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sexta-feira, novembro 25, 2011



ENLIGHTENED, de Laura Dern e Mike White


Pode ser
Que a nossa história
Seja mais uma quimera
E pode o nosso teto, a Lapa, o Rio desabar
Pode ser
Que passe o nosso tempo
Como qualquer primavera.
Espera
Me espera
Eu vou voltar

(Palavra de Mulher/ Chico Buarque)


De todos os clichês da madrugada, o que eu gosto mais são as lágrimas que caem junto com o lápis preto do olho vermelho borrado de tanto chorar. Deve haver algum tipo de dignidade nesse choro descontrolado de quem abandonou, foi abandonado ou simplesmente sentiu a porrada e muitas vezes não soube nem a direção. Há beleza também nesse movimento, que considero cinematográfico. Ela. Sim, ela. Ela num desses quartos da Lapa, no Centro da cidade do Rio de Janeiro, que é um bairro intraduzível para quem nunca esteve na Lapa, um lugar que é mais do que a arquitetura. É a atmosfera, a lua cheia, aquelas ruas pequenas de mesas de bar e sinuca e cerveja e essa gente toda, o ex-bonde (e também futuro), aquelas histórias todas misturadas, o que restou delas, o que ainda acontece ali. Os arcos. A Lapa é intraduzível, me perdoe. Há beleza quando ela acende um cigarro e enxuga as lágrimas pretas, para acalmar esse coração sem forma. Traga o dissabor e a luz amarela não ajuda muito na constatação de que o tempo, esse senhor cruel, não poupa quem se entrega tanto. O reflexo do espelho devolve não só a fumaça branca da boca vermelha, mas também uma série de certezas que só ganharam significados depois que ele bateu as portas e desceu as escadas. Logo após o tapa na cara que ela ganhou e talvez ele não esperasse, acredito, pois saiu surpreendido pelo próprio impulso. E a mão direita ardendo.

Ela e seus olhos azuis. As lágrimas pretas borradas escorrendo misturadas ao vermelho sangue do batom. O cigarro branco pela metade entre os dedos das unhas azuis roídas pelos pensamentos da madrugada, do ciúme incontrolável, das interrogações e dos ‘e se’ que muitas vezes, muitos dias, se fizeram presentes, feito um vírus que devora em segundos. O lado esquerdo do rosto formigando. Pelo tapa. Pelo ódio. Pelo amor. Pela dúvida. Por esses sentimentos grandes que se misturam e resultam em atitudes violentas, passionais, intempestivas, que a Lapa sabe como abrigar, tratar e algumas vezes, sarar.

Dentro de um quarto no centro da cidade, há uma mulher abandonada que chora furiosa. Dentro daquela mulher, na cidade abandonada, há um coração furioso.

De repente, cansada de se encarar no espelho, ela levanta, saca a bolsa do sofá marrom, ajeita o cabelo, ignora a maquiagem, apaga as luzes e bate a porta. Desce as escadas estreitas de madeira fazendo barulho com o salto agulha do sapato preto. E ganha o asfalto, driblando pessoas e suas garrafas, os carros e seus faróis, as pequenas distrações da madrugada. Essa calçada cheia de buracos e o dinheiro dos impostos, para onde vai? As pessoas a encaram e ela anda depressa. Então elas viram o pescoço tentando acompanhá-la. Eles querem olhar nos olhos dela. Eles querem o desenho pronto para constatar que ela é esse borrão ambulante, esse erro cambaleante e apontar o choro dela. E compartilhar o sofrimento dela com o amigo ao lado, como quem fofoca e sente-se aliviado por não ser ele naquela situação. Ela percebe os olhares e entra no bar da esquina em direção ao banheiro. Três mulheres na fila.

- Porra.

- Noite fraca?

- Uma merda.

- A minha também. Tô na pista desde...

- Então eu sou puta? Sou mulher, estou na Lapa, sou puta, é isso?

- Desculpa, eu imaginei que...

- Sem problemas. Escuta, eu só preciso lavar o rosto. Quebra essa?

- Claro.

Sem maquiagem nenhuma, ela caminha sem direção. Sem as cores das tintas fortes, o tempo, aquele senhor, nem parece tão implacável. O rosto parece reaver os contornos originais e o tapa já não arde mais. Lavar o rosto e tudo novo de novo. O bar da outra esquina. Ela entra e cumprimenta algumas pessoas como se já os conhecesse. Acena três ou quatro vezes, retribuindo o sorriso e se aproxima do balcão porque as mesas estão cheias. Antes de pensar em fazer o pedido, ele surge no meio da confusão. Ele, um estranho inédito, essa folha em branco.

