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terça-feira, abril 10, 2012



WEEKEND de Andrew Haigh

Quando eu te conheci, o tempo parou.

Você colocou a minha mão dentro da sua. A palma macia, os dedos maiores que os meus. A minha mão coube dentro da sua, feito uma senha que a gente digita, aguarda e ganha acesso. A gente foi entrando um na vida do outro, preenchendo os espaços vazios dos apartamentos, saciando a sede de atenção dos atores insaciáveis que somos ou fui, equilibrando o desejo e descobrindo a imensa alegria de permanecer. A gente foi misturando as camisas, os cd’s, os objetos, as anotações, permitindo um tipo de intimidade, nova para ambos, de casas e coisas. A gente dividiu inúmeras primeiras vezes. Drogas, pessoas, sexos, noites, danças, madrugadas viradas, manhãs com uma atmosfera de segurança porque estávamos lá. Um para o outro. Gritamos gol. Brindamos conquistas. Enterramos amigos. Nos ensinamos a olhar nos olhos. E ali, dentro dos olhos, a gente aprendeu quando estava bom. Quando queríamos mais. Quando era para ir embora. Quando era para fazer cena. Quando não era.

Depois de um tempo, muito tempo, a gente começou a se tratar com arrogância. Eu pensava que te conhecia tão bem. Você pensava que eu era tão simples e tão fácil de prever. Que eu passei a te detestar por presumir que eu te sabia de cor, feito tabuada. Como se, ao poder me prever, você pudesse também me controlar. Nesse controle que sempre se confirmava a cada acerto teu, o seu poder te fez entender que você podia me enganar. Que você podia armar o cenário e mover as peças de maneira que você jamais seria descoberto, caso precisasse se esconder. E o tempo continuaria parado. Mas eu também conseguia ler você. E constatar que toda a intimidade que a gente se entregou, me dava também – além do amor, o mais bonito de todos – a oportunidade de te enxergar sem maquiagem. Sem figurinos. Sem regras de etiqueta. Você me via. Eu também te via. E nossos mecanismos nunca foram tão complexos ou tão misteriosos. Mapas óbvios. Que se conheciam de olhos fechados. Em paz, em guerra, em movimento.

Um dia o teu traço mudou. Ou talvez não tenha mudado. Um dia eu compreendi que o teu traço não era o traço que tempos atrás me chamou a atenção. Que despertou meu interesse. Passamos a confundir dias, compromissos, datas. A desatenção charmosa inicial se transformou em irritação que criou transtornos, agressões verbais, acendeu uma série de lâmpadas que explodiram e colocaram fogo no sofá branco. Quando eu te observava, havia no meu olhar algo além da impaciência dos dias. Uma impaciência inédita, urgente, monstruosa. Eu passei a adorar te detestar pelos menores detalhes. Eu queria motivos. Quaisquer motivos. Eu queria discussões para poder te tirar do sério. Para poder incendiar a tua serenidade. E quebrar copos na parede te xingando de canalha, covarde, filha da puta. Eu queria rasgar a tua camisa e exausto, te agredir fisicamente para que você me jogasse no chão. Me deixasse marcas na pele para legitimar a tua fúria. Eu quis o tapa na cara, o sangue escorrendo pescoço abaixo, a ardência da tua mão forte, o formigamento e a tontura. Sem sexo para compensar. Sem fodas enlouquecedoras para fazer as pazes. Sem o teu incontrolável corpo entrando no meu com violência. Nada de pau, bunda. Nada de porra, saliva. Marcas no pescoço, marcas indeléveis. Nada de nada.

Quando eu fiz as malas e parti, o tempo parado parou novamente por alguns segundos. Eu perdi todo o ar. Eu respirei todo o ar que havia. E submergi.

Ninguém me conhece da maneira que você ousou.
Ninguém foi tão profundo
E eu vou usar o mar como metáfora,
Um dos meu maiores medos,
E resistiu por tanto tempo.
O que me assusta
E não deveria
É que não estou dando um peso maior ao fato.
Ou organizando as palavras de forma meticulosa
Para parecer misterioso
Ou interessante.
Não.
De fato, ninguém sabe tanto sobre mim.
Do que não é visível.
Do que não se percebe ao observar
Da forma que você...
Eu não sei completar essa frase.

Você conhece tudo o que não é agradável.
Você sabe quando estou agindo de forma educada
Somente para cumprir formalidades.
Sabe quando eu concordo querendo explodir palavrões.
Das ironias, dos segredos, dos armários
Das insatisfações, receios e despudores
Dos pecados, todos eles e os seus desdobramentos, você sabe.
Algumas vezes sorri para eles e me respeita, cavalheiro que é.
E que me ensina a ser.
Quase sempre.
Você sabe do que me desagrada.
Do que me incomoda.
Do que me paralisa e não sei se é comum
Alguém saber tanto do outro
Mesmo depois de tanto tempo.
Eu não sei se é natural alguém conhecer sobre tanto
Do que é sombra em outra pessoa.
Se é trivial se deixar radiografar sem garantias
Porque com gente é assim:
Sem garantias.
Gostaria de qualquer rede de segurança,
Qualquer direito que me protegesse
Mas se eu resolver listar tudo o que eu gostaria
Poderia escrever por três dias.
Meses, talvez.

Ninguém sabe tanto dos meus vulcões.
Ou suportou por tanto tempo todo tremor de terra.

Sei também eu das tuas e dos teus desvios
Conheço os atalhos
Sei da roupa amassada
Da fome gigantesca
De quando os holofotes descansam
E a maquiagem derrete
Da lágrima que ninguém viu, eu sequei cada uma.

Ninguém nunca me resistiu por tanto tempo.
Ao meu amor. Carinho. Ou qualquer outra urgência branda.
Ninguém foi tão meu amigo por tantas quadras
Me entregando a sensação de que cada dia é um novo dia.
Nova página para rabiscar
Ávidas crianças diante da tinta abundante e de tons fortes.
Ciente dos cuidados, da conquista que se refaz
Feito tecelão dos bons diante da sua melhor roca.

Era sobre isso que eu queria escrever:
Sobre essa responsabilidade
de ser e estar
Que a gente vai honrando com sal pimenta
E um açúcar nada amargo.

Quando eu te conheci, o tempo parou e voltou a correr depois de verões inesquecíveis.

E sozinho, eu finalmente emergi.