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sábado, fevereiro 09, 2013




AS VANTAGENS DE SER INVISÍVEL, de Stephen Chbosky

Eu sonhei com você. Depois de te perder no meio da cidade. Você foi se embaralhando aos passantes. Você foi desaparecendo no meio dos rostos. Eram outros olhos e outras bocas que eu via. Em algum momento, feito um piscar de olhos, eu podia ver teus traços, o reflexo dos teus olhos, o teu cabelo macio, que desaparecia logo depois. Novos olhos. Novas expressões. Novos passos. Na direção contrária, eu te buscava. A tua camisa quadriculada. Os teus braços magros. A cadência dos teus passos, meio atrapalhados, como se tentasse equilibrar a própria altura. Nada. Você saiu. Você sumiu. Você se misturou elegantemente à cidade.


Eu passei os primeiros dias na expectativa de algum contato. É tão mais fácil hoje: os celulares, os computadores, os tablets, o nosso telefone fixo, a caixa de correio do prédio, um pássaro mensageiro. Nada. Você silenciou. Você saiu. Você se recolheu. Então eu compreendi que tua ausência me comunicava. E na minha impetuosidade, na minha inquietação italiana, eu te escrevi uma carta. Olha, não é nada demais, eu gostei de você, da sua chegada e eu quero ser seu amigo, vamos ser amigos, a mão estendida para um abraço de boas vindas, uma carta numa época onde não se escrevem mais cartas. Nada. Você se escondeu. Você se protegeu. Você não respondeu. E mais uma vez, compreendi. E segui, seguimos, independentes, sem sabermos um do outro, sem nos encontrarmos, sem nos falarmos. Era como se nunca, em nenhum momento, nunca nada e tudo bem. O silêncio tem esse tom que comunica com o tempo que passa. A gente compreende e não dói tanto. Só incomoda.


Cinco meses depois, sei de uma ou outra notícia sua. Alguém te viu. Alguém estava na mesma festa. No mesmo cinema. Eu ouço e sorrio, mas não entro em detalhes porque não nos conhecemos mais. Então eu sonho com você. É raro que eu me lembre dos meus sonhos. Normalmente o que fica são fragmentos, alguma frase que me faz levantar para anotar e no dia seguinte, mal consigo compreender a grafia. Mas eu sonhei com você e ao acordar, eu lembrava – lembro – exatamente de todos os detalhes. Como se realmente tivéssemos passado aquele momento da madrugada juntos. E ele se transformasse numa lembrança remota, feito o final de Lost. Dormíamos juntos em camas separadas. Eu gostava dessa independência. Até que você comprou uma cama de casal. Enorme.


Tem uma coisa que ele fazia com as pontas dos dedos quando ele tinha sono. Ele desenhava um círculo na superfície das mãos. Repetia inúmeras vezes , como se fizesse um carinho em si mesmo, como se ele fosse comunicando ao corpo que era hora de ir para cama e pouco a pouco, feito um sistema, uma máquina, no tempo dele, cada área fosse desligando, fosse interrompendo os trabalhos, finalizando o dia, para que ele voltasse para casa, para que ele pudesse dormir em paz. E era raro ele sentir sono antes de mim. Era raro ele dormir antes de qualquer um de nós, quando recebíamos visitas. Ele sempre teve essa qualidade, sim, qualidade, de cuidar, falo do todo e de cada partitura especificamente. Ele cuidava dos detalhes. Dos mecanismos. Era o último a fechar as janelas, a passar o trinco nas portas, a verificar se o gás estava desligado, a água e a ração dos animais, os aparelhos eletrônicos em ordem. Ele era o segurança da nossa segurança. Eu gostava disso. Eu gostava de pensar nesses mínimos, de saber da existência deles e também me preocupar com eles, mas o mais gostoso era saber que ele cuidaria de algum descuido meu, caso houvesse. Era um prazer porque era também uma forma de nos legitimar a intimidade, a confiança, a parceria. Quando ele vinha deitar, trazia aquele cheiro dos cabelos molhados que era um afago, era uma certeza de uma noite inteira de sono, de um sono bom, um sono seguro e saudável. 