- Posso te pagar uma cerveja?

- Eu lá sou mulher de cerveja?

- Escolhe.

- Alguma coisa com vodka. Ou vodka pura.

- Caipirinha?

- Quase nada de açúcar. Pouquíssimo gelo.

- O que faz uma mulher tão bonita...

- Corta – o – papo - chato – ela falou palavra por palavra, lentamente, encarando os olhos verdes do rapaz de cabelo raspado.

- Eu só perguntei...

- Eu entendi e eu não vou repetir. Dia errado. Garota errada. Você é bonitinho demais para perder o nosso tempo.

- Ei! Deixa eu pelo menos te pagar a bebida?

- Eu achei que esse assunto já estava resolvido – e sorri.

- Seus dentes.

- O que há?

- Estão borrados de batom – e lhe estende um guardanapo.

- Obrigada.

- Eu me chamo Fabrício.

- E o que você quer?

- Te pagar uma bebida, conversar um pouco, te conhecer.

- Eu não sou puta.

- Eu fiz alguma coisa que te fez se sentir como uma puta? Se fiz, me perdoa.

- Eu não quero que você pense que depois de quatro caipirinhas, você vai me arrastar para um motel. Entende? Uma mulher não pode entrar em um bar na Lapa sozinha que ela é puta? Não tenho nada contra as putas. Mas se você espera alguma coisa em retribuição, esquece que não vai rolar.

- Quem falou nesse assunto foi você. Eu só espero a sua companhia. É muito?

A caipirinha quebra a obrigatoriedade da resposta que ela daria. Dissipa-se com o brindar da garrafa de cerveja dele e o copo cheio de vodka e limão dela.

- Na verdade, eu gostaria sim de te fazer um pedido.

- Não precisa nem pagar a bebida. Eu tô caindo fora.

- Espera. Um segundo. Eu saí de casa com essa vontade, mas eu vim sozinho e você pode me ajudar. Ouve. Por um minuto. Se você me disser um não, eu desapareço, eu sumo por essas ruas, você nunca mais vai me ver. Até vai me ver, eu estou lançando um livro, tem uma campanha de outdoor, você provavelmente vai ver em algum momento alguma coisa sobre, mas o que eu queria te pedir, o que eu quero te pedir, gentilmente, esquece a noite que você teve até aqui, eu também não vim do meu melhor dia e eu não sei nem o seu nome, eu vou entender se você recusar, você também não me conhece, eu te disse meu nome, Fabrício, você lembra, não lembra?

- Porra, prêmio máximo de ‘falou tudo e não disse nada’ do ano. Fiquei curiosa. Posso me sentar? Agora faço questão de ouvir.

Ele balança a cabeça quase sorrindo para não perder o foco.

- Eu nunca saio sozinho. Tem sempre um primo, um irmão, uma amiga. Raramente eu me sinto à vontade, a não ser quando eu bebo e isso é raro, porque eu dirijo. E eles sempre cuidam de mim. Sempre foi assim, eu não gosto e não entendo essa proteção exagerada. O que é muito louco porque eu deveria me sentir confortável perto deles, são família, mas agora, por exemplo, agora aqui com você, eu não conheço ninguém. Acho que ninguém porque está escuro, vai saber? Mas agora, nesse momento, eu me sinto mais à vontade, mais seguro, mais confortável, mesmo se você me der um não, do que todas as noites de todos os outros dias.

- Vai amanhecer e você ainda não falou o que você quer de mim.

- Dançar. Eu quero dançar com você.

Ele falou do jeito mais delicado que alguém poderia ouvir. E continuou.

- Eu sei que tem uma gafieira aqui perto. Eu sempre tive vontade de ir lá, mas os meus amigos, eles sempre riram de mim. E esse seu vestido preto, eu imaginei na hora que eu te vi, que você era o tipo de pessoa que frequentaria a gafieira. Que quando dança, o vestido dança junto. Sabe, não sabe? Eu me aproximei porque eu achei que você poderia dançar comigo.

- Você é bom nisso – ela abriu o sorriso branco.

- É um sim?

