ENLIGHTENED, de Laura Dern e Mike White
Pode ser
Que a nossa história
Seja mais uma quimera
E pode o nosso teto, a Lapa, o Rio desabar
Pode ser
Que passe o nosso tempo
Como qualquer primavera.
Espera
Me espera
Eu vou voltar
(Palavra de Mulher/ Chico Buarque)
De todos os clichês da madrugada, o que eu gosto mais são as lágrimas que caem junto com o lápis preto do olho vermelho borrado de tanto chorar. Deve haver algum tipo de dignidade nesse choro descontrolado de quem abandonou, foi abandonado ou simplesmente sentiu a porrada e muitas vezes não soube nem a direção. Há beleza também nesse movimento, que considero cinematográfico. Ela. Sim, ela. Ela num desses quartos da Lapa, no Centro da cidade do Rio de Janeiro, que é um bairro intraduzível para quem nunca esteve na Lapa, um lugar que é mais do que a arquitetura. É a atmosfera, a lua cheia, aquelas ruas pequenas de mesas de bar e sinuca e cerveja e essa gente toda, o ex-bonde (e também futuro), aquelas histórias todas misturadas, o que restou delas, o que ainda acontece ali. Os arcos. A Lapa é intraduzível, me perdoe. Há beleza quando ela acende um cigarro e enxuga as lágrimas pretas, para acalmar esse coração sem forma. Traga o dissabor e a luz amarela não ajuda muito na constatação de que o tempo, esse senhor cruel, não poupa quem se entrega tanto. O reflexo do espelho devolve não só a fumaça branca da boca vermelha, mas também uma série de certezas que só ganharam significados depois que ele bateu as portas e desceu as escadas. Logo após o tapa na cara que ela ganhou e talvez ele não esperasse, acredito, pois saiu surpreendido pelo próprio impulso. E a mão direita ardendo.
Ela e seus olhos azuis. As lágrimas pretas borradas escorrendo misturadas ao vermelho sangue do batom. O cigarro branco pela metade entre os dedos das unhas azuis roídas pelos pensamentos da madrugada, do ciúme incontrolável, das interrogações e dos ‘e se’ que muitas vezes, muitos dias, se fizeram presentes, feito um vírus que devora em segundos. O lado esquerdo do rosto formigando. Pelo tapa. Pelo ódio. Pelo amor. Pela dúvida. Por esses sentimentos grandes que se misturam e resultam em atitudes violentas, passionais, intempestivas, que a Lapa sabe como abrigar, tratar e algumas vezes, sarar.
Dentro de um quarto no centro da cidade, há uma mulher abandonada que chora furiosa. Dentro daquela mulher, na cidade abandonada, há um coração furioso.
De repente, cansada de se encarar no espelho, ela levanta, saca a bolsa do sofá marrom, ajeita o cabelo, ignora a maquiagem, apaga as luzes e bate a porta. Desce as escadas estreitas de madeira fazendo barulho com o salto agulha do sapato preto. E ganha o asfalto, driblando pessoas e suas garrafas, os carros e seus faróis, as pequenas distrações da madrugada. Essa calçada cheia de buracos e o dinheiro dos impostos, para onde vai? As pessoas a encaram e ela anda depressa. Então elas viram o pescoço tentando acompanhá-la. Eles querem olhar nos olhos dela. Eles querem o desenho pronto para constatar que ela é esse borrão ambulante, esse erro cambaleante e apontar o choro dela. E compartilhar o sofrimento dela com o amigo ao lado, como quem fofoca e sente-se aliviado por não ser ele naquela situação. Ela percebe os olhares e entra no bar da esquina em direção ao banheiro. Três mulheres na fila.
- Porra.
- Noite fraca?
- Uma merda.
- A minha também. Tô na pista desde...
- Então eu sou puta? Sou mulher, estou na Lapa, sou puta, é isso?
- Desculpa, eu imaginei que...
- Sem problemas. Escuta, eu só preciso lavar o rosto. Quebra essa?
- Claro.
Sem maquiagem nenhuma, ela caminha sem direção. Sem as cores das tintas fortes, o tempo, aquele senhor, nem parece tão implacável. O rosto parece reaver os contornos originais e o tapa já não arde mais. Lavar o rosto e tudo novo de novo. O bar da outra esquina. Ela entra e cumprimenta algumas pessoas como se já os conhecesse. Acena três ou quatro vezes, retribuindo o sorriso e se aproxima do balcão porque as mesas estão cheias. Antes de pensar em fazer o pedido, ele surge no meio da confusão. Ele, um estranho inédito, essa folha em branco.
- Posso te pagar uma cerveja?
- Eu lá sou mulher de cerveja?
- Escolhe.
- Alguma coisa com vodka. Ou vodka pura.
- Caipirinha?
- Quase nada de açúcar. Pouquíssimo gelo.
- O que faz uma mulher tão bonita...
- Corta – o – papo - chato – ela falou palavra por palavra, lentamente, encarando os olhos verdes do rapaz de cabelo raspado.
- Eu só perguntei...
- Eu entendi e eu não vou repetir. Dia errado. Garota errada. Você é bonitinho demais para perder o nosso tempo.