Eu sempre sofri de insônia. Boa parte da adolescência eu sempre ia dormir perto da hora de levantar. Era um hábito que eu achei que eu nunca fosse perder e a insônia é um horror para a saúde. Ela altera todo o metabolismo, ela altera o teu humor, a tua alimentação, a saúde do teu corpo, da tua compreensão das coisas, da ordem de todas elas. Mas depois que o conheci, não imediatamente, mas quando começamos a passar as noites juntos, a dormir juntos, parece que o meu corpo encontrou essa brecha, essa sensação ou oportunidade, de sanar a falta de sono. A dificuldade para dormir foi deixando de existir, aos poucos, naturalmente, sem que eu pudesse perceber. Eu passei a precisar das oito horas de sono. E isso refletia na qualidade do meu dia seguinte, refletia na qualidade da minha atenção para com as tarefas do dia, mesmo com o ócio, quando ócio havia – e há sempre uma brecha para ele, eu conseguia aproveitar mais. Ele me ensinou a dormir oito horas por noite, algumas vezes menos, quando festa havia – e sempre houve muita festa – e redescobri o prazer do descanso.


Mas somos jovens – ou fomos – e nos vestimos bem, cheiramos bem e buscamos sensações que não sabíamos que buscávamos. A gente se trai mesmo quando pensa que nossa fidelidade é inquestionável. A gente aponta os dedos e bate o pé de que o nosso comprometimento é inquebrantável. É legítimo e nunca, sob nenhuma hipótese, mas não existe possibilidade, você está louco. Até que uma noite, seu amor viajando a trabalho, três semanas fora. Quando você percebeu, você já estava no táxi. Quando você percebeu, você dançava naquela boate que você nunca mais. Quando você percebeu, seus amigos estavam em outra pista de dança e você saía secretamente com o lourinho que tinha covinhas. Quando você percebeu, você acordava com um outro homem na sua cama. E não se espantava com isso. E isso não causava em você nem medo, nem arrependimento, nenhuma sensação. Porque embora você soubesse que jamais cairia na armadilha de trair, uma vez lá, caído, você não se surpreende ou se recrimina. Você aceita a miséria das tuas atitudes sem alarde. Conformado.


Quando ele voltou de viagem, eu contei a verdade. Ele me contou a verdade. Não houve drama ou portas batendo. Não houve uma cena passional ou frases de efeito e ‘você não presta’, ‘não quero te ver nunca mais’. Havia uma calma. Como se ambos, cientes da situação, diante das nossas não cumpridas juras de amor, percebêssemos que alguma coisa mudaria entre nós. Não mudou nos primeiros meses. Ao contrário. Ficamos mais unidos e nos divertíamos mais. Até que cedemos a outra noite solitária. E acordamos com outro estranho sem nome ao nosso lado. Ele conversava comigo com muita calma e ao conversar comigo parecia sempre evitar palavras como traição, fidelidade, erro. Sugeriu que deixássemos as portas abertas, então. Há tantos casais por aí com relações abertas. E pode ser que seja um momento para que a gente possa experimentar sem que isso cause qualquer ruptura. Ele sempre teve essa serenidade de organizar em palavras o que cai ao redor, sem muita explicação. Ele coloca de maneira racional, milimetricamente, os fatos para que tomássemos ciência de tudo. Para que as consequências também fiquem muito claras. Muitas vezes ficavam nítidas até demais.


Eu passei a deixar de dormir as oito horas recomendáveis depois que ele foi embora. Sem ele por perto, eu passei a buscar sem êxito, alguma coisa que não sei. Nunca sabemos. Noites sem fim. Pistas sem fim. Homens, aos montes, por aí. Sexo com estranhos em lugares duvidosos. Olá, tá afim, o que você não curte, cada vez menos palavras, cada vez menos contato, cada vez mais distante das madrugadas serenas. Até que.


Ao chegar em casa, não havia mais a cama de casal. Você me recebeu com um abraço – como é que descreve um abraço dentro de um sonho, que ficou marcado na memória, que me despertou sensações, mesmo não sendo real, mesmo não sendo filme ou novela, mesmo sendo o inconsciente, o sono me revelando você depois daquele festival? Como é que o sonho, um sonho muda as coisas de lugar?


Eu te perdi no meio da multidão e ela não era nem tão grande assim. A gente se perdeu. A gente se anulou e eu acredito secretamente que você quis me proteger por isso foi embora e se permitiu ficar apenas aquelas duas semanas até perceber. Eu fiquei com essa sensação da dúvida. Do e se? Do quase. E saiba que nessa idade, essa sensação da bola na trave, esse quase recorrente, derruba com mais força. Volta e meia, eu ainda vejo teu rosto no meio dos rostos da cidade e ele me parece cada vez mais distante. Feito o rosto de alguém que a gente acha que conhece de algum lugar, mas não. É só um rosto com histórias, mais um rosto cheio de histórias que a gente pensa que ouviu em algum lugar. E talvez tenha ouvido mesmo.