AS VANTAGENS DE SER INVISÍVEL, de Stephen Chbosky
Eu sonhei com você. Depois de te
perder no meio da cidade. Você foi se embaralhando aos passantes. Você foi
desaparecendo no meio dos rostos. Eram outros olhos e outras bocas que eu via.
Em algum momento, feito um piscar de olhos, eu podia ver teus traços, o reflexo
dos teus olhos, o teu cabelo macio, que desaparecia logo depois. Novos olhos.
Novas expressões. Novos passos. Na direção contrária, eu te buscava. A tua
camisa quadriculada. Os teus braços magros. A cadência dos teus passos, meio
atrapalhados, como se tentasse equilibrar a própria altura. Nada. Você saiu.
Você sumiu. Você se misturou elegantemente à cidade.
Eu passei os primeiros dias na
expectativa de algum contato. É tão mais fácil hoje: os celulares, os
computadores, os tablets, o nosso telefone fixo, a caixa de correio do prédio,
um pássaro mensageiro. Nada. Você silenciou. Você saiu. Você se recolheu. Então
eu compreendi que tua ausência me comunicava. E na minha impetuosidade, na
minha inquietação italiana, eu te escrevi uma carta. Olha, não é nada demais,
eu gostei de você, da sua chegada e eu quero ser seu amigo, vamos ser amigos, a
mão estendida para um abraço de boas vindas, uma carta numa época onde não se escrevem
mais cartas. Nada. Você se escondeu. Você se protegeu. Você não respondeu. E
mais uma vez, compreendi. E segui, seguimos, independentes, sem sabermos um do
outro, sem nos encontrarmos, sem nos falarmos. Era como se nunca, em nenhum
momento, nunca nada e tudo bem. O silêncio tem esse tom que comunica com o
tempo que passa. A gente compreende e não dói tanto. Só incomoda.
Cinco meses depois, sei de uma ou
outra notícia sua. Alguém te viu. Alguém estava na mesma festa. No mesmo
cinema. Eu ouço e sorrio, mas não entro em detalhes porque não nos conhecemos
mais. Então eu sonho com você. É raro que eu me lembre dos meus sonhos.
Normalmente o que fica são fragmentos, alguma frase que me faz levantar para
anotar e no dia seguinte, mal consigo compreender a grafia. Mas eu sonhei com
você e ao acordar, eu lembrava – lembro – exatamente de todos os detalhes. Como
se realmente tivéssemos passado aquele momento da madrugada juntos. E ele se
transformasse numa lembrança remota, feito o final de Lost. Dormíamos juntos em
camas separadas. Eu gostava dessa independência. Até que você comprou uma cama
de casal. Enorme.
Tem uma coisa que ele fazia com as pontas dos dedos quando ele tinha
sono. Ele desenhava um círculo na superfície das mãos. Repetia inúmeras vezes ,
como se fizesse um carinho em si mesmo, como se ele fosse comunicando ao corpo
que era hora de ir para cama e pouco a pouco, feito um sistema, uma máquina, no
tempo dele, cada área fosse desligando, fosse interrompendo os trabalhos,
finalizando o dia, para que ele voltasse para casa, para que ele pudesse dormir
em paz. E era raro ele sentir sono antes de mim. Era raro ele dormir antes de
qualquer um de nós, quando recebíamos visitas. Ele sempre teve essa qualidade,
sim, qualidade, de cuidar, falo do todo e de cada partitura especificamente.
Ele cuidava dos detalhes. Dos mecanismos. Era o último a fechar as janelas, a
passar o trinco nas portas, a verificar se o gás estava desligado, a água e a
ração dos animais, os aparelhos eletrônicos em ordem. Ele era o segurança da
nossa segurança. Eu gostava disso. Eu gostava de pensar nesses mínimos, de
saber da existência deles e também me preocupar com eles, mas o mais gostoso
era saber que ele cuidaria de algum descuido meu, caso houvesse. Era um prazer
porque era também uma forma de nos legitimar a intimidade, a confiança, a
parceria. Quando ele vinha deitar, trazia aquele cheiro dos cabelos molhados
que era um afago, era uma certeza de uma noite inteira de sono, de um sono bom,
um sono seguro e saudável.
