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terça-feira, setembro 20, 2011



O HOMEM DO FUTURO, de Cláudio Torres

O meu amor ainda é teu.

A gente deveria receber alguma multa quando erra o mesmo erro. Quando repete o que já cometeu e não funcionou. Ignorando aquele antes, quase ainda agora e a casa não voltou para o lugar, os móveis ainda embaralham-se na geografia do que foi nosso antes. Um dia.

Entre cartas e telefonemas, ainda existe um lugar onde conseguimos trocar a admiração. Onde é possível sonhar novo com a velha pessoa. Ao vivo, olhos nos olhos, sinto que há um excesso de cuidado, uma sensação de alerta, como se ambos nos encaminhássemos a um campo minado. Tentando desviar de qualquer possibilidade de mágoa. Medindo as palavras para não nos provocarmos diálogos irreversíveis. Driblando olhares, assuntos, silêncios para não nos entristecermos. Essa gente que ama e conhece os mecanismos exatos para ferir, quando deseja. Faz parte do pacote. Faz parte da imensa vontade de permanecer: ter as armas prontas. Mesmo quando a gente não percebe, elas estão ali. Disparam sozinhas, muitas vezes. Sem provocação, raras vezes.

Ainda é teu, saiba.

Mas somos esses dois cavalheiros que agora evitam o real. Voltamos, me parece, ao início de tudo, quando o platônico alimentava a expectativa. E a gente desenhava o outro que queria encontrar. Tecíamos e ornamentávamos uma imagem que a gente correspondia para agradar. Para que o outro mantivesse a ilusão. Há generosidade nisso. Algum encanto bonito. Que depois veio se quebrar e romper o que um dia após o outro dia revela. E a gente releva porque o amor chegou, porque tudo é festa, porque não é época de desconstruir. Há pessoas que vivem esse encanto a vida toda. Que se apaixonam diariamente pela mesma pessoa. E compreendem que a realidade, com todo o veneno e também o soro, salva. Porque descortina a ilusão do desejo de sermos os mocinhos das novelas. As heroínas dos filmes. A realidade nos dá a ferramenta do que é essencial: estar por amor, por desejo, por vontade, por alguma necessidade atávica, talvez.

E sem saber equalizar essa distância, continuo, continuamos tentando, arriscando pela cidade, observando por aí, ávidos por outro alguém que há de chegar – deveria, poderia. Já não chegou? Já não partiu? Alguém que me convide para uma tarde no cinema, fale sobre os filmes, sobre as cenas, os atores. Sorria com vontade, sem rede para amortecer as intenções, os dias, para abafar os sons do mundo, para acalmar a calma. Observe que tudo isso é ficção. Eu deveria repudiar a alegoria. Eu deveria sair correndo de qualquer situação que parecesse uma cena. É ator? Viro a esquina, dobro as ruas, troco as placas.

Você vai bem. Eu também vou bem. E nessa roleta me veio o menino que me disseram que era uma pessoa bacana – e hoje em dia, eu me sinto feliz se realmente a pessoa for bacana, seja lá o que bacana significar. Já tentaram me roubar, me tomar o cartão de crédito, me alugar para um jantar, me usar para causar ciúme – eu jamais me usaria para isso, perceba o nível de desespero alheio – já tentaram me fazer escrever cartas inspiradas, já me usaram para ver filmes de graça, para comprar drogas, para tentar se aproximar de amigos, então um bacaninha, um legalzinho, eu encaro como um bilhete premiado. Sempre deixam um contato, um e-mail, um número de telefone. Eu não retorno porque perco os números e deve ser natural, instintivo, repelir futuro nesses homens bomba. Quando há sexo, resolvemos na modernidade de nos satisfazermos, grandes animais pequenos, ao cambalearmos pelos corredores de algum motel no Centro. Sabe que outro dia eu estive naquele da Cinelândia e estava lotado? O rapaz que sempre me atende, acho que é o dono, me ofereceu a sala de espera.

- Você não quer aguardar? Há um quarto vago, mas estão limpando.

Vulgar mesmo não é ato sexual. Vulgaridade absoluta é você aguardar numa sala de espera, um quarto vago, limpo, com a novela das onze na televisão aos berros, fingindo quebrar a falta de intimidade com alguém que, veja você, você não tem intimidade.

Não vou te ligar para marcar uma praia, não quero ir ao cinema com você, não desejo jantar no japonês. Vamos mergulhar no Arpoador, vamos ao cinema de mãos dadas, me leva para jantar? Essa ciranda desconexa de pessoas desconexas e há algo de errado com essa cidade, essa modernidade. Eu vivo sem você. Vivo sem pessoas que morreram e me deixaram tanta saudade. Não vivo sem internet. Sem televisão ou celular ou i-pods e tablets. Outra noite, eu estava aos berros com a menina do telemarketing. Tremendo, nervoso, exaltado. Eu queria conexão. Eu precisava da banda larga funcionando. Ou eu enlouqueceria. Talvez eu já esteja louco, então . Ou precise rever prioridades. Atalhos. Medicamentos. Eu quero deixar de ser tão urgente. Você não pode mais me ajudar. De perto.

Tom de voz, cafuné no cabelo, delicadezas da madrugada, café da manhã, jantar, almoço preparado por você, programas nota zero que você transforma em nota dez, dirigir cantando, dirigir conversando, o som da tua risada, o som de ser você, a respiração ofegante, os olhos abertos ao dormir, tudo isso, eu sei lá quando ou se vou voltar a dar adeus.

Ainda é teu, eu sei.

Mas existe essa sensação de cidade partida. De salto sem volta. Que eu não sei mais equacionar. Eu não gostaria de tentar mais uma vez. Você me entende, eu acredito. Embora fragmentado, o todo, eu acredito que sim, você me compreende. Talvez esse seja o anticlímax. Você saber, compreender e atestar que sim. E não me impedir. E não me calar. E não me beijar. E não me prevenir. E não me alertar. E não me provocar. E não me acalmar. E não me iludir. E não me enganar. E não me amar mais.

No fim das contas, eu sempre vou resolver ou tentar solucionar meus problemas. Há beleza nisso. Há crueldade também. E há essa certeza farol, que pisca, ilumina e falha vez ou outra.

Você me escreveria uma carta? (lapastaju@gmail.com)