Logo após saírem do bar, o Rio de Janeiro fechou o tempo e choveu tanto que as ruas rapidamente alagaram. Correram a tempo de driblar a tempestade e na gafieira, dançaram por quatro horas seguidas. Com um intervalo para banheiro, bebida e poucas palavras trocadas. Ela, de fato, dançava muito bem. E ele, apesar do nervosismo inicial, era um bom acompanhante. Dançaram a noite toda. Até a chuva parar. Até amanhecer. Até o sol sair. Até recobrarem a noção do tempo que havia passado. E de tudo o que precedeu a madrugada. Despediram-se com um abraço confortável, cheio de uma cumplicidade silenciosa. Não trocaram telefone. Ou e-mail. Ou qualquer possibilidade de futuro. Nada. Pareciam ter ciência de que aquele encontro não voltaria a acontecer. E que, talvez, nunca mais se encontrariam outra vez. Não importava.

- Você não me disse seu nome – ele fez a última tentativa.

Ela sorriu em silêncio e entrou no táxi que sumiu após cruzar os Arcos.

De todos os clichês das manhãs pós noitada, eu gosto mesmo é daquele quando o homem volta para casa, de fininho, querendo reparar os estragos das burradas naturais de todo percurso. E a mulher é pega de surpresa.

Quando abriu a porta, seu homem na cama, nu, de bruços, adormecido. O mesmo homem do tapa na cara. O homem adormecido, que volta para casa porque a casa é o seu lugar. A luz do sol iluminava os pelos do corpo, da nuca, dos braços adormecidos em um sono tranquilo que não lembrava em nenhum milímetro o homem de ontem a noite. O homem do tapa na cara. O homem que não queria que ela tivesse o seu filho.

sábado, novembro 05, 2011



O QUE VOCÊ QUER SABER DE VERDADE, de Marisa Monte

O som da madrugada carioca. Copos brindando, uma sirene distante, risadas e sorrisos e lábios, garrafas que se esbarram ao serem trocadas, o isqueiro que acende um, dois cigarros, o sopro da fumaça, o smuack dos beijos dos amigos que se encontram e se perdem por aí, as palavras das conversas fragmentadas de um bar, as frases que se perdem e nunca mais se acham, uns acordes de um violão desafinado, palmas desencontradas, dispersas e copos, aos montes, em tim tim permanente, quebrados, em riste, transbordando em direção ao seu destino de ser virados goela abaixo.

Você conhece cinco ou seis pessoas, os demais você foi apresentado educadamente festas atrás, eles não sabem seu nome, mas você também não sabe os deles, parece um empate justo. Então você brinda e sorri e conversa com dois ou três sobre assuntos corriqueiros e os outros três ou quatro estão na outra ponta da mesa, animados, excitados com os assuntos recorrentes de uma mesa de bar. O telefone vibra e embora nem tanto tempo tenha passado assim, o nome que aparece no dial é o nome do amor da sua vida, que por razões múltiplas e infinitas, deixou de ser o homem da sua vida quando por outros tantos motivos infindáveis, recusou o seu amor e foi embora. Com outro homem que mais tarde você soube, foi apenas uma tentativa sem sucesso.

Há um momento rápido, entre encarar o celular em dúvida, profunda dúvida, se vai atender ou não ao chamado ou fingir que não ouviu e brindar aos ilustres desconhecidos da imensa mesa de bar. Profunda por ser essa a primeira vez, depois do adeus, que um dos dois faz contato. E esse momento, é sim, sem exagero, importante, talvez decisivo, porque pode mover arquiteturas que julgava finalizadas. Atender poderia lhe causar novos labirintos, mover paredes, fechar ou o pior, abrir outras portas para lugar nenhum. Hesitou. Percebeu que não atender era inteligente. E mostrava um equilíbrio emocional que ele tanto perseguia. Um telefone tocando não poderia alterar o curso dos acontecimentos. Racionalizando, era apenas um aparelho eletrônico vibrando. Mentira.

- Que surpresa – quase trêmulo ao fechar os olhos. O mundo não vai terminar hoje. Esse impulso é o impulso de querer saber, de querer ouvir, de querer compreender porque você, porque essa noite, se você pensa em mim e o que te leva a fazer a ligação, mas por que hoje depois de tantos meses, de tantos tropeços, depois de antes quando ainda não havia tantas frestas, tanta falha na recepção da comunicação. Quando ainda não havia tanta dor.

- Bom te ouvir. Barulheira. Tá na rua?

- Uma festa. Um bar. Tá cheio de gente que eu não conheço.

- Você nunca gostou de bar.

- Eu nunca gostei de gente também. Continuo não gostando. Mas abrir mão não mata ninguém. É saudável até.

- Tá sozinho? Digo, você está com alguém? Alguém?

- Que tipo de pergunta é essa?

- Desculpa.

