nessas três últimas semanas eu estive nos dois tipos de situação. Precisei prestar socorro a vizinhos baleados na porta de casa, vítimas de um assalto, antes das oito horas da manhã. A segunda: ignorando todas as notificações, me envolvi com alguém sabendo dos riscos frágeis de (mais) uma provável decepção, daquelas que vão terminar com alguns litros de álcool e algum amigo me trazendo de volta para casa chorando e ou vomitado. Esse mesmo amigo vai encontrar uma brecha e me dizer fatalmente que tinha avisado, que isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde.

Sobre o socorro, não há muito o que refletir. Eu acordei para trabalhar. Abri as janelas e presenciei o assalto e o tiroteio. Foram quarenta segundos de tiros. Uma eternidade. O ruído, o estrondo, o barulho dos disparos também os considero um tipo de terror. Fazem parte da barbárie no pacote da violência. Você assimila o barulho, ele passa a fazer parte da sua memória. E é real. Não são produzidos como nos filmes e novelas. Não. São secos. Feios. Assustadores. Então eu não sei explicar bem, mas quando eu percebi eu estava no portão, com uma cueca samba-canção e já havia ligado para a polícia, comunicando o assalto e para os bombeiros, esses caras que realmente colocam a mão na massa. Quando eu percebi, eu estava muito próximo aos corpos no chão, tentando dizer alguma coisa para tranquilizar essas duas vítimas baleadas, tão próximas de mim. Depois começaram a aparecer outros vizinhos. Todos muito preocupados em saber causas e motivos. A minha preocupação real era que a ambulância chegasse logo, porque um tiro é um fato muito cruel. E como eles entram, saem e muitas vezes ficam alojados nas pessoas, é preciso de um médico o mais rápido possível para detectar o que precisa ser feito.

Hoje eles estão bem, passaram por uma cirurgia e se recuperam em casa, longe de qualquer risco. Eu já vi muita gente paralisar ao enfrentar adversidades. Diante de acidentes domésticos, de animais estranhos, de assaltos em lojas, bancos, ao presenciar qualquer forma de violência. Eu não paraliso. Mas alguma coisa em mim, algum instinto, talvez, sempre me lança para dentro da arena, encontrando ali um papel, um caminho, alguma forma de auxiliar, de ajudar, de não deixar o caos dominar. Não é pensado, calculado, essas situações não nos mandam um e-mail dizendo quando vão acontecer. É como se por um minuto apagasse a luz e no outro, ao acender, eu já estivesse lá no meio de tudo. Não sei evitar.

Eu sabia que ele tinha sido preso por porte de maconha. Sabia também que não era uma quantidade que o manteria na delegacia. Um menino, vinte e quatro anos, universitário. Eu fumava maconha na faculdade dez anos atrás, você imagina esses rapazes de hoje em dia? Mas o pai, advogado, corretíssimo, um primor de ser - humano acima de qualquer suspeita, muito amigo do delegado, sugeriu ao mesmo que assustasse o filho, o mantendo algumas horas na delegacia, na suposição de que ao criar esse circo todo, o rapaz aprenderia uma lição. Largaria a maconha, os maus pensamentos, as companhias que o influenciaram, o mundo sujo bobo e feio. Não sei sobre cada um, mas sei que se eu pudesse evitar que um filho meu, passasse dez minutos dentro de uma cela em qualquer delegacia do mundo, eu evitaria. Ouvi por aí que o pai disse ter feito isso por amor. Os conceitos mudam de indivíduo para indivíduo.

Quando ele foi liberado, passou a mão em algumas roupas e dinheiro e nos encontramos na minha portaria.

- Eu posso passar um tempo aqui?

Argumentei. Enumerei outras pessoas a quem ele poderia recorrer. Família, tias, primos, gente mais próxima. Depois veio o discurso de que não passo muito tempo em casa. Que morar sozinho me exigia responsabilidades que eu não sabia que existiam quando morava com meus pais. Um papo surreal, a gente realmente fala muito besteira.

- Eu te ajudo com as contas, eu tenho uma grana no banco. Só não queria gastar com hotel. Eu me sinto bem quando eu estou com você.

Um breve resumo. Eu morei no prédio dele alguns anos atrás. Ele sempre teve esse rosto incontestavelmente bonito. Todas as mocinhas, todos os rapazes, todo o mundo se apaixonava por ele porque não era só o rostinho. Era um conjunto que atraía. Uma malandragem. Uma doçura. Um cavalheirismo. Um jeito de falar. Uma atenção que você não buscava, mas sempre quis. Uma cortesia. Uma intensidade. Sempre popular. Sempre líder. Sempre querido, disputado. Eu sei que você conhece alguém assim. E pode até repudiar, de tanto que você deseja a sua atenção. O contato que nós estabelecemos se deu pela locadora que eu tinha. Ele aparecia quase todos os dias para falar sobre os filmes que ele alugava. Para falar sobre os filmes que eu indicava. Para discutir finais inconclusivos. Para aplaudir ou reprovar atitudes dessa gente de mentira.

- Isso não vai criar problema com o seu pai?

- Mais? Eu saí de casa. Sou maior de idade. E todo mundo parece ter mais medo do meu pai do que eu. Eu preciso de um lugar para ficar.

Ele ficou. E o convívio revela, aproxima, distancia, aniquila a farsa. O convívio faz a gente gostar das manias tolas do outro. Faz a gente desconstruir idéias antigas. Aproxima muito mais, pelo menos no início do processo. O que era óbvio era eu me apaixonar. E eu me apaixonei. O que era esperado é que a cama fosse boa. E era das mais incríveis. O que era natural era que ele me deixasse por alguém mais jovem, mais bonito, mais fascinante. O que não aconteceu. Quando eu cheguei de noite, havia esse bilhete:

“Se você estiver lendo de noite, é provável que eu já tenha embarcado. Argentina, Chile, Uruguai, Venezuela, qualquer lugar bem pertinho. Preciso conhecer paisagens novas. Eu tenho todo o carinho por você. Eu quero manter esse carinho por tanto tanto tempo. Essas palavras que a gente evita para não chorar – amor, paixão, relação, namoro, companheirismo - todas elas, nos definem agora. Eu bati na porta certa. Quando eu voltar, se você decidir, a gente evita juntos essas mesmas palavras. Feche os olhos ao me ouvir te dizer obrigado. Deixei um presente na sua cama. Eu sei que você vai gostar”.

Quando eu abri o pacote, eu ria e chorava sem fim dos planos que eu fiz e não cumpri. Dos planos que eu nunca ousei fazer e me embalaram os dias.