- Ei! Deixa eu pelo menos te pagar a bebida?
- Eu achei que esse assunto já estava resolvido – e sorri.
- Seus dentes.
- O que há?
- Estão borrados de batom – e lhe estende um guardanapo.
- Obrigada.
- Eu me chamo Fabrício.
- E o que você quer?
- Te pagar uma bebida, conversar um pouco, te conhecer.
- Eu não sou puta.
- Eu fiz alguma coisa que te fez se sentir como uma puta? Se fiz, me perdoa.
- Eu não quero que você pense que depois de quatro caipirinhas, você vai me arrastar para um motel. Entende? Uma mulher não pode entrar em um bar na Lapa sozinha que ela é puta? Não tenho nada contra as putas. Mas se você espera alguma coisa em retribuição, esquece que não vai rolar.
- Quem falou nesse assunto foi você. Eu só espero a sua companhia. É muito?
A caipirinha quebra a obrigatoriedade da resposta que ela daria. Dissipa-se com o brindar da garrafa de cerveja dele e o copo cheio de vodka e limão dela.
- Na verdade, eu gostaria sim de te fazer um pedido.
- Não precisa nem pagar a bebida. Eu tô caindo fora.
- Espera. Um segundo. Eu saí de casa com essa vontade, mas eu vim sozinho e você pode me ajudar. Ouve. Por um minuto. Se você me disser um não, eu desapareço, eu sumo por essas ruas, você nunca mais vai me ver. Até vai me ver, eu estou lançando um livro, tem uma campanha de outdoor, você provavelmente vai ver em algum momento alguma coisa sobre, mas o que eu queria te pedir, o que eu quero te pedir, gentilmente, esquece a noite que você teve até aqui, eu também não vim do meu melhor dia e eu não sei nem o seu nome, eu vou entender se você recusar, você também não me conhece, eu te disse meu nome, Fabrício, você lembra, não lembra?
- Porra, prêmio máximo de ‘falou tudo e não disse nada’ do ano. Fiquei curiosa. Posso me sentar? Agora faço questão de ouvir.
Ele balança a cabeça quase sorrindo para não perder o foco.
- Eu nunca saio sozinho. Tem sempre um primo, um irmão, uma amiga. Raramente eu me sinto à vontade, a não ser quando eu bebo e isso é raro, porque eu dirijo. E eles sempre cuidam de mim. Sempre foi assim, eu não gosto e não entendo essa proteção exagerada. O que é muito louco porque eu deveria me sentir confortável perto deles, são família, mas agora, por exemplo, agora aqui com você, eu não conheço ninguém. Acho que ninguém porque está escuro, vai saber? Mas agora, nesse momento, eu me sinto mais à vontade, mais seguro, mais confortável, mesmo se você me der um não, do que todas as noites de todos os outros dias.
- Vai amanhecer e você ainda não falou o que você quer de mim.
- Dançar. Eu quero dançar com você.
Ele falou do jeito mais delicado que alguém poderia ouvir. E continuou.
- Eu sei que tem uma gafieira aqui perto. Eu sempre tive vontade de ir lá, mas os meus amigos, eles sempre riram de mim. E esse seu vestido preto, eu imaginei na hora que eu te vi, que você era o tipo de pessoa que frequentaria a gafieira. Que quando dança, o vestido dança junto. Sabe, não sabe? Eu me aproximei porque eu achei que você poderia dançar comigo.
- Você é bom nisso – ela abriu o sorriso branco.
- É um sim?
Logo após saírem do bar, o Rio de Janeiro fechou o tempo e choveu tanto que as ruas rapidamente alagaram. Correram a tempo de driblar a tempestade e na gafieira, dançaram por quatro horas seguidas. Com um intervalo para banheiro, bebida e poucas palavras trocadas. Ela, de fato, dançava muito bem. E ele, apesar do nervosismo inicial, era um bom acompanhante. Dançaram a noite toda. Até a chuva parar. Até amanhecer. Até o sol sair. Até recobrarem a noção do tempo que havia passado. E de tudo o que precedeu a madrugada. Despediram-se com um abraço confortável, cheio de uma cumplicidade silenciosa. Não trocaram telefone. Ou e-mail. Ou qualquer possibilidade de futuro. Nada. Pareciam ter ciência de que aquele encontro não voltaria a acontecer. E que, talvez, nunca mais se encontrariam outra vez. Não importava.
- Você não me disse seu nome – ele fez a última tentativa.
Ela sorriu em silêncio e entrou no táxi que sumiu após cruzar os Arcos.
De todos os clichês das manhãs pós noitada, eu gosto mesmo é daquele quando o homem volta para casa, de fininho, querendo reparar os estragos das burradas naturais de todo percurso. E a mulher é pega de surpresa.
Quando abriu a porta, seu homem na cama, nu, de bruços, adormecido. O mesmo homem do tapa na cara. O homem adormecido, que volta para casa porque a casa é o seu lugar. A luz do sol iluminava os pelos do corpo, da nuca, dos braços adormecidos em um sono tranquilo que não lembrava em nenhum milímetro o homem de ontem a noite. O homem do tapa na cara. O homem que não queria que ela tivesse o seu filho.