Eu sempre sofri de insônia. Boa parte da adolescência eu sempre ia
dormir perto da hora de levantar. Era um hábito que eu achei que eu nunca fosse
perder e a insônia é um horror para a saúde. Ela altera todo o metabolismo, ela
altera o teu humor, a tua alimentação, a saúde do teu corpo, da tua compreensão
das coisas, da ordem de todas elas. Mas depois que o conheci, não
imediatamente, mas quando começamos a passar as noites juntos, a dormir juntos,
parece que o meu corpo encontrou essa brecha, essa sensação ou oportunidade, de
sanar a falta de sono. A dificuldade para dormir foi deixando de existir, aos
poucos, naturalmente, sem que eu pudesse perceber. Eu passei a precisar das
oito horas de sono. E isso refletia na qualidade do meu dia seguinte, refletia
na qualidade da minha atenção para com as tarefas do dia, mesmo com o ócio,
quando ócio havia – e há sempre uma brecha para ele, eu conseguia aproveitar
mais. Ele me ensinou a dormir oito horas por noite, algumas vezes menos, quando
festa havia – e sempre houve muita festa – e redescobri o prazer do descanso.
Mas somos jovens – ou fomos – e nos vestimos bem, cheiramos bem e
buscamos sensações que não sabíamos que buscávamos. A gente se trai mesmo
quando pensa que nossa fidelidade é inquestionável. A gente aponta os dedos e
bate o pé de que o nosso comprometimento é inquebrantável. É legítimo e nunca,
sob nenhuma hipótese, mas não existe possibilidade, você está louco. Até que
uma noite, seu amor viajando a trabalho, três semanas fora. Quando você
percebeu, você já estava no táxi. Quando você percebeu, você dançava naquela
boate que você nunca mais. Quando você percebeu, seus amigos estavam em outra
pista de dança e você saía secretamente com o lourinho que tinha covinhas.
Quando você percebeu, você acordava com um outro homem na sua cama. E não se
espantava com isso. E isso não causava em você nem medo, nem arrependimento,
nenhuma sensação. Porque embora você soubesse que jamais cairia na armadilha de
trair, uma vez lá, caído, você não se surpreende ou se recrimina. Você aceita a
miséria das tuas atitudes sem alarde. Conformado.
Quando ele voltou de viagem, eu contei a verdade. Ele me contou a
verdade. Não houve drama ou portas batendo. Não houve uma cena passional ou
frases de efeito e ‘você não presta’, ‘não quero te ver nunca mais’. Havia uma
calma. Como se ambos, cientes da situação, diante das nossas não cumpridas
juras de amor, percebêssemos que alguma coisa mudaria entre nós. Não mudou nos
primeiros meses. Ao contrário. Ficamos mais unidos e nos divertíamos mais. Até
que cedemos a outra noite solitária. E acordamos com outro estranho sem nome ao
nosso lado. Ele conversava comigo com muita calma e ao conversar comigo parecia
sempre evitar palavras como traição, fidelidade, erro. Sugeriu que deixássemos
as portas abertas, então. Há tantos casais por aí com relações abertas. E pode
ser que seja um momento para que a gente possa experimentar sem que isso cause
qualquer ruptura. Ele sempre teve essa serenidade de organizar em palavras o
que cai ao redor, sem muita explicação. Ele coloca de maneira racional,
milimetricamente, os fatos para que tomássemos ciência de tudo. Para que as
consequências também fiquem muito claras. Muitas vezes ficavam nítidas até
demais.
Eu passei a deixar de dormir as oito horas recomendáveis depois que ele
foi embora. Sem ele por perto, eu passei a buscar sem êxito, alguma coisa que
não sei. Nunca sabemos. Noites sem fim. Pistas sem fim. Homens, aos montes, por
aí. Sexo com estranhos em lugares duvidosos. Olá, tá afim, o que você não
curte, cada vez menos palavras, cada vez menos contato, cada vez mais distante
das madrugadas serenas. Até que.
Ao chegar em casa, não havia mais
a cama de casal. Você me recebeu com um abraço – como é que descreve um abraço
dentro de um sonho, que ficou marcado na memória, que me despertou sensações,
mesmo não sendo real, mesmo não sendo filme ou novela, mesmo sendo o inconsciente,
o sono me revelando você depois daquele festival? Como é que o sonho, um sonho
muda as coisas de lugar?
Eu te perdi no meio da multidão e
ela não era nem tão grande assim. A gente se perdeu. A gente se anulou e eu
acredito secretamente que você quis me proteger por isso foi embora e se
permitiu ficar apenas aquelas duas semanas até perceber. Eu fiquei com essa
sensação da dúvida. Do e se? Do quase. E saiba que nessa idade, essa sensação
da bola na trave, esse quase recorrente, derruba com mais força. Volta e meia,
eu ainda vejo teu rosto no meio dos rostos da cidade e ele me parece cada vez mais
distante. Feito o rosto de alguém que a gente acha que conhece de algum lugar,
mas não. É só um rosto com histórias, mais um rosto cheio de histórias que a
gente pensa que ouviu em algum lugar. E talvez tenha ouvido mesmo.