Você não sabe porque se apaixona por alguém. Há alguns indícios óbvios. Porque a beleza encanta, enfeitiça, mas não sustenta, não alimenta futuro. Então não é pelos traços encantadores do teu rosto. Ou pelo corte de cabelo e tuas roupas perfumadas. Há algo invisível. Que depois de algumas semanas, depois de alguns dias de convívio e ou expectativa, que te aproxima daquela pessoa. Que quer te aproximar ainda mais daquela pessoa. E quando ela é receptiva, quando ela também se apaixona, há um descobrir incessante por algum tempo. Os primeiros toques, as primeiras reações, entradas e saídas e retornos. Há a percepção do outro, de como ele pode ensinar, o quanto ele pode somar e melhorar e salvar do desabamento. O quanto é importante dividir os dias e também o carinho. Há generosidade quando você se apaixona porque você deixa entrar um estranho na sua vida. É saudável, por alguma razão.

- Eu não sei o que dizer. Você me pegou de surpresa. Eu não sei o que te dizer, mas tenho certeza de que não é com quem eu estou ou não estou.

- Certo, você tá certo. Eu liguei mesmo para saber, ouvir, te ouvir.

- Isso não é um motivo. Me ouvir. Saber. Qual é? Nossas histórias estão acertadas, concluídas. Desacertadas, na verdade. E se nós resolvemos isso juntos, seria bacana você respeitar. Ou eu estou azedo demais hoje?

- Eu deixei um cd na tua portaria hoje de tarde.

- Ah é? Eu deixei algum na tua casa? Esqueci por lá?

- Eu comprei um cd hoje e deixei na sua portaria. Uma lembrança.

- Eu vou desligar. Tô começando a me arrepender de ter te atendido.

- O que você quer saber de verdade?

Eu quero que a madrugada me engula a curiosidade. Eu quero pegar nos braços de um estranho e conversar a noite toda sobre todos os assuntos desimportantes que existem. Quero tomar cerveja ouvindo o mar nas costas, a lua no céu e se não for pedir demais, uma brisa de verão. Eu quero deixar de lembrar que tempos atrás você me deu uma rasteira quando, com palavras, você me disse que não, não é a hora. E depois, com os olhos, me fez compreender que era realmente um não. Eu nunca soube superar. Eu passei dias, horas, minutos, sem saber como reagir. Como reorganizar o caos que eu jamais vou conseguir domar. Domar o inominável. Acalmar a loucura. Abafar os sons, os sais, os ais. Quero correr na areia e quando estiver no limite do cansaço, mergulhar o corpo quente no mar frio e relaxar olhando o céu.

- É para responder?

- É o nome do cd da Marisa Monte. Saiu hoje. Eu comprei para você.

Sem saber o que dizer, não disse. E pensou em desligar. Pensou também que deve haver algum tipo de sadismo e ironia em sustentar aquela situação. Que esse personagem – o cara que apaixonado pela vida inteira, vai receber essas ligações, sempre que sair um cd de amor, sempre que pintar uma crise, uma comédia romântica – esse personagem é um miserável ultrapassado. Que deve haver um grande manipulador do outro lado da linha, incapaz de deixá-lo tentar acertar. Uma espécie de âncora, puxando para baixo para marcar o território. Que por infinitos motivos, não segue adiante ao lado. E não permite que ele siga porque a cada ligação dessas, a cada carta escrita nos momentos de incerteza, cada dúvida antiga, vai gerar um movimento viciado que sempre vai fazer desmoronar sua coleção pequena de certezas. Por quanto tempo dançar sozinho? Por quanto tempo dançar junto, à espera de uma nova ligação, de um novo repensar do outro? Ignorando pretendentes, fingindo não perceber quem está ao redor. As flores que existem. Até que ele decida, finalmente e vá ao seu encontro viver sua história pretendida. Essa é uma relação mentirosa que jamais vai acontecer. Não houve amor da sua parte. Apenas esse medo monstruoso de ficar sozinho, no fim das contas.

- Agradeço.

- Lembra tanto o Memórias, crônicas e declarações de amor.

- Agradeço, mas eu comprei o meu. Você pode pegar de volta na portaria. Presenteie outra pessoa.

E desligou.

Saiu do bar e foi em direção ao mar. Por que o mar é tão importante assim? Porque tudo fica tão menor quando olhamos o mar? Porque é enorme. E essas paisagens enormes, incontroláveis, injustificáveis, nos dão material para repensar as migalhas. E é bonito pra caralho.

Pegou o celular. Selecionou música. Cantora. Marisa Monte. O que você quer saber de mim. Depois, faixa três. Deu play: