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quinta-feira, agosto 04, 2011



MELANCOLIA de Lars Von Trier

Essa é aquela noite que eu viro tentando aquietar a minha enorme raiva que ainda vai me adoecer. Um dia. Abro a geladeira em busca de cerveja. Sem sucesso, abro o armário das bebidas. Qual é? Vai começar a suavizar as porradas com álcool? Aquela voz da censura que volta e meia me acovarda. Que se foda a voz. Que ela suma, desapareça. Se ela é só uma voz, hoje eu que a boicoto. Silêncio. Uma dose meio desajeitada de alguma coisa marrom que desce esquentando, irrompendo, incendiando o corredor. Procuro o relógio. Pego a carteira. Perfume na camisa. Um pouco na barba. Saco o celular do carregador. O corredor do prédio se ilumina após a porta bater. O elevador quebra o silêncio do início da madrugada.

- Te acordei?

- Cheguei agora. Emendei num boteco depois do trabalho. Dei seis aulas. Um dia eu ainda mato esses adolescentes. Saco uma arma e saio atirando pelos corredores.

- Tá bêbado já?

- Meio bêbado. Sei lá, uns sessenta por cento.

- Mais. Você já chegou na fase do assassinato. Come alguma coisa. Eu passo aí em dez minutos.

- Aqui?

- Vem comigo? Preciso sair. Ver gente. Beber. Interagir. Ouvir música alta.

- Sério?

- Sério. Quantas vezes eu te pedi algo parecido?

- Me dá um tempo? Um banho, um sanduíche. Cortar essa onda. Onda, é isso. Beber me causa essa sensação. Vai e volta. Onda, é isso. Onda.

- Sem demorar. Promete?

- A chave tá no lugar de sempre. Sobe e me prepara alguma coisa. Não demoro.

- Certo.

- Tem algum lugar em mente?

- Tenho.

A chave extra não fica embaixo do tapete. Ou na parte superior da porta. Ou no vaso de planta. Não. A chave secreta fica dentro do armário de eletricidade. Uma pequena porta de metal junto ao chão, no corredor. Toda vez que eu abro aquela pequena porta, dependendo da noite, eu acho que vou tomar um choque que vai me fazer desmaiar ao pegar a chave entre as dezenas de fios. Penso na sirene da ambulância dos bombeiros entrando na rua em Copacabana. Três ou quatro deles fardados subindo as escadas, tirando o meu corpo do chão desmaiado, me colocando na maca e me reanimando. Ao abrir os olhos, um deles, o mais bonito, me acalma com o sorriso branco charmoso e com a barba por fazer. Passa a mão no meu rosto e diz que tudo vai ficar bem. É clássico, eu sei, mas são bombeiros. E eles povoam a fantasia da população.

- E essa impaciência? Sério que você quer sair pra noitada? Você? Isso não vai durar meia hora e você vai entrar num táxi e me largar por lá não, vai? Em dias normais, eu nem ligaria. Porque você sempre some no meio da fumaça. Mas hoje, olha bem pra minha cara. Tudo o que eu quero é cama. Dormir. Esquecer que amanhã eu dou mais cinco aulas. Ver um romance na tevê até dormir. Se você me largar, eu queimo o teu cabelo.

- E essa onda de assassino de adolescentes não vai passar? Agora vai me queimar? Vou escrever pro CSI Copacabana. Eu não vou te largar. Te deixo em casa. Te coloco na cama. Combinado?

- Tem alguma coisa errada. Você não está sendo você.

- Aposenta a psicologia e coloca essa camisa.

- Você está sendo um você mais educado, estranhamente carinhoso, bizarramente misterioso.

- Quantas palavras.

- Vamos?

O taxista puxa assunto. Eu corto. Há uma histeria desconexa hoje. Não hoje. Mas agora. Cortar o papo com o taxista me preserva, no sentido de que eu não preciso saber sobre mais uma vida. Os problemas dele não vão me interessar. Eu não quero que ele se interesse pelos meus problemas. Preciso do serviço que ele vai me prestar. Não quero que ele saiba. Não quero saber de nada porque dentro dessa histeria, pode ser, pavios curtos, que tudo descambe para um bate-boca e num clique, violência. É muita crença, muita bandeira, muita gente contra gente, muitas inflamações sobre todos os assuntos. Então eu corto. E o contrato fica no que deveria ser: a corrida pelo preço da bandeira dois. Amém.

- Eu sempre quis conhecer esse bar. Adorei.

- Eu já estive aqui outras noites. Duas noites. Gostei do clima. Do preço. Das pessoas. Gostei.

- Bem cheio, não?

- O suficiente. Esse cheio eu gosto. Dá para transitar. Dançar. Sem sufocar. E o melhor: conseguir conversar. Dá pra se ouvir.

- Quem te trouxe aqui?

- Queria fazer uma tatuagem. Discreta. Pequena. No braço, no limite da manga da camisa. Só daria pra ver se eu levantasse um pouco. Sabe?

- Detesto quando você é evasivo.

- E dá pra cantar aqui. Com banda. Você escolhe uma música do repertório deles. Tem muita coisa. Sobe no palco e canta. Tem muita gente boa. Um ou outro só pra farrear. Mas uma galera bacana.

- Parece divertido.

- Um rapaz português. Eu vi o vídeo por acaso. Ele cantava uma Dulce Pontes dificílima. Tem uma coisa que ele faz. Eu não te passei o link? Ele começa o vídeo com a música instrumental e acho tão bonito que ele respeita a introdução e a melodia em silêncio, escreve numa folha de papel que está cansado de estudar, que está em provas, coisas assim. Até que ele começa a cantar um minuto depois. E é incrível. Um rapaz. Uma voz masculina. Você não acha no início que aquele menino escrevendo sobre as provas e o cansaço, você não acha que ele vai roubar a música da Dulce Pontes e fazer dele. Ele se apropria da música com uma personalidade. E olha que eu amo a Dulce.

- Fico imaginando uma pessoa estranha passando pela mesa nesse momento e pegando exatamente essa frase ‘eu amo a Dulce’.

- Mas esse rapaz, aquela voz, não é só a voz. É essa capacidade de se apropriar. Isso é artístico demais. É bonito, é incrivelmente bonito quando alguém cria ao redor da criação. Quando a beleza se inspira na beleza.

- Essa é a hora que a gente pede a conta. Não?

- Aí em outro vídeo ele canta Someone Like You. E pronto. É um tiro certeiro. Eu devo ver esse vídeo uma vez por dia, pelo menos.

- Que menino é esse? Você não está inventando isso?

- Se tivesse bateria no celular, eu te mostraria agora. Eu te mandei, não te mandei?

- E essa tatuagem?

- Someone Like You. No quarto. Sentado. Numa simplicidade arrebatadora. Um despojamento admirável. Tão simples. Tão bom. Já não basta a Adele me surrar com essa música. Agora ele também faz isso.

- Sabe o que eu acho? Que isso tudo é invenção. Feito os bombeiros que você sempre fala que vão te resgatar do choque lá no prédio.

- Eu tenho como provar.

- Um brinde?

- Amy’s dead, amigo. Vários brindes.

Tudo aquilo que se espera de um bar: bebida, risada, flerte, gente viva, música, menos fumaça porque a lei pegou, sorrisos, gente se observando, tecendo suas suposições. Até que as luzes mudaram. O palco se iluminou. A banda começou a tocar e três ou quatro mulheres da platéia se revezavam cantando um repertório meio duvidoso. Nada que esquentasse a madrugada. Nenhuma daquelas letras universais. Eu me aproximei da produtora, em busca de Adele. Não havia. Rolling in the deep de repente na próxima semana, eles estão ensaiando, ela me disse. Até que começaram a cantar-gritar Rehab e nós pagamos a conta. Essa onda depressiva de homenagem me deixa ainda mais depressivo. Acho barra pesada. Paramos para mais uma cerveja no boteco da esquina. Parar a vida para uma cerveja na esquina. Isso deveria ser lei.

- Obrigado.

- Obrigado também.

- A gente se larga e se busca o tempo todo. Mas eu tenho essa certeza. É invisível. De que nessas temporadas, a gente sempre permanece.

- Tem sempre um bar caindo aos pedaços que a gente vai descobrir.

- Te falei que eu vi metade de Melancolia e o filme ficou ruim na segunda parte?

- Devolveram o dinheiro?

- Devolveram. A única sessão que o mundo não terminou.

- O que você espera?

- Um bar caindo aos pedaços com cerveja gelada. Um rapaz lindo em Portugal cantando Adele, sentado no sofá com um microfone na mão e a bermuda vermelha. Corações cada vez menos partidos. Nossa atenção de qualquer hora, para qualquer assunto, para qualquer história. Menos gente se matando por nada.

- Não entre no discurso de Miss, por favor.

Depois de mais algumas garrafas, conforme o prometido, deixei o Felipe em casa, quentinho, seguro e coberto. Antes de amanhecer, mostrei os vídeos que havia mencionado mais cedo. Ele sorriu de lado, como ele costuma fazer quando concorda comigo. E em Someone Like You, ele chorou feito criança. Urgente. Sem freio. E me abraçou forte. De um jeito inédito, como se não pudesse me deixar cair. Depois ele pediu para que eu ficasse. Antes de deitar, peguei um copo de água, como faço toda noite antes de dormir.

- Felipe, eu preciso te contar uma coisa.


Para David Gurita,

por me quebrar o silêncio.


* Os vídeos citados no texto existem e podem ser vistos nesses links: Canção do Mar e Someone Like You.